9.5.11

tem gente que diz que o melhor mesmo é você não ter tempo pra pensar. Sempre fazendo, sempre fazendo as coisas. E assim os dias passam e te fazem, você vira barro nas mãos do dia, argila e tão sossegada. Eu volto pra casa cantando uma música. Eu durmo, quando posso. Ela é uma mulher que nunca teve dor muito grande. Digo, dessas que se espera, a tragicidade da vida verdadeira. Tinha filhos vivos, marido vivo, pais vivos. Perdera os avós muito cedo, mas ninguém passa completamente incólume. E aquilo já tinha passado. O pior já passou, ela pensava, quando se dava conta de que sua vida era feliz. "E virá", imaginava. Tinha medo de não aguentar. Mas, no geral, não pensava em coisas muito ruins. A vida era uma história e as histórias têm pouca surpresa. A história do planeta é a mesma desde sempre: ele gira, gira e gira, Deus é o mesmo e pai eterno, há dias e noites infindáveis sucedendo-se. Há sol, há chuva. Há monstros mortos nunca vistos, há uma multidão agitando-se e morrendo, há ela.

Ah, ela.

Que volta de ônibus sem esperar o pior. No máximo, (nem pensa) essas desgraças que a vida reserva - mas ninguém nunca morreu por causa disso - um filho homossexual, a filha grávida aos quinze, acontecia na vizinhança, ela sabia das notícias e pensava "nossa...". E pensava: "Minha nossa...". Era secretária numa firma de. Ninguém pedia a sua opinião. Atendia a telefones. Se a história estiver chata, pare de ler. Se a sua vida é mais interessante, faça como ela: que não está lendo história alguma, apenas olha a rua: árvore, cachorro, gente, lanchonete.

Tem sorte de trabalhar só até as cinco da tarde. Entra muito cedo, mas gosta de sair cedo. Vem outra render ela pro turno da noite, ela chega em casa e ainda é sol. "Há sol", ela sabe. Mas não se diz. Gosta do sol. Agora acho que estou sendo em parte cruel, em parte bondoso, porque estou contando sobre essa mulher como contaria de um cachorro. Admiro e invejo muito os cachorros, que imagino mansos com o tempo, autômatos e estúpidos. Um cachorro fica alegre ou triste, óbvio que tem sentimentos. Mas, fora isso, é sempre um cachorro. Diferente da gente, que não sabe o que é.

Mas eu não queria ser essa mulher. Que agora abre a porta de casa e entra. Eu gostava agora de dizer "DEUS" e interromper o dia dela, mas de nada adiantaria. Deus, para ela, é uma certeza doméstica e obediente. Ela acredita em deus como eu acredito nos cachorros.

Ela abre a porta, tranquila e, antes que a tranquilidade a abandone - porque ela ainda não viu que a cozinha está revirada, que há sangue da filha no chão -, um golpe pesado acerta-a na nuca. Quando o marido voltar, encontrará o cãozinho assustado ganindo debaixo da cama.

***

esta história pode ter muitos desfechos. Talvez eu volte a escrevê-la um dia, só para eleger o melhor. Vamos supor que nada aconteça. Ou que uma bomba caia sobre as nossas cabeças. Uma guerra é tão improvável quanto a nação brasileira. A violência é tão fascinante, e nossas vidas são tão normais. Vamos supor que. Ah, que haja amor. Além de sol. Eu não acredito que mais nada possa acontecer. Tranquei as portas da casa e esta noite vou dormir sozinho ouvindo Chopin. Gosto tanto de Chopin...

Um comentário:

  1. se essa história se passasse em Londres, na segurança dos melhores bairros de Londres, onde se dorme de porta aberta e uma raposa sobe até o segundo andar da casa para atacar gêmeos dentro de um berço.

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