28.4.11

Gazal do amor imprevisto

Ninguém compreendia o perfume
da escura magnólia do teu ventre.
Ninguém sabia que martirizavas
um beija-flor de amor entre teus dentes.

Mil cavalinhos persas já dormiam
na praça com luar de teu semblante
e eu enlaçava quatro noites tua
cintura inimiga da neve, quente.

Entre gesso e jasmins, o teu olhar
era um pálido ramo de sementes.
Eu busquei, para dar-te, no meu peito
as letras de marfim que dizem sempre,

sempre, sempre
: jardim da minha angústia,
teu corpo fugitivo para sempre,
o sangue de tuas veias na minha boca,
tua boca já sem luz pro meu poente.




Gacela del amor imprevisto

Nadie comprendía el perfume
de la oscura magnolia de tu vientre.
Nadie sabía que martirizabas
un colibrí de amor entre los dientes.

Mil caballitos persas se dormían
en la plaza con luna de tu frente,
mientras que yo enlazaba cuatro noches
tu cintura, enemiga de la nieve.

Entre yeso y jazmines, tu mirada
era un pálido ramo de simientes.
Yo busqué, para darte, por mi pecho
las letras de marfil que dicen siempre,

siempre, siempre
: jardín de mi agonía,
tu cuerpo fugitivo para siempre,
la sangre de tus venas en mi boca,
tu boca ya sin luz para mi muerte.

(Federico García Lorca)

24.4.11

E o Vaguininho?

"... o Vaguininho separou daquela namorada dele, lá. Aí arranjou outra, uma bem loira, mas bem loira mesmo, meio polaca, uma loira polaca. Eu trabalhei com o irmão dele uns tempos aí. Aí ele já teve filho, já perdeu o filho, agora faz tempo que eu não vejo ele."

(...)

"E você soube do Eduardo?"

"Que que tem?"

"Tá preso, rapá!"

"Ah, é?"

"Por causa daqueles corres, lá."

"É..."

"Tá preso..."

(...)
A gente achou que ia ser legal, daqui da praia, fotografar as plataformas de petróleo lá distantes, não tanto, passamos o dia procurando. A minha mãe estava deitada, torrando ao sol. Não era minha mãe, mas eu queria que fosse. Tenho dez anos de idade e uma câmera na mão. Estou sozinho, somos muitos. Despistava as pegadas na areia, ninguém me pega, um walkman no último conta pro mundo que nada ficou no lugar, que ela quer quebrar essas xícaras, que queria falar minha língua, olho o mar

~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~

se toda a água fosse doce. A principal atividade econômica no país foi por séculos o cultivo de cana-de-açúcar, escravos moíam e da garapa refinavam vinha um branco de brilho e afeto nas revistas femininas nos comerciais de margarina. A presidenta anunciou que agora o Brasil exportará petróleo. E do fundo branco do horizonte / plataforma que eu não vejo / um óleo preto mais que a noite

Ninguém tem culpa pelo combustível fóssil. Minha mãe passa um óleo claro nos ombros e baixa as alças. Com a bunda simulo a pegada de um dinossauro muito rude, clico, sigo procurando.

Resolvi escrever um livro de poesias. Entro na água e faço pose de contracapa. Outra onda. No fim do texto vou aparecer sem fôlego na borda e lábios de homem me buscarão. Minha mãe, passado o susto, vai ralhar comigo, vai vestir o biquíni e vamos pra casa. Tenho mais muito o que viver. "Hoje quase morri", escrevo no diário. Com a imaginação que teria uma plataforma de petróleo, se escrevesse.

21.4.11

As histórias dos outros

ele contou numa aula de alguém que conhecia. Que estava saindo um dia de um estádio de futebol e no meio da multidão, com a esposa ao lado, sem ninguém ao lado, começou a arrancar as roupas e a gritar EU TENHO MEDO! EU TENHO MEDO! Isso foi em mil novecentos e setenta e alguma coisa, durante a ditadura, e não sei se ele havia sido preso antes, torturado, ou se só seria depois, no manicômio, ou chegou a ir às prisões terroristas?

Estou lendo outra vez "A desobediência civil". Leio no transporte público. Olho pros lados e nos sei gado. Concluo, não concluo, que, de todo modo, é fundamentalmente diferente do que viver numa ditadura. Tenho tido visões de fantasmas, corpos desfeitos, a cidade atacada por massas de água e de fogo tão grandes só restará destruição. Acho que identifiquei meu problema. (Acho que não tenho a menor ideia, mas.) Que não consigo hierarquizar as coisas. Por isso não consigo escrever. Começo uma frase e vejo o fantasma, a cidade, o cara gritando, penso na morte, no Thoureau dizendo que "uma ação baseada num princípio é sempre revolucionária", largo a caneta, apago, penso

????????????

O cara gritando e tirando a roupa. As pessoas em volta - porque a multidão é feroz e nós somos animais sem deus - começaram o linchamento.

Hospital, delegacia, manicômio. O professor me contou essa história trinta anos depois. Eu não tinha nascido pra ter medo. Hoje acordo e faço assim: acordo. Depois saio pra rua. Alguns dias fico o dia inteiro em casa. Sofro de enxaqueca. Tomo muito café. Qual é o problema? Não sei. Fico prestando atenção nas histórias dos outros. As minhas até as tenho, mas o que interessa uma história? Aí: caio no mesmo problema de não saber hierarquizar. Fico preocupado e evito dizer, porque acho um lugar comum muito bocó, mas é verdade que a vida só faz sentido quando eu escrevo. "Vida", aliás, é o título do livro de poemas que esse cara escreveu - depois da tortura, do linchamento, do eletrochoque, hoje ele baba e recupera aos poucos o raciocínio lógico, nosso, das gentes - que matam -. Ou esse é o título do livro de poemas que o personagem da novela da Globo lançou, e eu confundo as bolas.

O professor disse que os poemas eram muito ruins, de todo modo. E que esse cara era amigo de vários críticos literários, inclusive do mestre Antonio Candido, e que todos gostariam que ele estivesse bem, porque sua história era muito triste. Mas que os poemas eram invariavelmente muito ruins. Óbvio que ninguém dizia isso a ele, assim, desse jeito.

20.4.11

é vigília ou sono
ou o instante entre
(os espíritos aparecem
corpos de sonho e
maldade / eles falam
/ indecifráveis)
que produz o descanso
de toda essa gente?

(sol frio e fumaça
parede de prédios
azulada manhã clara
e morna / um avião
/ hora morta)
o blogue é uma oficina

(ralo: e eu sou o quê?)
um trabalho do duchamp:

era uma pá de neve pendurada
eu olhando a pá de neve pendurada

aí fui ver o título:

"antevendo um braço quebrado"

hahaha
caí na gargalhada

(começo e não consigo terminar nem a primeira frase de um novo texto. acho que tem a ver com isso)

antevendo um texto quebrado

(eu, hein!)

19.4.11

visitei o amor na antessala. ele
se apressava em dizer que não
estava interessado no meu
evangelho. tinha visitas e
precisava entrar. entreguei-
lhe um folheto e saí cabisbaixo

na cidade vi o amor em outdoors.
reconheci-o logo, entre vidros
de perfume, rosto enorme nos
cartazes nas paredes dos banheiros,
shopping center, eu e os meus
folhetos. peguei
o ônibus e vim pra casa.

achei que saía mais
barato comprar uma calabresa, uma
batata, botar cerveja no congelador
e ficar quieto no meu quarto. estava certo. amanhã
(deus me ajude)
levarei a boa nova para o mundo
outra vez. passo longe da porta do
amor porque não quero aborrecer. "Não
desperdice sua sabedoria dando conselhos
a uma pessoa rebelde: ela não dará
a menor importância ao que você diz"
(Pr. 23:9)

fico perto, fico a uma distância
segura. ainda não é tempo
de campainhas e capachos. guardo
as novas sob o braço e parto
na mesma peregrinação. amanhã ou
depois a porta do amor se abre

- entrega, vinho, comunhão

18.4.11

se se move, será violento
marte é vida forte e assassinato

não encontro um galho pra pousar.
quando penso "paz" logo aparece
um desenlace, um crime horrível
amordaça o meu sossego

leio um livro sobre pílulas
pra dormir. é ficcional, e todos
dormem.

uma pessoa se matou perto de mim.
a janela é cinza e espessa, fumaça
fúnebre paulistana. são quatro horas
da tarde e eu vivo um luto de cadáver
futuro, sem futuro.

ontem os policiais pareciam de pelúcia.
o país é campeão em produzir armas letais.
vista de cima esta cidade é um sono,
ameaça deserta. durmo sozinho e acordo
sozinho, passo os dias sozinho. a reforma
agrária está longe. o casamento gay também
está longe. mesmo as palavras se
dissolvem no muro cinza que é o
céu. não tenho nada de bom pra dizer
pra ninguém. sem solução, melhor
que não escreva.

17.4.11

cardume e pouso

não acha um galho pra pousar
e era um corvo após dilúvio:
preto, agouro, ingrato não volta

noé depois de morta toda a terra
manda um corvo a ver se há paragem
sem enchente algum lugar

o corvo não volta. noé espera
um pouco e manda, agora, um pombo

que branco e amor divino traz
um verde ramo ao bico traz
notícias de uma terra firme traz

do corvo nunca mais se soube

*

insistia em punição, o deus dos exércitos

e por isso matou todos os seres vivos
à exceção de alguns casais hétero.

rinocerontes flamingos e castores,
humanos, somos todos pecadores

mas não previu ou fez que não soube:
pairava sobre as águas distraído e
dentro delas - os peixes - todos vivos.

corais baleias e o querido ictiossauro nadavam
se matavam em festa lambiam cardume comiam
os cadáveres dos animais terrestres

com tanta bonança e proteína devem ter desenvolvido
uma inteligência nunca antes prometida, e deus
nos céus, isento de qualquer defeito,
olhava para a arca que sobrava, pensando
no que tinha feito.

tanta água escoou para a nossa memória
e hoje eu recordo esse afeto: os mares
inteiros felizes, e um barco era o mundo
completo.

16.4.11

Certo de que voltas, canção

Certo de que voltas, canção,
a incerta hora,
espero como quem mora
só, a visitação.

Sei, por sinais e anjos e desviados,
que rebentas dos sonhos desolados
em flores no chão.

Apenas flores, nem nimbos na lapela.
Flores para a mesa,
com o odor da certeza
de água, vinho e pão.

Apenas flores e tu,
ó meu amor sem nome,
e a nossa dupla fome
dum menino nu.

(Sebastião Alba)

segundas leituras

começava a ler um poema
pela biografia do poeta:
se estivesse morto, principal
mente de um jeito trágico, melhor
ficava a poesia

a morte, mestra da vida

ou assumia cada verso
a mais fidedigna biografia

é certo que todos os poetas já estavam mortos. menos o ferreira gullar, que eu lia como se estivesse. menos a hilda hilst, que, quando me dei conta, logo esteve.

da biblioteca municipal da cidade li todos os livros do caio fernando abreu, mostrava pra quem quisesse ver, o melhor escritor de todos os tempos. pensei "vou escrever uma carta pra ele", ou um telefonema, ou a própria visita. porque ele me conhecia melhor que eu. não sei como descobri que tinha morrido dois anos antes. fim.

às vezes alguém brinca: "o mundo já acabou, a gente é que não percebeu". ou então: "o mundo já acabou, só que esqueceram de avisar a gente".

15.4.11

uma expressão chinesa que diz "encontrar
muito = conhecimento largo", às vezes sinto
que não conheço ninguém, o pensamento
socrático pode ser definido como niilista?
não sei, não sei definir.

anteontem uma pessoa se matou perto de mim.
hoje eu fiz exercícios físicos. bíceps
e pensava "a pessoa morta não está no mundo".
coxa e pensava no desespero de alguém
que se mata. três sessões de vinte abdominais.
depois troca.

essa pessoa veio de um país muito distante.
na minha sala de estar tem uma bicicleta.
eu posso escrever todas as verdade e depois dizer
"isso é poesia" e nem assim vou estar mentindo, e vou sempre estar mentindo.
mas acabei trabalhando tanto esses dias que não tive
forças pra mais nada. penso "capitalismo", a
mente se esfumaça. faço três sessões de quinze
cada. e atrás da porta encontro uma pessoa morta.

disse para um amigo que estaria bem alguém escrevesse
A História da Tristeza. não sei se estaria tão bem assim.
penso "afeto". me perdi nas ruas da noite. não sei
continuar esse texto

11.4.11

depois que virei um autor publicado muita coisa mudou.
vim para o interior buscando o fim do anonimato.
trouxe o jornal que me mandaram por sedex com meu poema em uma página.

o poema fala sobre quando meu avô teve um derrame.
minha mãe achou que era uma homenagem, fiquei constrangido.
não neguei, porque pode ser.
ela disse que não entendeu direito.
pensei nas respostas dos autores espertinhos:
"eu não quis dizer, eu disse"
"não se preocupe em entender, viver ultrapassa..."
"isto não é uma mulher, minha senhora, é um quadro"

minha mãe é sagitariana e sempre me atropela.
disse que era uma boa ideia mostrar aos meus avós.

vovô ainda está cego e zureta.
ninguém na minha família lê poesia.
só eu.
vovô não lê mais nada.
minha avó, que é quieta e parece saber das coisas,
mas não contar pra ninguém,
disse que gostou e depois deu pra ele ver.

meu avô não conseguiu nem ler meu nome
e me pediu pra dizer o poema pra ele.

...

este texto está chato, mas vou continuar.
foi o momento mais importante de toda a minha carreira literária.
sou péssimo com momentos mais importantes.
e espero não ter uma carreira literária.
mas ganhar um dia um prêmio muito dinheiro pelo conjunto da obra
e valiosos serviços prestados à comunidade.
ao menos pra não morrer quase indigente, que nem a orides fontela.
e o roberto piva, que também não ganhou dinheiro nenhum.
no final da vida uma galera arrecadando dinheiro pra pagar a conta do hospital.
acho que não vou ter tanta gente assim gostando de mim.
meu avô diz pra eu ganhar muito dinheiro.
"dinheiro é sagrado", ele diz, muito católico.

dinheiro é deus.

quem tem olhos, veja.
fiquei cheio de vergonha e quis chorar.
minha mãe logo pegou o poema e leu.
meu avô depois me abraçou e disse "obrigado por ter lembrado de mim".

(quando eu escrevo, nunca sei por quê.
tipo agora)

depois todo mundo agradeceu o meu agrado:
de ter desejado a morte do avô sem que ninguém perceba.
de ter desejado a morte do mundo sem que ninguém perceba.
e de deixar explícitos, no jornal, só o amor e o sobrenome.

...

essas coisas me cansam.
as outras também.
"nasceu cansado" meu pai dizia - e bufava
de frustração.
meu pai morreu.
eu não gostava do meu pai.
mas ele morreu mesmo assim.
como são as coisas...

...

...

...

... aí meus avós ficaram falando de morte e de morte e tragédias e quetais notícias e que hoje ninguém tem deus no coração

no começo eu dou trela, mas uma hora fico cansado

e hoje desconversei dizendo "eu gosto mesmo é de olhar passarinho"

minha vó sorriu na hora: "eles são tão bonitinhos, né"

e eu disse: "também gosto de macacos!"

todos sorrimos e lembramos do gorila.

Querido gorila,

obrigado, beijo.

10.4.11

visnadi

a grande epopeia da
minha família, vinda
da distante hungria no
lombo de um cavalo, num
tempo sem cartório

para as terras secas do
que ainda não era itália

no século xix cartazes diziam
venham italianos para as terras do
brasil construam aqui seus castelos

três meses no mar de uma pessoa invisível
e hoje eu vivo em são paulo de piratininga
fundada por jesuítas contra os ataques de
índios

o grande orgulho sempre foi saber essa herança

a grande lírica seria uma índia
fugida dos hunos, planícies de certa
mongólia desertos tuaregues e um coração
africano batendo em forma de
origem

meu avô olha desconfiado para os pretos.
em outros países me perguntaram se eu era preto.
meu avô escuro mouro não entenderia
como é sutil a cor dos filhos.

vindo há quatrocentos ou seiscentos anos
da distante e ignota hungria
o nome que resta e que faz família
também posso contar de outros jeitos

*

*

*

quem está vivo é porque não
morreu e sempre aparece num instinto.
deus me deu um ovário sem filhos
pra que eu terminasse a raça.
não será o caso: tenho irmãs e
primas que produzirão novos fedelhos.
deus me deu o talento de não parir
e essa é a única esperança da humanidade.

*

quando colhíamos rupestres a tinta das
sementes e pintávamos antílopes nos quartos
das cavernas

meu professor disse que isso servia a
roubar as almas dos animais que queríamos
comer

hoje eu desenho com letras as cenas
de caça dos dias que posso

me acalma essa vaga certeza -
que escrever é roubar minha alma

*

*

*

feito os espelhos que davam aos índios
os portugueses e de brinde a varíola

como uma troia atacada de espanto
pela amizade que corta as gargantas

ou sequestrado em cabana atahualpa
faz do sagrado moeda de troca

eu acordo e durmo enquanto não morro
e penso, melancólico, na europa


eu meus pais meus avós, irmão primos e primas
um acaso do outro lado do mundo de hiroshima

sem passaporte, sem fome

li que encontraram radiação em todos os mares
do hemisfério norte

e que a cada minuto são mortos territórios
equivalentes ao tamanho da bélgica

pequenas rãs pra sempre extintas
e os prédios os prédios os prédios

ó alturas que buscamos
às custas do pequeno

nossa criação é uma desova de fetos
no campo fértil à beira-cova

*

*

*

pano rápido

talvez sem noturno ou
funk você venha um
assovio acaso canta
nãnãnã sem melodia

um colo corrido na
hora do almoço entre
brócolis repolho casca
de holerite e tira

os medos as meias das
pernas a cueca as ice
em velas na minha bacia

e navegue pra longe de
noite manhã e de tudo
o mais que vicia

8.4.11

Well there's nothing to lose
And there's nothing to prove
I'll be dancing with myself

6.4.11

a gente estava numa cabana no uruguai e tínhamos o costume de jantar na cidade, andando sobre as pedras e desviando da maré que subia. foi lá que eu entendi tudo o que me diziam sobre as pedras. a gente se sentava e gastava horas surpresos como japoneses segundos antes do flash.

naquele dia tivemos um desentendimento pequeno que nos atrasou. foi a sorte. eu chamei a carolina para ver as ondas altas que se formavam, mas não adivinharia e só acreditei quando a segunda bateu na nossa janela. gigantescas ondas, cobriam tudo e se dissipavam. depois vinha outra, e outra. abrimos o vidro um pouco e logo fechamos. a massa de água batia contra a casa, inundou a cozinha, ilha aérea e tormenta

que se acabe logo o mundo

agora já faz umas semanas que fico reclamando
não consigo escrever não consigo escrever
tento ser solene e não dá nada
parto pra piada pronta e não dá nada
não ando dando nada
anuncio aqui mais uma vez minha definitiva demissão do mundo
os amigos vão se encher de tristeza "ele
pulou da janela" não encontram o corpo haja
iml pra me achar

saio da escrita pra entrar na memória

aí tem aquele poema do fernando pessoa que
diz que depois você só vai ser lembrado
aniversariamente na data da vinda e na data da
volta

fernando pessoa também era cheio de frases de efeito

meu pai morreu e eu lembro dele aleatoriamente.
a primeira vez que esqueci do aniversário de morte foi
porque estava trabalhando muito. me senti mal e
negligente. não que isso importe.

sobre isso, também, não consigo escrever.

sento num bar e começo um flerte. ou hoje no
ônibus um menino me olhando e sorrindo. muitas
histórias começam com uma pessoa que você não
conhece te olhando de um jeito que você não
entende. desci do ônibus continuei sem entender.
ele olhava pra trás enquanto o ônibus ia.
morro de medo de um ataque homofóbico.
na hora que acontecer ninguém vai me salvar.

*

ninguém te salva.
jesus um cocker spaniel nos dias
meses e anos da minha avozinha.

vovô teve um derrame,
vovó caiu da escada.

ninguém te salva.

o cão uivando chama a atenção
dos vizinhos. jesus é uma
sirene de canto irresistível.

"desgraça! desgraça!" ela grita

ninguém me salvou hoje quando eu
saí do teatro e não dei aquele
grito que ninguém escutou
desde os tempos de drummond
e ninguém salvou o drummond
o poeta não consola a herança
temos um rito passageiro
e moderno - morrer
sem amor por perto

*

imagino ondas de lava
radiativa invadindo a cidade

japoneses mortos esqueletos
despejados nos nossos heliportos
sobre os nossos medos

imagino meu medo se encolhendo
e deformando, vai restar
cancerígeno para o que sobreviver,
futuro

nenhum refúgio é tão seguro

amanhã sairei na rua
atento, banal

quanto isso
nenhum desastre é tão normal

3.4.11

lunar

o corpo saudou a noite
então perdi o verso seguinte
agora te encaro sonolento,
sem saudade, e a noite guarda
castanha o meu corpo
não soube muitas coisas neste dia

o corpo saudou a noite
enquanto o próprio corpo anoitecia
recebo-a com salas de parenta
mais velha e o corpo cala
atento à visita, saudei a noite
enquanto o próprio corpo anoitecia

(terceira tentativa)

o corpo saudou a noite

o que me invade são os dias

1.4.11

voltei pra casa sem pensar muito nisso, acho que fiz bem, a noite está castanha, me vêm acontecimentos que

Novo texto:

agora, que sou profissional, só escrevo para o agrado do público. Disso advém uma insatisfação constante. Não tenho público, tenho, me sinto muito sozinho sem encontrar palavras. A noite está castanha como ninguém que eu conheça. Não conheço a noite.

Outro texto:

não, ainda não mandei o documento. Antes de voltar pra casa parei num bar. Flertei com um cara que foi civilizado e me disse que não gostava de homens. Não apanhei. Descobrimos que eu conheço o irmão dele de uma esquina em Buenos Aires. Antes disso, de uma esquina na Rua Augusta. Rimos e dissemos: que coincidência! A vida é mesmo muito louca. Hoje andei por Pinheiros gostando do bairro e querendo estar longe, longe, lembrei que desenhava as bandeiras do atlas em folha avulsa, coreia, japão.

Mais um:

Discuti a historicidade de Clarice Lispector e a luta de classes.

Tentativa:

Não consigo escrever mais nada que preste. A escrita vai sempre ser essa falha? Olho o amor com desconfiança de quem escreve. A noite está castanha e amanhã haverá outra, com homens castanhos sumindo nela, todos os homens são pardos, bom estaria fazer uma prova do conhecimento, estou desconfiado, não sei de nada, vou pensar mais um pouco, anotar "que amanhã devo enviar o documento", ser autor pra poder morrer, me despir, e depois disso apago a luz