29.10.10

noturno

na casa estão todas as naçoes
do mundo, conversam
na linguagem universal do amor
vazio, esse que fica ao meio
em traduçoes de má vontade, eu
arrasto desde os primeiros
tempos da humanidade uma língua
sencilla que não dá conta
do tanto que tem pra lamber,
sou uma ilha na casa do mundo

26.10.10

os ossos das aves sao bem
leves nao servem de peso
aerados na verdade os ossos
mesmo das vacas da gente
o que pesa é a coisa que
paira e às vezes pousa

eu dei de morar nas
pernas dos rapazes, eles andam e eu
caio por um fio fico dependurado outras
asas te levam num ninho

22.10.10

acabo tenro
uma gordura quente que derrete a
faca de plástico você me
fala e parte ao meio, nao resisto

guardo as coisas que o dia me deu
numa caixa sob a cama

meus primeiros medos moravam sob a cama

hoje eles sao menores
mas se escondem nos lençóis
quando eu vou dormir é um fio invisível o que puxa
as pálpebras pra baixo, noite

história dos tigres na argentina

rajados
vieram com o marajás em navios
o fim do mundo habitado
e instalaram-se ao norte do prata
os tigres em cataratas
comendo os heróis românticos

a história verdadeira é que os hindus
chocados com a morte das vacas
transformaram-se bruxos milenares
no grande tigre americano
gostoso da carne da gente

os tigres que faltam em java

os tigres que faltam aqui

agora sao os porteños
exaltados com os pintos nas pernas
andam por aí como se fossem felinos
da floresta

no escuro, não, no claro

Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê,
pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá.

13.10.10

escrevi uma carta chamada rancor

*

aí percebi a ficçao dos destinatários
mandei cartoes postais como quem dorme
e no sonho percebe que sonha
e nao sabe se o sonho do sonho é outro sonho

*

nota de método: só escrevo quando nao entendo.

escrever é um jeito de entender.

quando entender nao for mais importante.

nao isso de vida e morte, esses porquês.

o que eu nao entendo é o vácuo do universo.

hoje formulei uma proposta: de que o vácuo vai ser preenchido
pela vontade falha das estrelas
que vao crescer até tomar tudo
fazer luz infinita.

luz infinita é a imagem de Deus na Divina Comédia.
eu nunca consegui ler o Paraíso
que é só luz e fica mais chatinho,
ou entao será algo da idade e da subjetivaçao burguesa
ir aos poucos e nao ter olhos pra além do castigo.

planos de fuga do castigo.

o que os cantores chamam baby.

*

e tenho descoberto muitas coisas,
como por exemplo que os índios raptavam as brancas
e no deserto dos pampas rasgavam-lhes as solas dos pés
pra que nao fugissem.

*

depois acabei concluindo que nao mandei a carta.
hoje eu acordei de um jeito que nao vai interessar pra ninguém.
nos pampas declamando às vacas versos longos e ressentidos.
estou lendo toda a literatura argentina e vou sair daqui melhor do que entrei.
isso aqui é um diário.
oi pra você.
vou contar outra história:
da cordilheira que se formou com fúria
veloz no tempo geológico
humanos nao viram ela crescendo
acho que o ser vivo que mais vive é uma árvores que esqueci o nome
e chega a quinhentos anos ou mais
a professora da terceira série mostrando
eu tinha muito amor pelas árvores, fiquei imaginando
as linhas dos troncos
contando a história do mundo
sem palavras.

agora outra história:
era uma vez o deserto
e o mar
e as outras coisas
e as elipses em volta do fogo
e a gente
e os correios que a gente inventou
pra escrever pra quem tá perto
e o deserto,
Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.
Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
– Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.

(Bandeira)

10.10.10

falkland

piratas porque bombardeiam de novo as ilhas perdidas
num atlas histórico monumentos pátrios eu procuro
as ilhas na rua enquanto ando leio nos muros relatos

depois fico encolhido na bichice: de dizer ai
essas ilhas meu amor baby essas ilhas
que são gêmeas e estrangeiras e ocupadas pelo reino britânico

como se o amor fosse o espólio desse império
como se eu pudesse dizer amor e mortos no afeganistao
sempre que queira

*

confissão: que tudo o que eu escrevi até agora e elegi só virou carta depois de escrito eleito, e não tem destinatário porque dessa eu tenho medo, a carta selvagem gritando em português o indefensável, mas eu defendo.

*

passei a manhã trabalhando na rua e a tarde lendo no parque
trechos preciosos de uma entrevista com vargas llosa
o repórter pergunta "você sabia como ia ser sua vida"
e o escritor responde: que não, nem tinha ideia.
ganhou o prêmio nobel e um dia concorreu à presidência do peru.
recebo a notícia como um travesseiro.

*

criei uma vida substituta na qual eu não existo. então calço os sapatos e vou pra rua, senhor de mim.

*

ah, uma outra coisa que o vargas llosa disse, essa também muito preciosa:
que a gente escreve pra não ser infeliz
nunca tinha reparado nisso, mas me parece.

5.10.10

geográfico

uma menina grande e barulhenta chega ao hostel
eu nao quero mais solicitude, mas vou me esforçar pra nao ser cruel
nao tenho tido vontade de escrever no blogue
por outro lado meu caderno escorre pelas páginas
comprei um caderno com um tigre na capa
tigre
e hoje comprei dois livros do borges, num ele fala sobre tigres
descobri que o borges e o cortázar escreviam no deserto
uma hora eu vou descobrir que tambèm escrevo
o deserto é um ecossistema complexo
os primeiros europeus na argentina diziam que os pampas eram mar
de terra, assim como na água nao se tem referências
para nada, barbatanas te amam

a argentina é a última fronteira do sul

mas entre dois corpos o que tem nao é fronteira
mas sempre - um gap, um abismo

/////////////////

2.10.10

como se nada fosse doce / policiais torturando nas selvas do Peru / eu ouço a notícia sem entender o castelhano, mas parece que forçavam-nos a andar descalços sobre flechas no meio da rua e sem roupas batiam quebravam-lhe os ossos e água e fogo e terra e a gente quando tortura usa todos os elementos / só nao ouvi ninguém dizer de tortura com açúcar / se bem que agora penso: na cultura caneeira / olho com vontade pro pote de doce de leite / acho impressionante que a gente ouça dizer de crueldades e ainda tenha vontade de doce de leite / tem um poema do ferreira gullar em que ele fala do açúcar branquinho na mesa burguesa e o caminho do açúcar até lá / a burguesia é a classe universal, entao nao se trata mais disso / nao desse jeito tao pao-pao-queijo-queijo / a gente é capaz de malvadezas que nem sonha a imaginaçao /