havia uma viagem agendada
pegava outro gato e guardava
numa caixa grande feita pra isso, posta no mais fundo da construção
os bichos começavam a comer-se uns aos outros
eu agendo a viagem, guardo os gatos e me vou
*
os escorpiões, se passam fome, têm filhos pra comê-los
já uma barata chega a tal êxtase de sobrevivência que come-se a si mesma
faz assim:
come terra madeira repolho o que tiver
em não tendo come os filhos
em não tendo come as asas
(a minha cozinha está cheia de baratas
e eu acho que elas têm mais direito de estar ali do que eu)
*
li hoje uma entrevista que me fez pensar
se eu não deveria assumir o papel de escritor como uma função social de fato e de direito
e buscar deliberadamente uma renovação da tradição ou algo assim
o segundo suspiro desse pensamento me trouxe uma velha preguiça
olhei minhas asas: não tenho vocação pra ser barata
(hoje, por exemplo, trabalhei como um adulto)
*
ou: tenho vocação, mas depende da barata.
queria conseguir escrever uma história bem bonita.
queria inventar uma personagem agora. vou tentar:
era uma vez. a blusa estava pendurada no cabide. eu passei pelado do lado de fora daquela porta. tinha o cheiro dele no meu corpo e na blusa, mas nunca nos encontramos. um dia a blusa foi emprestada para um amigo dele que eu nunca conheceria. depois esse amigo devolveu a blusa. passaram-se anos. eu vim morar em buenos aires e quando me perguntam "por quê" é sempre terrível, porque não sei dizer. tenho uma cozinha cheia de baratas e hoje trabalhei como um adulto. mas aí eu comecei a escrever uma história qualquer e apareci como personagem. era o que faltava pra que o feitiço fosse quebrado: deixei a vida para entrar na história. "claro", pensei, "é óbvio que eu não tenho corpo", só tenho linhas e caracteres. e uma verossimilhança falha, meu verdadeiro talento. e era noite e eu deixei de existir exatamente no próximo ponto final, que vem: agora.
18.9.11
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