30.1.11

poética

"empreender um discurso político demanda um exercício estético"

vice-versa

29.1.11

a infância da arte

meu primeiro nome foi temístocles ambrósio. não tive muitos depois, também porque entrei numa neura da dizer a verdade que, cá pra nós, não é bem assim. tenho pouca imaginação pra pseudônimos, percebe-se. e aquele eu escolhi não me lembro por que, mas com certeza havia uma justificativa poética, eu era bem poético. tinha quinze anos e escrevia cartas enormes, falando de líquidos que eu nunca tinha experimentado, mas muito voluptuoso, para um homem trinta anos mais velho que morava em belo horizonte e fazia mestrado em literatura comparada na ufmg. lembro que numa carta eu lhe falei que caetano veloso era um gênio e ele respondeu discordando e dizendo "o conceito de gênio..." ou algo assim. aprendia muito e me masturbava. ele me contou que era muito reservado e que seu pai gritava com ele na infância da fazenda, "não rebole!" e outros horrores da tradicional família mineira, mas que agora ele perdoava, ainda morava na fazenda, os pais o aceitavam e era só por via das dúvidas que eu continuava escrevendo para a caixa-postal. as respostas dele vinham em folhas cor-de-rosa e impressas em fonte cursiva, que ele dizia ser mais bonita que a letra de mão dele. sempre dizia algo do meu petardo, que, se cheguei a procurar no dicionário, esqueci, mas virou uma palavra que uso até hoje quando quero pensar um erotismo parnasiano. "o seu petardo", ele dizia, e também me chamava de anjo de caravaggio ou algo assim. porque eu tinha cabelos cacheados e descoloridos na 3x4 que lhe mandei.

não lembro o nome dele, mas tenho todas as cartas guardadas em algum lugar. deixei de escrever quando perdi uma carta que havia escrito, até hoje acho que foi minha mãe que a sequestrou, mas nunca me importei, também porque não queria mais escrever pra ele, e quero que minha mãe se exploda. tampouco ele me escreveu mais, deve ter arranjado coisa melhor pra fazer. ou então se decepcionou, cagou de medo que eu tinha só quinze anos e lhe contei a verdade, na primeira carta tinha mentido dizendo ser pós-púbere ou algo assim. eu queria ser o olavo bilac e não sabia. sempre achei o bilac tesudo. josé de alencar também, babo por aquela barba.

não lembro o que ele estudava no mestrado. achava muito difícil entender. talvez cecília meireles e drummond. está numa das cartas. também não lembro porque o escolhi, entre tantos outros anúncios da sessão de encontros da g magazine, nem se ele foi a única resposta das muitas cartas que eu possa ter escrito. acho, também, que pouco depois depois eu já tinha um computador, icq, e que passei a sair de madrugada para encontrar outros caras no centro da cidade. em sua maioria eles eram casados, mas tinha também os solteirões e todos eles devem ter ouvido gritos de "não rebola!" na infância.

esses dias dei de procurar esse cara pela internet, mas não o encontrei. a angélica freitas estava publicando uma série no blog dela, há um tempo atrás, tagueada "pessoas que não vão me googlear". eu poderia taguear este post assim também. mas, ai, vai que esse cara inventa de escrever "temístocles ambrósio" no google e dá de cara com este texto. ele me acha e vê que eu contei toda a história.

já faz dez anos e o crime expirou. caro correspondente, agora nem tenho vergonha.

28.1.11

viagem, ausência, teus nomes no corpo / estrias, estrelas, o caminho de leite nas costas, essa vaga sensação de pertencimento e logo o vácuo quebra nos ombros e se esparrama pelo dia. Um homem que se afasta a passos lunares. A minha gravidade é muito tênue, observo os corpos irem, orbitarem, nada permanece / pego um foguete e me afasto de mim.

Carta aos astronautas. Escrita no lado escuro da lua.

27.1.11

vieram os aviões

e eram aves de rapina

nós, suas árvores

26.1.11

método

I

escrever escrever escrever.
só presta o que sobra

II

deixar de escrever, também.
decantar na preguiça.
só presta o que sobra.

III

mais vale um cachorro vivo.
mas vale que eu viva, também.

IV

eu e o cachorro

25.1.11

a noite um estômago

fuso

recebo a amiga com quem digo de
coisas muito macias em língua estrangeira

e vemos a lua
ela encolhe a olho nu

cada uma de suas manchas tem o tamanho do atlântico
que se não for vasto oceano é aquele hotel
de gente suspeita na cidadezinha de fronteira

hoje me vi perdido nessas crateras, na sombra
do sol direto, e agora deixo de dormir pra ficar
aqui tentando escrever um caminho que me leve,
não tenho destino

ó noite mais noite que a noite.
amanhece onde eu não vejo

24.1.11

a carta quando ninguém precisa mais dela

escrever cartas só porque não precisa mandá-las. faz assim: escreve, escreve, páginas de verdades e dúvidas. aí conta as novidades por email e não manda a carta. se desculpa na preguiça, que não carece tanto assim, que já passou.

"já passou" é um carteiro muito amargo.

carta, hoje, é quase um susto de seriedade e sempre traz notícias importantes e sigilosas. às vezes nem é tanto assim, mas o meio faz a mensagem. você fica olhando ela no criado-mudo, te esperasse um grande segredo.

no colégio a gente tinha muito o que dizer e tudo era importante. depois é que eu fiquei assim, seletivo.

manifesto. carta de princípios

a palavra vale o afeto da palavra

história é tudo o que acontece

no centro do planeta, fogo pulsa

querer o facínora, mas nunca o que ele faz

(variação luxuriosa de "ama o pecador, não o pecado")

contra o fascismo. todas as girls

quem quer fama que faça a cama

escritor é o pedreiro do imaginário

pelo fim do capitalismo.

pelo sol e pela lua, que juntos formam a palavra "brilho" em chinês

*

revelar o mistério como mistério

renovar a linguagem com a linguagem

querido leitor, querida leitora: o óbvio me exaure.

ceja bem-vindo e esprimente a linguiça

trabalho

estou fazendo amor com a parede. desde há horas, quando o céu relampejava, sentei aqui pra trabalhar e ouço do outro lado uma televisão vibrante, meu corpo todo estivesse na luz azul, a vizinha é uma senhora interessada no que a rede globo pode mostrar

minhas costas mostram muito mais.

gosto de revisar textos porque aprendo muito e coisas desconexas. por exemplo que mulheres têm mais frequentemente que homens infecção urinária. minhas costas continuam urgentes na parede. acabo de sair de um buraco. cada vez que eu entro, penso não vou sair nunca mais. o buraco entra em mim. então chego no meu corpo e tenho ele inteiro pra dar, distribuir a quem quiser.

imprimi todas as páginas. não escrevo há um tempo. hoje não comecei um conto que deveria ter começado. é a história de uma descoberta aterradora. talvez tenha feito bem, porque a descoberta é muito terrível e talvez eu não deva descobri-la hoje.

então ainda estou sem fio. feito os heróis que não saíram do labirinto e por isso não se tornaram heróis. a vocação vacila além de mim. tenho o trabalho banal pra me salvar, o capitalismo atendeu minhas preces.

hoje também conversei com a andrea sobre a necessidade humana da narrativa trágica, desde os gregos. foi a descoberta terrível do dia. lembrei, no lastro, do verso do pessoa em que ele chama o ser humano de "cadáver adiado que procria". e do poema do manuel bandeira, "momento num café", em que ele diz que a vida é "uma agitação feroz e sem finalidade". como eu já saí do buraco, posso correr esse risco outra vez.

21.1.11

degelo

migramos. vi em fotos
agora um urso na antártida
polar as águas imagino
o bicho em navios que façam
a troca entre os polos:
entrarei num desses
que me leve ao outro
extremo condições iguais
de vida, companheiros só
pinguins

20.1.11

um amor desinvestido
tem todos os nutrientes que você precisa
pra levar uma vida forte e saudável
pra putaqueopariu
mastiguei o futuro e antes de engolir virá o passado

tenho uma opção muito importante a fazer

não sei se pego o barco

enquanto penso o enquanto escorre, já mostra que não é enquanto e quando percebo que nunca tive essa opção já estou no barco e ele não está. desconfio que se eu descobrir isso o barco afunda e eu afogo.

plano de fuga

não vou fazer nada do que eu planejava quando era eu. viver que nem um morto que ninguém vê. para isso, não posso avisar. deve ser por isso que não sei, porque não estou me avisando assim eu não estrago tudo.

o é e o não é e não é é e o. temos caveiras. o óbvio mastiga.
anotações:

existir em escala.

anotação: o sol, antares, estrelas maiores.

em que a palavra "maior" perde seu lastro.

se o que perder o lastro.

um verme na cabeça.

planeta sem gravidade. o corpo sem gravidade ao redor do corpo. a distração traz a certeza. dizer "deus" agora é ganhar a certeza. saber disso te extrai da certeza. todas as outras pessoas te comentarão desde dentro da certeza, você fora. as palavras que eu uso são certeza, por isso não tenho / / /. nem sou dessas pessoas que um dia cairá. então posso ir.

(mas, se penso assim, ir já não serve)

trampa, trapaça.

(não tenho sol)
explicar com palavras deste mundo
que partiu de mim um barco levando-me
ninguém acredita. começa assim: eu não conto.

conto, mas ninguém acredita.

começa assim: conto, acreditam, aí eu digo: "era brincadeira".

eu não acredito. a décima quinta história. e todos acreditam e ninguém acredita.

eu morri. mas aí: eu sei que não, porque estou vivo.

(esta é a história mais difícil de escrever)

a história que ninguém acreditamos. nem duvidamos.

e se as coisas forem e não forem, vai ser a história mais difícil do mundo.

se eu não tiver braço, vai ser impossível.

(olho o meu braço. braço, braço)

já tive meu braço dentro de uma pessoa.

penso no engraçado que seria se a gente ousasse responder tudo com "não sei".

eu perderia meu emprego, e você?

não sei se eu perderia meu braço. esse é o jogo.

amanhã vou acordar, depois vou dormir, depois vou acordar, segue-se adiante.

história mais difícil de não conseguir escrever.
estou escrevendo a história de uma pessoa que não tem braço.

não, assim: a pessoa tem braço, mas esquece como usá-lo.

fico pensando que é muito trágico a pessoa não perceber mais o óbvio das coisas, o automático, somos muito automáticos.

não consigo escrever a história porque, para escrever, uso meus braços. e a história é inspirada em mim. nas vezes em que eu não sei mais o que é ter um braço.

tento me proteger na história.

será um fracasso absoluto se, em vez de viver o escritor, eu começar a viver o personagem. será um erro de cálculo. será um planejamento muito falho. me parece impossível que eu planeje tão falhamente assim.

mas olho meu braço e penso: o impossível será impossível?

penso: ninguém vai me salvar. e: eu [sozinho].

no dia a dia, esqueço como ter muitas coisas. isso aqui é só uma história. olho a parede. o problema é que às vezes eu não consigo pensar: parede. eu retrocedo para o fragmentado da parede.

percebo que a gente só sobrevive no atomizado.

palpito que qualquer desvio é muitíssimo perigoso. eu quase tenho medo. mas tenho uma certeza de razão muito grande.

o problema é se essa certeza de razão já for indício de a pessoa estar variando das ideias.

o braço só vai ser um problema depois que eu parar de escrever. enquanto escrevo, é porque o braço ainda existe. em mim.

e as palavras. denota que eu tenho um pressuposto. o pressuposto não oferece perigo.

isso aqui é o ensaio de uma história. estou escrevendo um romance e vou ser um grande escritor. ai meu braço. MEU BRAÇO. quando eu precisar saber usá-lo, aí será problema.

será que eu já morri?

19.1.11

18.1.11

névoa

Foi um fenômeno interessante, que vale a pena relatar.

Um dia a materialidade das palavras. Não bem isso. As palavras, o em-si delas. Tornou-se água e escorreu.

Como toda grande epidemia, essa aconteceu lenta e veloz. Como um elefante. Não um elefante correndo, embora também assim. Os elefantes são os animais que mais causam morte no continente africano. Parece que é muito fácil morrer pisoteado por eles. Agora imagine a própria figura: ELEFANTE. Ele é improvável, mas tão pesado que não deixa espaço pra dúvidas. Pois. Quando aconteceu, as imagens de elefante ficaram intactas, mas era só alguém pronunciar, "elefante", que, uma loucura, do ar as ondas quebravam em líquido, caíam no chão e ninguém ouvia nada além do barulho terrível que é o da água, o horror o horror, se você pensar 20 milhões de habitantes dizendo na cidade e o único som que se ouvia era esse, chegando em manada um tsunami. Pra te afogar.

Muita gente conseguiu sobreviver. (Vou ver só o lado bom das coisas. Não.) Milhões morreram. Talvez fosse feitiço de índio pra que a represa de Belo Monte afogasse São Paulo. Tentei pensar de outro modo, agora, mas sou cristão e quero o castigo pelos meus pecados. Ou ser cristão é só uma desculpa. Bem, o que eu sinto ou deixo de sentir não ressuscita esses milhões de mortos que se afogaram no não dizer.

Porque não foram só as palavras ditas. As bibliotecas, as empresas, todos os papéis que traziam. Foi um mar que descobriu por acaso de fofoca ouvida sem querer que nada o segurava. E que, desconfiado, tentou. E que, vendo que conseguia, teve raiva e liberdade.

Os helicópteros mal sobrevoavam toda a extensão, lhes acabava o combustível, e todos tinham que ficar bem quietinhos. Um grupo de surdos que estava no nosso abrigo improvisado falava com as mãos e isso pareceu ser uma resposta. Pararam quando seus dedos também começaram a escorrer. "Se vocês continuarem, todo o corpo de vocês vai sumir no ralo" nós pensamos, e tivemos medo de que nossos cérebros se liquefizessem com as palavras pensadas, e tentamos não pensar mais.

Foi assim.

Agora me pus numa sinuca de bico, porque não sei como terminar essa história e não tenho mais nada o que apostar. Me dei conta de que escrever essa história é a própria negação da história. Ando desconfiado de que eu também sou a própria negação de mim, mas não quero entrar nesses meandros. Olho pra dentro da caverna e tenho medo. Se eu tento falar com ela civilizadamente, a única coisa que ela me responde é o meu próprio eco. Então lhe dou as costas e ando para longe, mas o eco ainda me persegue (se você falou uma vez, pronto, está condenado pra sempre a ter falado essa uma vez. O planeta só se move em uma direção), o eco fica ecoando. Até que o som bata tanto nas paredes que encontre um começo, uma saída. Descubra a fonte. E se transforme nessa onda que assoma imensa às minhas costas, eu não me ouço.

16.1.11

tirei as coisas do lugar e agora não sei onde me enfio

achar o caminho das coisas

ele faz faxina no walmart à noite. quer ser escritor de histórias de vampiro, com quinze anos já anunciava no ônibus, quando fazia uma amizade: estou escrevendo um livro. um menino muito inteligente. deixou de acreditar em deus porque pensou assim "não tem lógica", pois passou a acreditar na lógica e também prezava a coerência. gostava de ler, mas lhe dava sono e não gostava de deixar capítulos pela metade, então só lia quando podia terminar o capítulo na mesma sentada, ou começava tudo de novo na próxima vez, dali a duas semanas, às vezes meses.

agora passa pano no corredor das guloseimas. quando a gente vê uma coisa todo dia, perde a vontade.

(eu tento achar o meu caminho me perdendo no caminho dos outros. andar quando não se anda)

se a questão é de sobrevivência, não há espaço para que se exija qualidade. vai dizer assim: é certo que ele escreve mal, nunca passa da primeira página e mesmo isso, se alguém sem admiração desse de ler, o que eu não quero é ser cruel e dizer "esse aí merece a vassoura que tem", mas é o que pensariam e ele nunca vai chegar às prateleiras. também, é certo, só o que quer é a fama. não é porque a pessoa está sobrevivendo que ela se torna um exemplo a ser seguido, vamos combinar! ele não merece esse peso. eu seria seu amigo desde que ele não me enchesse a paciência. se trabalhássemos juntos no walmart eu teria carinho e chamava logo pra sacanagem longe das câmeras, só assim que sei fazer.

secretamente, eu também quero escrever histórias de vampiros. mas chamo de humildade a resignação e hoje, pela primeira vez na vida, perdi todo o interesse por quaisquer livros. fui arrumar a minha estante e me deparei com o excesso imóvel dos livros. desconfio que se eu pegasse uma vassoura. ela me mereceria e o quarto seria limpo como é certo ser. a escrita é demasiado leve. ó, capitalismo, me proteja do que me leva de mim.

14.1.11

tivesse

escorrega dos olhos o
que é teu, dos meus
digo, os cílios tentam prender

os cílios são aranhas sem teia

tivesse eu teias nos pulsos
o jornal nacional anunciaria a catástrofe

mas o coração faz guerrilha urbana

hoje eu acordei com febre e dores no corpo
uma amiga fazia trabalho voluntário e um dia contou
sem se gabar, até um pouco constrangida
que dava sopa às pessoas abandonadas e que ocorria
comum uma delas pedir mais que sopa, mais que pão
um abraço, ela abraçava a pessoa suja, eu sempre
penso que miséria tão grande, imagine, você há meses
sem tomar banho, você sujo preto pobre, de humano
só conhece o nojo

meu coração não faz guerrilha
mas também não quero que fique mendigo
melhor morrer de pé do que viver prostrado
melhor viver prostrado e com abraço
dessa febre eu não me safo

13.1.11

crônica da gaveta

uma peça feia escreve "lembrança de passo fundo"
resta lembrar quem foi pra passo fundo
quem se lembraria de mim? lembrei agora. um namorado.
esquecer que ele tenha ido pra passo fundo é bom sinal de crescimento
lembrar que ele se lembraria de mim me deixa isolado que nem uma lembrancinha
no fundo da gaveta, encontrada só se eu for procurar meu título de eleitor outra vez
em 2014, 2016
nunca sei o que fazer com as coisas guardadas
quando arrumo, o que faço é tirar tudo do lugar, depois pôr tudo de novo
agora que não tenho casa isso me parece injusto, deixar na casa dos outros
as coisas hibernadas, principalmente as cartas
vou pensar se não é melhor ser espontâneo e jogar tudo fora
fogueira da purificação

quando eu for embora, não vou deixar ninguém lembrar de mim
(tive agora um orgulho de pessoa desprezada)

a única coisa que a mulher conseguiu salvar de sua casa, engolida pela cratera que se abriu na construção do metrô em são paulo, foi uma foto antiga do casamento, cinquenta anos atrás. a rede globo mostrava isenta e com pesar.

o apego é meu próximo monstro
corpo ó corpo
eu não acredito em você
que acorda doído e me diz
"vou morrer, vou morrer"
e traz cicatrizes que não doem nem na lembrança
me olho no espelho e reconheço
a criança morta nos traços, deformada,
corpo ó corpo um momento da minha atenção
é te perceber e triste, resignado,
"eu sou meu corpo" poderia dizer
mas o sou se me escapa nos ralos
do banho, pessoas mortas no esperma
que escorre, eu sou o
futuro

II

corpo ó corpo
que eu não creio e frágil
que eu sinto e persiste
é o bambu dos contos zen
se dobla mas nunca se quebla
e eu penso "de bambu não tenho nada"
ai queria mesmo é ser meu corpo
viver de ossos e pele que não lembra
os anéis das árvores que contam
a história pro primeiro lenhador
atento, pro globo repórter
a árvore é o seu depois

III

fosse o céu castrado pelos prédios um
outro corpo eu lhe diria "céu ó
céu" lhe diria "corpo amigo" lhe diria
"e u é?"

o céu responderia com nuvens sem resposta
se eu estivesse lá fora tomaria chuva
periga uma pneumonia
e as ideias atracadas no apartamento

corpo ó corpo
sos um porto

IV

"vou morrer, vou morrer"

corpo, ó corpo nascituro,
eu sou futuro

11.1.11

manual da contaminação

a pele da glande é particularmente porosa, "receptiva" se pode dizer, pois não só as mulheres recebem, meu corpo de homem tem seus úteros, ovários discretos e perigosos.

a gente não gesta nada de bom.

tem constituição de pele íntima, apesar de exposta, a pele da glande na maioria dos casos, embora eu tenha visto em jornal faz tempo que comunidades circuncidadas da áfrica apresentavam menor número de soropositivos, talvez porque a exposição da intimidade caleje o corpo, feche-o, a proteção possível é essa, não receber

é feito uma gengiva chorosa

a glande, que é dura e macia

sempre achei linda essa combinação

e a palavra, "glande", uma vez escrevi um conto só sobre ela, era um conto ruim, eu era adolescente, tinha experimentado pouco, a gente só começa a escrever bem depois que experimenta o bastante, e se ainda não caleja, a gente só escreve bem enquanto é glande

o vírus então pode entrar, ele que é silêncio, se instala na nossa delicadeza. quantas vezes eu pensei: "o amor vai me salvar". mas as glandes do amor são fracas, suas cavernas, e o amor se perde nelas, umidade fria, se retira, vira pro lado, desprotegido

e dorme.

10.1.11

minor financial satisfaction

querido blogue

todo dia eu recebo um horóscopo que não leio. desapeguei do futuro, que me empapava, e agora vivo que nem bicho, por isso vim pro rio de janeiro a fingir que a vida é cercada de montanhas e de mar com um arpoador pra gente não se afogar.

voltei a ler clarice lispector pra valer e ela é minha escritora preferida. o caio fernando abreu dizia que tinha que evitar ler a clarice, porque se lia muito não conseguia escrever, ela já tinha escrito tudo, e que dificuldade se livrar do estilo dela. comigo não é assim. ontem, depois de fechar o "onde estivestes de noite", conheci um menino holandês que fazia algo tão nojento que pude me apaixonar. escrevi tudo. depois fui jantar na praça santos dumont.

hoje comi queijo minas e suco de goiaba, que os alemães compraram entusiasmados. um dos alemães é muito magro e escorpiano. a outra é uma transexual, tem pêlos e barba por fazer ("chuchu") e nenhuma intervenção cirúrgica e se chama carla. me parece que, além de tudo, é lésbica. eu não fico nada chocado nem confuso, mas entendo a reação das pessoas. só que acho rude se referirem a ela como "ele". ela parece não se importar tanto, deve tirar de letra. não usa vestido e é meio hippie. a vida da gente muda muito quando a gente encontra as pessoas e aprende outros modos de gente.

hoje é meu último dia aqui. minha mãe ligou dizendo que vai cozinhar pé de frango para o pessoal da igreja. me convida porque me quer por perto. amor de mãe tem tentáculos e tinta.

o rio talvez seja a cidade mais gay do brasil, e eu ouvi um monte de histórias de gente que apanhou inclusive a paulada, sem falar no menino que levou o tiro do policial, sem falar nas histórias que a gente não ouve, nem sonha a imaginação.

li que encontraram câncer no cu de uma múmia faraó e que a provável causa foi muita ingestão de carne vermelha.

(hoje acordei factual)

querida blague

6.1.11

garrafa que não chega

ou eu naufrago e topo um envelope

5.1.11

"Acontece", você diz. E a chuva chove, o ar em volta, está tudo aí, acontecendo. Mas não é o verbo que te faz presente nas coisas. Eu me sinto assim uma pedra distraída, às vezes, enorme e ligada à terra por sei lá que artérias rochosas, músculos, fímbrias do eterno tempo geológico, esse que fica além da gente.
Vinha, pois, Sireno com o rosto mudado e o coração tão triste que se a fortuna lhe quisesse dar algum contentamento, lhe fora mister um novo coração para o receber.

A Diana, Jorge de Montemor (séc. XVI)
a iminência das coisas é uma armadilha. "vai acontecer", você acha. "agora", se consola. e a coisa mal nasce, infla nos teus olhos um desejo - nada acontece.

a sala de espera do infinito.

para que o infinito cure tuas cáries.

outras vezes, por outros lados, sim, a coisa acontece. plural, quase sempre desavisada, mas nem sempre. ocorre a cada tanto que você espera - e a coisa vem. porque a sua espera também é um chamamento.

uma forma de dizer é: estando vivos, chamamos a coisa. ao seu estado temporal de presença.

ou seja: presença chama presença.

de modo que é justo pensar, se justeza for aplicável a esses dias mesquinhos e potentes, numa afirmação multilateral que tome corpo e impulsione a iminência para fora do presente.

(escrevi estas linhas, e o tal do mundo não se acabou. mas algo nasceu que me fez perder o sono. continuo sozinho, fiquei atento)

1.1.11

busco em idiomas distantes palavras que já conheço

no verão vamos estudar a língua dos mandarins
em que coração se escreve aos traços oco órgão
e da palavra gente deriva grande, depois céu

vamos também cavar nas intenções um gole de presença
a boca seca do asfalto me leva cheio de carnes
pra um futuro desossado, sem alegria
por isso urge que bebamos, cairmos, idiomas

sinceros e cheios de sílabas que se aglutinam

formam palavras, que se aglutinam e formam
cartas, que se aglutinam e formam
pessoas, neste revés estúpido da língua chinesa,
aqui pessoa é o mais derivado

e quer ser barco, ou fogo nas frotas das emoções

bicho da terra tão pequeno, neste verão
aprenderemos que se tomas
duma caneta e dás dois traços à superfície mais próxima
e limpa, aí já te disseste, és tão presente e
miúdo e verdade e cantado quanto esse idioma que há
cinco mil anos se criou para que poucos,
hoje bilhões,
pudessem dizê-lo.