Ela era que nem ter férias, mas eu quase não me lembro. Fazia cosquinha na barriga e, imagino, tinha uma voz meio esganiçada, meio gaguejante, mas também muito terna e envolvente, habilidosa no ofício de agradar.
Chegou sem muito aviso prévio e ficou tempo o bastante para que eu estranhasse sua ausência, até que me avisaram "tia Rute foi embora" e eu amuei, cinco anos de idade, e achei um descaso um desrespeito UM ABANDONO que nem tchau ela tinha falado. Era a irmã da minha avó e eu sempre tive um tesão especial pelas velhinhas, frequentava a casa de todas as vovós da rua, mesmo as que não tinham netos, e às vezes elas eram minhas amigas mais do que as crianças. Passávamos as tardes conversando e colorindo e comendo bolachas.
Aí eu ficava esperando que a tia Rute voltasse. Lembro que durante muito tempo toda campainha era ela, cada pessoa que chegasse, mas nunca mais a vi.
Um dia me contaram, acho que minha mãe, que ela saiu de casa porque quis ir um dia de minissaia à igreja e meu avô não deixou. Eles brigaram, ela pegou as coisas dela e foi embora. Faz sentido porque eu nunca estava com os meus avós no domingo de manhã, então não vi nada disso.
Depois, acho que eu tinha uns onze anos quando a gente estava passando de carro por Itu e minha mãe soltou, através de uma praça escura, "acho que foi aqui em Itu que a tia Rute morreu". Falou isso como se fosse qualquer coisa, mas eu fiquei cho-ca-do e quis saber mais. Tia Rute tinha morrido?! "É, de aids". Porque a tia Rute era "stituta", na linguagem da minha mãe, assim como quase todas as irmãs da minha avó foram.
Faz coisa de um ano, talvez, eu e minha mãe olhávamos um bando de fotografias velhas e foi novamente ela que anunciou "aqui tia Rute". Uma moça de nem vinte anos, de vestido claro e rodado à moda do começo dos anos 1960. Ao lado dela, um rapagão bonito e bem apessoado, que minha mãe inocentemente disse não conhecer. Ele estava com uma camiseta colada ao corpo forte, grandão, um topete, a jaqueta segurada pela mão no ombro e, ao lado, um carro da época. Tudo muito típico. Assim como o sorriso da tia Rute, boca fechada sem timidez, gostosa no vestidinho bonito, ao lado do homem.
Mas a única lembrança que eu tenho dela, um pouquinho mais nítida, é de um dia, talvez domingo, estarmos no quintal conversando. Acho que as roupas eram de domingo. Ela se arrumava ao espelho e tirou de dentro dele um frasco de Biotônico Fontoura, bebeu em colher de sopa o líquido preto e me ofereceu. "Quer experimentar?". Era um frasco enorme, cheio daquela água escura e esquisita. Eu tinha muita vontade de provar, mas também tinha nojo. E não lembro se provei.
12.8.10
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desde manhã aqui aberto, agora li. é bonito, mesmo.
ResponderExcluirjá ouvi dizer que a prostituta "é puta por todos" (acho que foi o Nelson). Mas ela redime também, a todos.
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