18.9.11

aleatório

havia uma viagem agendada

pegava outro gato e guardava

numa caixa grande feita pra isso, posta no mais fundo da construção

os bichos começavam a comer-se uns aos outros

eu agendo a viagem, guardo os gatos e me vou

*

os escorpiões, se passam fome, têm filhos pra comê-los

já uma barata chega a tal êxtase de sobrevivência que come-se a si mesma

faz assim:

come terra madeira repolho o que tiver

em não tendo come os filhos

em não tendo come as asas

(a minha cozinha está cheia de baratas

e eu acho que elas têm mais direito de estar ali do que eu)

*

li hoje uma entrevista que me fez pensar

se eu não deveria assumir o papel de escritor como uma função social de fato e de direito

e buscar deliberadamente uma renovação da tradição ou algo assim

o segundo suspiro desse pensamento me trouxe uma velha preguiça

olhei minhas asas: não tenho vocação pra ser barata

(hoje, por exemplo, trabalhei como um adulto)

*

ou: tenho vocação, mas depende da barata.

queria conseguir escrever uma história bem bonita.

queria inventar uma personagem agora. vou tentar:

era uma vez. a blusa estava pendurada no cabide. eu passei pelado do lado de fora daquela porta. tinha o cheiro dele no meu corpo e na blusa, mas nunca nos encontramos. um dia a blusa foi emprestada para um amigo dele que eu nunca conheceria. depois esse amigo devolveu a blusa. passaram-se anos. eu vim morar em buenos aires e quando me perguntam "por quê" é sempre terrível, porque não sei dizer. tenho uma cozinha cheia de baratas e hoje trabalhei como um adulto. mas aí eu comecei a escrever uma história qualquer e apareci como personagem. era o que faltava pra que o feitiço fosse quebrado: deixei a vida para entrar na história. "claro", pensei, "é óbvio que eu não tenho corpo", só tenho linhas e caracteres. e uma verossimilhança falha, meu verdadeiro talento. e era noite e eu deixei de existir exatamente no próximo ponto final, que vem: agora.

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