9.9.12

que morde

esta oficina mudou de endereço

agora escrevo aqui:


fim do mapa.

16.8.12

adeus

era uma vez uma galinha

que tinha prisão de ventre

no seu ventre havia um ovo

o que se prende apodrece

falta ar

tudo apodrece

mas o que está preso apodrece diferente

ninguém conseguiria comer o ovo, pra sempre preso

nem comer a galinha, fedida e estragada

"amor guardado vira câncer", alguém disse

mas não devemos atribuir juízo moral às doenças

e aquilo não era amor

era apenas um ovo, diz a galinha

*

há muito tempo não vejo animais

ontem matei uma formiga e vi uma pomba esmagada

quis fugir para o cerrado, mas tive medo de cobra

e fiquei por aqui, mesmo,

sem galinheiro, sem minhas vizinhas de infância

que criavam coelhos e pombas pro abate

*

hoje acordei me sentindo um ovo

prometido no cu de uma galinha inventada

há meses minha conta no banco míngua

e eu tentando escrever a história da humanidade

e algo útil que entretenha e edifique meus contemporâneos

leio as cartas íntimas de um escritor que gosto

e penso "não devo mais escrever em primeira pessoa"

o fim do capitalismo, a implosão do sol

uma vida eterna de paz e harmonia na presença de Deus

me boto altos objetivos enquanto trabalho

dez horas por dia na esperança de não atrasar

outra vez

o aluguel

*

se nada mais der certo

meu amor minguar e a conta no banco implodir

se o trabalho faltar e tudo o mais não nascer

no caso extremo de o mundo nunca acabar

e a ruína for um destino pessoal que nada tenha a ver

com vocês

espero que o meu diário deixado num endereço anônimo

da rede mundial de computadores

essa metáfora datada da mensagem na garrafa

mas uma carta de prisioneiro escondida atrás do vaso sanitário

neste mundo de gente solta e satisfeita, quem tem a chave

das nossas celas eu não sei

a solitária

mas eu espero que esta carta

se não comida pelos ratos, que comem tudo,

sirva de companhia, algum dia,

para quem também estiver preso, de mentirinha,

no cu escuro, apertado, sem saída

de uma galinha

14.8.12

Hagiografia de Simone Weil

diz que Simone Weil, que no frio inverno da França largou a vida de intelectual universitária para trabalhar como operária nas fábricas, e magra doente com a mão atrofiada deixava de comer e não tinha calefação interna no pequeno quarto que alugava, passava frio e mal tinha par de meias, inalando diariamente as fuligens e os desmandos e enfrentando as máquinas quentes e o vento gelado da rotina de trabalhadora,

ela, que poderia ter uma vida mais confortável - embora fosse a década de 1930 e os nazistas logo invadissem a França, forçando sua família e seus conhecidos a migrarem a outros lugares, ou encerrando-os em campos de concentração de onde  poucos sairiam vivos, exterminados por aqueles que só queriam o bem de todos, quanto tempo você acha que dura o seu conforto? -

ela, que por piedade e profunda comunhão com tudo o que é humano e sofre, e que teve vida exemplar de santa desde criança, quando sua mãe a tirou do banho numa noite fria da França e ela, tremendo de frio, dirigiu-se a si mesma, três anos de idade, e disse ao seu próprio corpo, ela que era força: "Tremes, carcaça?", e depois, mais velha, moribunda num hospital inglês, recusaria qualquer comida e qualquer tratamento porque a maior parte da população humana tem fome, não tem o que comer, e são todos iguais eu, iguais você, só que diferentes porque não têm o que comer, e que nos lembra em certo momento, em um de seus textos, que a maior parte da humanidade nunca sequer chegou perto de um banho quente

Diz que Simone Weil, um dia, ao conversar com seus companheiros de fábrica (ela que vivia sem calefação e sem meias, como já explicado, e era inverno, nevava na França), espantou-se ao saber que eles, com o mesmo salário, viviam menor privação que ela, porque não a buscavam

13.8.12

estados físicos do amor

no mar e
meio a torre

um barco
desabitado

*

das
árvores e bichos
que aqui viviam

vieram os homens com seus
asfaltos
cascalhos construíram lares
e às portas da cidade a zona
cercaram hospitais, cemitérios,
recebiam o circo, seu espetáculo

os homens

*

árido quente durante
o dia, o deserto realça
vida durante a noite:
répteis devoram mamíferos
a areia alacra escurecida
os cactos suspiram que bom
que o deserto tem vida
e o vento refaz
a paisagem
despida de oásis confunde
a caravana atravessa
camelos, tuaregues

*

nenhum guia
de turismo é digno

mamilo, pelos
olhos, o pescoço

manhã
que acorda
noite

vapor
que esculpe
gelo

11.8.12

consciência histórica; berço

eu conversava com um amigo espanhol, em Buenos Aires, e ele me perguntava da história do brasil.

"então, quer dizer que você nasceu sob uma ditadura?!"

(nasci em 1984)

ele ficou muito surpreso. (mas não tanto quanto eu.)
escrever também é sintetizar um conhecimento / o narrador, de Benjamin / que é o conhecimento dos tempos e espaços longínquos, mas tão próprios da pessoa que lê / no sentido em que a literatura é didática, pedagógica: ela ensina / o motivo que nos trouxe até aqui, e nos levará aonde ainda não sabemos com a razão diária, mas talvez saibamos de outros modos / lo que buscas te busca / o caminho da arte (fazê-la e apreciá-la) não é o da mesquinhez / a experiência artística é oposta à mesquinhez

6.8.12

quando eu era criança
eu e meu irmão tínhamos
dois pintinhos
que as crianças da rua vinham visitar
e todos brincávamos
de jogá-los para cima e vê-los
desesperados
tentar voar

lembrei disso agora
que decidi não matar mais pintinhos
nos textos literários
embora continue comendo frango, imagino
o arraigamento de certos hábitos

de todos.
viver é um hábito que eu não
perco as esperanças de adquirir
li em algum lugar.

pois bem.
esta é a história do pintinho.
que, enquanto as crianças não vinham, mal se lembrava
que tinha duas asas.
elas não lhe faziam falta.
ele ciscava no quadradinho do quintal.
a minha vó dava comida para todos nós
os pintos, meu irmão, meu avô e eu
depois ela saía de madrugada pela rua com medo de assassinos
vinte anos depois eu acordo de madrugada
e resolvo amar, sem ser assassino,
aquele pintinho.

31.7.12

a maior cantora do Brasil

contam que
numa mesa de bar
chegou Geraldo Vandré
chamado por Caetano
"Geraldo esta é Maria da Graça"
e assim foram apresentados

Maria da Graça recém-chegada da Bahia
dezessete dezoito dezenove anos de idade
pouco tempo mais tarde chamada de Gal

eram anos duros no território brasileiro
porque pobres eram desalojados
índios e negros eram mortos
militantes políticos eram perseguidos
ou qualquer um que se confundisse com os acima mencionados
tinha destino menos feliz
que aqueles três, momentaneamente,
numa mesa de bar pensando em futuro
conversando num bairro do Rio de Janeiro

"Geraldo, estou compondo umas coisas
Maria da Graça e eu
canta pra ele, Gal"

e a menina
com linda voz de passarinho
sem voo
canta

você
precisa saber de mim
baby
na lanchonete
você
precisa aprender inglês
baby
i love you

Geraldo escutou
depois não disse nada
mas levantou-se furibundo,
deu um murro na mesa e gritou

ISSO É UMA BOSTA!!!

e saiu para a rua
peremptório

Caetano
ainda orgulhoso de sua arte
e do que viria a ser a cultura
brasileira
(segundo as Organizações Globo)
não entendeu ou achou de mau gosto
reação tão pouco generosa

Maria da Graça
temendo suja sua piscina
ofendida sua carolina
inútil sua margarina
- e, afinal de contas,
há pessoas que querem ser
só uma menina -
assustou-se
e começou a chorar

27.7.12

jesus
tropeçado nas nuvens
deu de cair antes da hora
pra desgosto do pai
a praça
de são pedro
logo se encheu
o silas
malafaia
cagado de medo
e de alívio
pediu perdão
perdão ao salvador
na cidade de salvador
os orixás tiveram tédio
jesus pigarreou
envergonhado
eu queria
que nada disso
tivesse acontecido
de repente
um novo calvário
em dia útil
jesus
se o senhor quiser
pode se esconder aqui em casa
te lavarei os pés
com água boricada
comprei hoje na farmácia
depois limpo
as tuas chagas
com beijos
de beata
jesus
em troca
um vinhozinho
vai bem
aqui
na minha casa
a gente adora
hospedar
e ninguém
(pode crer)
salva
ninguém

21.7.12

"Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita."


(CL)

20.7.12

pra que
casa
quarto
cama
chinelo
melhor
era
deixar-se
caído pó
no canto

pra que
rua
passo
carro
trabalho
melhor
era
deixar-se
varrido pó
no vento

pra que
peso
propósito
passado
pilhar
melhor
era
deixar-se
futuro pó
dos outros

18.7.12

Quando lhe falta o demônio
e Deus não o socorre,
quando o homem é apenas homem,
por si mesmo limitado,
em si mesmo refletido;
e flutua
vazio de julgamento
no espaço sem raízes;
e perde o eco
de seu passado,
a campainha de seu presente,
a semente de seu futuro;
quando está propriamente nu;
e o jogo, feito
até a última cartada da última jogada.
Quando. Quando. Quando

(Drummond, "O padre, a moça")

13.7.12

como é que faz

se o meu corpo me diz

não te quero mais

e falta tanto por descobrir

o povo tem fome

de pimenta-do-reino

as caravelas esperam

feito águas-vivas do porto

desbravaremos continentes

mas não eu

coberto de escorbuto

prévio a negra peste

mãos esquálidas sem remo

fico jovem

nem pra velho do restelo

as portuguesas choram

as noivas ficam por casar

o mar engole meus companheiros

num futuro de horizonte

terra redonda que some

e eu

manhã

que medo

acordo tremendo

deitado na areia

rápido se esfria

na madrugada

sem água

o sol queimando

o sarcoma de kaposi

naufrágio na terra

dos meus pais

como é que eu faço

se o meu corpo me disser

não te quero mais?

12.7.12

profilático

a aldeia foi atacada

por uma praga inaudita

e estava isolada

nômades e misantropos

guardavam-se entre si, seus afetos

bolhas na pele, dores que rasgam

parecia mesmo ser mais sensato

num tempo sem sanatórios

que os habitantes saíssem à floresta

e caminhavam sozinhos, apenas

visíveis uns aos outros, à distância

para evitar o contágio, deixamos

de nos beijar e bater, quando

queríamos dizer alguma coisa

a alguém, fazíamos sinais

de longe ou gritávamos

de longe ou ainda

em desenhos nas árvores

mostrávamos o toque

que não podíamos a não ser

nas árvores

10.7.12

o ano mais difícil de nossas vidas

todas as tartarugas
rompem ao mesmo tempo
ou quase
seus ovinhos
de casca mole pra répteis
tão duros, nascidos nos dinossauros
depois atravessam
uma vez eu vi
na televisão que uma cidade
tinha migração de sapos no meio das ruas
ou seriam aligátores
crocodilos mais que grandes
mal nascidos e já migrantes

depois
conseguiram um salário
e contas a pagar
subiam a correnteza
pulando contra as águas
até que um urso os pegasse
salmões?

nos reunimos
eu e os bichos
pra trocarmos experiências
eu conto que contraí uma doença
e antes disso já fui hippie
embora tudo seja meio mentira
mantivemos a música dramática
depois comemos o salgadinho
enquanto os colegas de trabalho balançavam a cabeça
compadecidos e diziam
"que dureza..."

duro
é o que eu tenho entre as pernas
que acorda
apesar de tudo
mesmo quando eu não quero
e sai da toca
se arrasta na areia
e chega no mar

grande água na nossa carapaça
sal e rumo sem fronteiras de correntes
no entanto solte um bote à deriva
ainda que afunde         ele chega
ainda que aporte          ele entrega

filhotes de futuro diluídos no presente
antigas técnicas de decantação me são passadas
depois de tantas vezes que eu não morri
durmo adulto sobre os bens adquiridos
mas faço, da matéria que não tenho:

um casco que sustenta
às minhas costas, quatro elefantes

nas suas trombas, continentes,
tudo o que você quer
mas também tudo

aquilo que ninguém nem imagina

existir

9.7.12

asilo

A senhora não pode deixar o país. Mas aqui não é bem-vinda. Faça o favor de entender. Dá-lhe um soco. O soco é o favor. Faça. Depois a arrasta obediente até a cela. As outras presas acolhem e no dia seguinte ela é sacudida, sufocada, posta em avião e extraditada até o exterior. Chega sem passaporte. A senhora não é de nenhuma terra. Então a prendem na cela do aeroporto. Se isto fosse a cordilheira. Se o mundo fosse casa. A Terra engole quem é dela. A senhora pode, por favor, se apresentar? Chega cansada. Sai na foto de peruca. Perdi meu filho, perdi meu cachorro, perdi a hora de voltar atrás. A senhora está testando a minha paciência. É que aqui, no estrangeiro, a gente nunca sabe direito a quem se dirigir. O meu era com leite! Desculpe. A senhora entende? Mas isto é melhor que o seu país. Eu não tenho país. (Estou tão cansada.)

8.7.12

tão

próximo do sonho burguês

como jamais estive antes

ainda não é o momento

de pedir desculpas para mim aos quinze anos

nem arrego

pro futuro dos meus cinquenta

sozinho

em casa trabalhando

encontro na gaveta

um tempo (sempre foi)

de estar atento

7.7.12

eu queria uma parede

da praia ergueu-se

os vegetais me abraçaram lastimosos

segundo desejo

eu queria um peixe

o céu nadou ao nosso encontro

a gente se afoga todo dia

bate o recorde no canal do panamá

une oceanos pelo comércio internacional

pirataria sem carinho

terceiro (e último) desejo

a boca morre no eu queria

todos esperam suspendidos

os queixos dos micos caídos

e os grilos desacreditados

deixam de esfregar o canto das pernas

"o que vai ser?" pergunta o silvio santos

o sonoplasta que tem dois filhos

que ele nunca vê e torce pro palmeiras

coloca uma música de suspense

boceja sem suspense

o sonoplasta é o meu pai morto há sete anos

"o que vai ser?" pergunta o silvio santos

"será que ele vai conseguir?" eu me pergunto

os colos dos meus amigos

secam ao sol e ao tempo

fossilizados meus amigos no eterno

serão incógnitas aos que escrevem sobre a morte

da nossa espécie a derrocada

da raça humana

"o tempo está acabando" diz o silvio santos

agora é a última hora

olha

cada dia é o último dia

cada minuto é o primeiro impulso

se você joga a bolinha no abismo

o cachorro pula do abismo

porque não tem noção espacial

e quer a bolinha

CINCO

meu bem

QUATRO

mãe

TRÊS

ninguém

DOIS

eu queria

UM

seu desejo

é uma ordem

4.7.12

saturno na soleira

a origem do universo

os planetas redondos

se chocam porque órbitas

foi assim que aconteceu

provavelmente antes de júpiter

após marte

o cinturão de asteroides

***

o globo ocular
não sabe nada do outro globo ocular
fecham-se abrem-se
os dois ao mesmo tempo

um não sabe nada do outro

***

se sabias que eu não era eu

se sabias que eu era arco

***

a clara me conta
que estamos num universo
paralelo por obra de ETs
que manipulam nossa vida na terra
por motivos que sequer suspeitamos

há gente que diz ser ouro
a ambição dos deuses ETs
que pra mineração nos criaram
raça de escravos revoltados
ou inúteis

me dou bem com o destino
de minerar para quem não sei
algo que não faço a menor ideia
enquanto seres mais desocupados
brincam de mudar-me, sem que eu saiba,
de terra

a clara disse que é só buscar
new zealand out of place no google
pra você ver o quanto de gente
há que evidencia movimentos
muito estranhos das ilhas
conhecidas

eu mesmo mal acredito
que tenho um corpo-matéria
envolto num musgo-abstrato
e que o dinheiro do aluguel
exista junto do amor inventado

de tanto tentar viver
tem gente que se mata

22.6.12

tem um dente nascendo na fossa

com amigos faria uma fossa dentada

quem caísse ia sofrer

a fúria da mastigação saudável

o dente está sozinho

darwin veio de navio pra ver o dente

o navio quase tropeçou

era o dente do titanic afundado

exceto que em águas tropicais e pouco navegadas

porque nada tinham de mais

encostado contra o céu

pena o bruxismo toda noite

desgaste até que quebradiço

as gaivotas sobrevoam

sem interesse

depois pisam no esmalte oco

fazem seus ninhos no dente

esta é a triste história de um dente

crescido longe da glória

longe do leme

até ficar velho e podre

e ser levado pelas ondas

mas para espanto de todos

tropeçando descobre:

era um dente de leite!

coração

o coração
por ser órgão oco e escuro
muito úmido
cria fungos

*

que são decompositores
transformam a vida
em avesso e origem dela mesma

11.6.12

a gente ficava vendo desta janela
adivinhava a rota dos aviões
que era sempre a mesma

hoje, agora há pouco, não se via nada
tanta a chuva que caía na paisagem

é uma janela sacana:
transforma são paulo em paisagem

nos últimos anos, com a piora do sistema de transporte,
ela serve também pra avisar
que a rua está congestionada

do outro lado, a janela também nos viu
postergar tudo de todos os modos
e sair andando, sem falar nas brigas
e ficou embaçada de amor
janela é tão clichê

(agora a chuva foi embora
e a vista é muito clara)

do terceiro andar,
jogar-se seria
uma burrice

nesse sentido, é uma janela cuidadosa

*

a janela não diz nada

9.6.12

precisava encontrar um ladrão

desses que subtrairiam a gente da gente mesmo

digo: feito caixa-d'água

a gente se enche, se enche, se enche de "eu"

eueueueueueueueuuuuuuuuuuu

desce pelo cano

estabiliza no eu necessário

mate a sede

tampouco é pra morrer de sede

ser firme feito um cacto

belo e intratável

mole feito o dentro das conchas

que nunca fossiliza, de tão jovem

mas a gente cria o eu que nem uma colônia de fungos

na aula de ciências, na tuppeware da gelatina sem sabor

o mundo inteiro é gelatina sem sabor

depois que o eu cresce nele

come tudo e deixa mal cheiro

quando tudo o que a gente quer é colo e respirar

é tudo o que a gente quer?

pensar cansa

trabalhar nem fale

meu berço é pressa

o planeto é um colo

8.6.12

aquece dizer

eles têm também
um ódio e territoriais
mostram os dentes, matam
por prazer, por delicadeza

perdi meu dia, me
enrolei no cobertor
que um dia foi da minha avó
morta porque ainda que ninguém te mate
você morre

mas o que eu estava pensando
era em macacos ternos sob a água
descobriram a piscina e ali ficaram
dando um banho de assento na desgraça



(em tempo:)

acaricia as costas
um do outro
nós no nosso tempo também fomos
o lago em que a vó morta se esquentou
era o nosso cobertor
nós que somos
pra sempre netos
de um primata ancestral
e temos frio
e vamos morrer
e enquanto não
nos aquece dizer:
você.

5.6.12

quem visita o seu blogue

páginas de diário aberto
descobri que meu blogue é muito acessado
por quem procura "tigres" no google

o caráter agregador da internet
vamos fazer um clube
de gente que busca tigres

proponho sairmos do google
são paulo e buenos aires também não têm
chapéu na cabeça e coração nas mãos
a gente vira a próxima esquina e espera encontrar

palavras-chaves meta tags sonhos em comum
grande alaranjado de listras pretas e macias
dentes navalhas unhas retráteis
quem quiser o tigre favor entre em contato

1.6.12

27.5.12

quando digo futuro

tenho visitado muitas
estações de trem anoto horários
de partida feito bedel
dos corações "ah este
parte em boa hora" depois
direi ao maquinista que o
aprovo "ah este
está todo equivocado"
diz que "equívoco" quer
dizer "voz partida"
na origem

na minha cidade tinha
trem que ia que nem
jegue (dizem) devagarinho
vai ver cada pessoa
tem as características do trem
em que nasceu

devagar mas certeiro
porque os trilhos não se equivocam

os trens são todos iguais
a menos que ocorra problema no freio
má administração decorrente descaso público
meu coração importe menos que a situação econômica do mundo
os trens são todos iguais
chegam
até não poder mais
mesmo vazio, um trem nunca desiste
mesmo após despedidas
e não se pode dizer do trem
"poderia ter ido para lá"
quando "para lá" é um lugar sem trilho
você não vê o trilho porque está boludeando
mas o trem sim sabe
e continua

à noite o maquinista
antes de guardar
a máquina no estacionamento
tem que percorrer os vagões
(não farei poema pra palavra vagão)
e mandar os bêbados e os cansados
sem coração e sem trem para o meio
da noite
cada um sai
cambaleando
e para no primeiro muro
que ladeia a estação
se encolhe, treme
(a noite é fria)
e espera nova passagem

pra quem fica
e nem entrou nesta história
o trem é uma viagem
que diz não

os grandes poetas da nossa geração

fazer disso
uma carreira
igual aquela de pó
em que o menino contraiu hiv
por compartilhar o canudo metálico
escreve lindos poema
dá valor à poesia
porque ah
a poesia
dá valor à língua ao verso
até à rima
tonto é eu
nem aí pra tudo isso
quebro a linha por vício
rimo por preguiça
mas não quero nem saber
de carreira verso língua
acho boba a poesia
viver
isso é que é difícil
a gente acorda e fala
e agora?
vai dormir e fala
meu deus E AGORA?
mas deus não existe desde os quinze anos
como profissão, sou revisor de texto
faço mapa astral
tudo isso muito mal
antes eu via passarinho
mas não dava dinheiro
e os passarinhos tudo voaram
tenho muita raiva de quem fez voar os passarinhos
achando que tinha muita coisa a dizer
agora fico escrevendo, sozinho
se eu pintasse, eu pintaria
sento no banco da praça e olho a árvore
desenho volta
volta, passarinho

*

mentira
não tem essa nostalgia
continuo com raiva, mas
que nem diz meu amigo
"não guardo um pingo de rancor
daquele filhodaputa"
paciência
passarinho voa porque tem asa
certo ele
se eu tivesse, também voava
por bom revisor de textos, no entanto, me dão dinheiro
com que compro caneta, pago a internet
e escrevo:
era uma vez...
eis aqui UM PASSARINHO!

26.5.12

a larva se guarda pra depois virar
também o planeta
acordou esta manhã e cansou-se de girar
os helicópteros informam o mormaço
fátima, há cinco horas que a hora não passa
o maquiador da fátima se benze nos bastidores
e a igrejas se enchem de gente apreensiva

em algum lugar no livro de juízes
o Senhor fala para josué "vou te ajudar"
e impede sol e lua se mexerem
ficam parados juntos no céu por vários dias

os ímpios tremerão

***

uma fina capa de prepúcio
cresce atmosfera em catarata
meus amores, eis aqui nosso crepúsculo
diante da desgraça, que mal tom tentar a rima!

seguiram-se meses de mesmice e sofreguidão
pedimos ao Senhor e aos senhores de todas as nações
a ciência também tenta solucionar esse abandono
e no entanto não se move

***

minha cabeça está assim
parada, esperando um meteoro
um cometa sem órbita que ponha tudo no lugar
enquanto isso bombas atômicas são testadas
no atol de biquíni pelas grandes potências
minha cabeça seus filhos pesar do continente
por eles mesmos rezam por tudo o kadish

que um deles se desprenda dos lamentos
e agradeça a gravidade, o atrito, invente música
dance que nem dervixe

***

casulo móvel

o aprendizado pela fruta

de muito a fruta
cresce não cabe mais
na própria casca, rompe-se
mas não é crisálida
fica lá, rompida
entram bichos bactérias na fruta desprotegida
dão doença pra quem come

fruta, no entanto, também se chama
as bichas, e este aprendizado
pode ser confundido com metáfora
barata, ninguém mais se comove
com frases manjadas e emoções batidas
sem grande potencial literário

a fruta em cacho é comida
uma por uma os galhos
se desnudam. hoje é sábado,
dia em que até deus descansou
nalgum prado próximo ao mediterrâneo
videira lembra tanto vida
as uvas abertas estão
uma delícia

24.5.12

hepática

se deixo um
silêncio entre as
pausas (os ex-
namorados, o trabalho
atrasado, a passagem de
volta) meu
fígado cresce e me encontra
deitado na cama, sem vontade de
ter fígado

só lembro dele por causa de um remédio
que dizem pra eu beber menos
enumere as coisas que machucam o corpo

uma amiga me conta
de um menino muito bom
que contraiu hiv
com o canudinho de cheirar cocaína

o fígado
me lembro
é um órgão que cresce sozinho
(e é o maior do corpo humano)
digo: se corta, cai a metade,
se falta e ninguém encontra
onde o levaram
o fígado infla, ganha
mais células, reproduz-se
sozinho

penso "pai,
dê-me a capacidade de ser fígado"
penso "credo", me arrependo
e deleto o deus do pedido

era bem se fôssemos todos
diferentes mas nisso siameses
compartilharíamos do mesmo órgão grande

massa escura e mole comum a todos
ninguém poderia dizer assim, à pessoa ao lado
"deste fígado não comerei"

20.5.12

Notícias populares

quem é você, nem isso lhe saía da boca. Depois não vai lembrar: idade, altura, nunca saberá dos amigos de infância, se tem uma irmã. Se gosta de queijo, café, o tipo de música, você, quantas coisas vai ficar sem saber.

"Chuta a cabeça dele"

Embaixo deste chão tem ossadas extintas, desintegradas pelo tempo. Nós o revolvemos e sobre asfalto, calçamento, coturno, cabelos. Antes disso eles vieram pela rua feito matilha, covardes, um batalhão discreto matando a noite e chegando bote nas bichas da praça. A homofobia mata uma pessoa a cada dois dias no Brasil. Mas da homofobia nós não sabemos o nome, a altura, se tem irmã, quais sonhos congelados. Quem me matou foi você.

"Vera, o Leão mandou você parar tudo. Tem um morto pra cobrir". Vera detestava trabalhar lá e detestava ainda mais esse apelido de Leão. Entrava na sala do chefe pensando hipopótamo, mamute. O chefe gordo atrás da mesa. Quando falava, babava pelos cantos. Formava-se uma bolha de espuma na barba e ele não queria limpar. Do medo viemos, ao medo voltaremos. Vera trincava os dentes de raiva e perguntava o que era.

"Mataram uma bicha na República. Corre lá pra gente fechar a edição. Vê se dá capa." Vera detestava ser a Leoa. De um lado pro outro, caçando carniça para alimentar o chefe. Dessa vez ele nem tinha olhado para ela, o que era melhor, o que era terrível. Ela tinha que olhar pra ele, não importava se quisesse. Concentrou o ódio na maçaneta da porta e girou-a sem estrondo.

Já era madrugada quando desceu do prédio e rumou a pé para a República. "Eu vou com você!", "Não vai não". Tirou a máquina das mãos do foca, que ficou plantado de boca aberta na porta do elevador, e apertou o térreo. Sentiu a brisa gelada, salpicada de sereno ácido de outono no centro de São Paulo, escorrendo pelo pescoço. Um bêbado mexeu com ela. Não era qualquer mulher que fazia uma coisa dessas. Podia ser perigoso, podia não-sei-quê. "Merda", ela quase foi atropelada. A gente se preocupa tanto com estupradores e quase morre nas rodas de um carro imbecil.

Vera não tinha medo de estupradores. Eles é que deveriam ter medo dela. Olhos, garganta, virilha, Vera podia nocautear qualquer um, tinha certeza. Às vezes ela esperava à noite, na rua, que alguém tentasse alguma coisa. Um dia foi roubada, mas não se moveu. O ladrão não tinha mais que quinze anos.

"Esse jornal não é lugar pra moça delicada", disse o Leão. "Nenhum lugar é", ela respondeu.

"Tá certo, tá certo. Olha, você deu sorte que um repórter nosso morreu semana passada. O pessoal tá reclamando de muito trabalho. Traz uma matéria aí, faz do jeito que você quiser, só não me enche o saco. Aí a gente vê". Ele acendeu o cigarro e abriu a janela, começou a tossir.

Dois anos depois e ela não tinha orgulho nem vergonha / nada / do que tinha escrito / vontade nenhuma de continuar naquilo. Mas ainda pagava as contas, e ela ainda tinha contas. Voltara com duas páginas pingando sangue, a história de um grupo de travestis que tinha assassinado o cliente de uma delas. MÁFIA DOS TRAVESTIS - CLIENTE NÃO PAGA A CONTA E ANORMAIS DÃO BEIJO DA MORTE. Ainda era uma das edições mais vendidas do jornal e o emprego era dela.

"Cadê a Vera?"
"O chefe mandou ela ir na República, parece que mataram um gay"
"E ela foi sozinha?"
"Foi, pegou minha câmera e tudo. Não quis que eu fosse"
"Mulher brava!"

Vera devia ter alguma proteção especial, é o que Virgínia sempre dizia. Mulher sortuda, "e não só porque me encontrou". Virgínia sorria e tirava as cartas. "Que besteira". Mostrava a carta da Estrela e dizia que os antigos acreditavam: o ser humano é vindo das estrelas. Gente é luz. E a sua luz é boa, meu amor.

Acontece com frequência que o céu de São Paulo não te deixa ver estrelas. Apagadas aqui embaixo, como se o asfalto fosse antimatéria e puxasse o nosso desejo pra rede de esgoto, o barulho dos sapatos e das rodas, os bares cheios, tudo o tempo todo um medo manso, "que paciência tem esse medo!". As travestis olhavam-na com desconfiança e navalhas nos olhos. Vera encarava. "Ela é que nem o Mike Tyson, saca? Te intimida tanto com o olhar que cê fica pianinho quando chega perto dela. Isso é tática. E dá certo, a vagabunda". Mas também sabia com quem se relacionar, tinha esse talento. No Arouche, Cris Negão a protegia; no jornal, era o Leão. Ninguém sabia a que custo.

"Se o que você tá falando tem sentido, deve ser coisa de família. Todo mundo fala isso do meu pai, também. Ele aprendeu o krav maga lá na Estônia. Meio por acaso: era primo dum amigo do cara que inventou, essas coisas. Diz que foi bem a tempo, que logo depois que começou a treinar teve um pogrom. Ele matou dois filhosdaputa numa briga. Aí teve que vir pro Brasil". Vera coloca os dedos entre as pernas de Virgínia. "Começa com sorte. Mas depois a sorte some. A gente tem que persistir." E só sobrevive quem se esforça. Em princípio, todo mundo tem sorte de ter sido espermatozoide, óvulo, de ter acontecido. "Se é que isso é sorte", Vera pensa.

Um cotovelo teima na barriga dela. Vera se encolhe e se esgueira entre os braços. A polícia já chegou e conversa distraída do lado do cadáver, ainda descoberto. Se tivesse olhos, eles estariam abertos, ninguém se preocuparia em fechá-los. Vera tira fotos da cara deformada de monstro, da mancha de sangue entre as pernas do jeans. Agacha-se e clica: a mão estendida e aberta, o crânio deformado, um semicírculo de pessoas em volta (bocas curvadas em riso, um grupo de bichas chorando ao fundo), um policial olhando bem pra você.

"Ô, ô, circulando!"

"Não, deixa ela." - o outro policial aperta o braço do colega e olha cúmplice para Vera. Ela tira mais umas fotos. Vai embora.

*

"Quer saber?" - Virgínia se revira nos lençóis, se estica e se encolhe, esfrega o nariz entre os seios da amada e senta-se na cama de pernas cruzadas, "uma menina", Vera pensa. "Eu acho que você devia largar de vez essa merda desse jornal. Largar de vez toda essa merda. Vamos pra praia! A gente podia ir morar numa praia bem longe, bem ensolarada. Eu fico vendendo os meus artesanatos pros turistas. Você escreve o que te der na telha. De repente arranja um emprego num jornal local, mas podia também escrever pra algum caderno de viagem daqui!" (Quantas vezes por dia você para e pensa em tudo o que dá pra fazer desta vida?) "A gente aluga - ou até constrói! - uma casinha, aprende a pescar, planta tomates". A primeira página do jornal também trazia a promoção de um supermercado local. Você corta o cupom e ganha 10% de desconto no valor total das suas compras. Vera acende o cigarro, fica com vontade de café.

"Podia ser", diz, por dizer, olhando pela janela. "Bom, menina", disse o Leão, olhando nos olhos dela. "Essa aí é protegida do delegado", diz o policial, soltando o braço do outro. Virgínia tira outra vez as cartas, perguntando agora esse futuro. Seu coração se comprime quando ela pensa: quem escreve a nossa história? O Enforcado está preso ao centro da mesa. Nos anos 40, na Estônia, um bairro judeu é saqueado. Ela tem vontade de se levantar e ligar o rádio. Mas ainda não se levantou. Está sozinho na casa, no quarto. Olha em volta, pra além das cartas. Vera saiu e ela não tem pra quem sorrir.

19.5.12


acordar tarde

tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

***

mudança de estação

para te manteres vivo - todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e
o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado

deixas o verão deslizar de mansinho
para o cobre luminoso do outono e
às primeiras chuvadas recomeças a escrever
como se em ti fertilizasses uma terra generosa
cansada de pousio - uma terra
necessitada de águas de sons de afectos para
intensificar o esplendor do teu firmamento

passa um bando de andorinhões rente à janela
sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo
donde se soltaram as abelhas incompreensíveis
da memória

luzeiros marinhos sobre a pele - peixes
que se enforcam com a corda de noctilucos
estendida nesta mudança de estação


(al berto)

18.5.12

Teoria da eterna origem

uma coisa é igual à outra / e uma coisa vem da outra. Mas diferencia-se e torna-se outra, hm, como explicar? Assim - primeiro veio à Terra meteoro, bactérias se formaram e se reproduziram, foram separadas e se reproduziram. Agora todos sabem que as coisas se diferenciam. Então bilhões de anos se passaram e a diferença da diferença transformou-se no que parece diferente. Agora olhe de perto: do mesmo jeito que nós, um lagarto tem braços cabeça coração. As barbatanas de um peixe, o nariz do sapo. Vertebrados com dedos. Se minha mãe estiver certa, Deus tem uma tremenda falta de imaginação. Ainda mais sendo ele quem ele É.

Então a história fica a seguinte: a seleção natural nos diferencia, mas somos basicamente os mesmos. O que a história não conta é que tudo isso já tinha acontecido.

Em outro planeta, outro sol cansado queria se livrar de nós. A luz se apaga, envolve e traga escuro fim da vida. Nossos muito antepassados tinham atingido alto nível de tecnologia e disseram: vamos embora. Resolveram mandar pro espaço as bactérias. Eles próprios aterrissaram em outros portos e nos visitam com frequência, mas esta ainda é outra história.

Porque a vida é inevitável - e a personagem se surpreende sempre de ainda estar aqui - (meu deus, eu ainda estou aqui!) - os meteoros que chegaram à Terra trazendo hibernadas bactérias desenvolveram-se mais ou menos como os nossos muito antepassados, e eis a gente.

A gente.

Que em menos que três bilhões de anos conseguiu fazer tanto estrago.

A gente.

Que poderíamos ser classificados como um vírus
vertebrado
adaptável ao ambiente e apto a derrubá-lo
minando as defesas do planeta
- mas esta ainda é outra história
- ou será a mesma?

Nossas guerras nos destroem e a seleção natural segue valendo,

daqui a muitos bilhões de anos também este Sol vai se cansar

nós, que teremos morrido e mudado e foguetes e dados perdidos refeitos, nós construiremos naves enormes e mandaremos tudo pelo espaço.

Uma parte da raça chega a um planeta. Faz, lá, sabe-se lá que desgraça de civilização, ou encontra a beleza? E asteroides sem órbita vagarão entre os planetas até que a gravidade

a gravidade

essa que quer, intransitivamente. A gravidade o puxa e crava em seu útero aberto uma estrela, bactéria, amaciada em mornidão e atmosfera se prolifera a será diversa como a Terra que um dia foi. Mãos, pernas, olhos. Caule, folha, flor.

A vida é uma raiz contagiosa.

Quantos sóis (meu deus) não explodirão, e quantas naves, e quantos começos aterrissarão.

Se minha mãe estiver certa, não tenho nada que me preocupar. O infinito será individual. Nesse caso tenho um inferno reservado e duradouro e arrependimento para sempre da minha contranatura. Caso contrário, num futuro - que pra nós é inominável, mas conhecido neste já - outra coisa parecida com uma mãe, olhos bocas sutiã, ditará medos terríveis para proteger a nova vida.

Universo em movimento, universo em expansão
eterno até o fim dos tempos,
até.

17.5.12

é um cortejo fúnebre
mas não é
cadê o morto?
o metrô parado por causa da greve
as buzinas lotam a tarde de gente
depois de grandes desastres naturais
embora o capitalismo siga o mesmo
e há instituições, o palácio do presidente
o haiti fukushima chernobyl
o brasil
repare que a terra continua embaixo
o céu continua em cima
e a gente segue até dizer chega

mamãe leva a menina para a escolinha
se você realmente quisesse o melhor para seus filhos
não os educaria seguindo estereótipos de gênero opressivos

este é um cortejo fúnebre
para os vivos

tanto é assim que nesta manhã eu tomei meus remédios
depois comi pão tomei iogurte prestando atenção no triglicérides
tenho um milhão de contatos de email telefone nas redes sociais
gente que eu lembro com carinho, mesmo que não veja mais
li uma crônica que me deixou emocionado, de um autor que eu gosto muito
depois das grandes catástrofes naturais
leio um livro que fala de cavalos pré-históricos habitando a américa do sul
cujos primeiros habitantes eram negroides e talvez vieram
trazidos por ovnis ou tecnologias de navegação muito avançadas
que se perderam
como só o avanço se perde
séculos antes dos europeus os maias já tinham inventado o conceito de
zero,
inquisidores queimaram essas bibliotecas para expurgar o demônio da floresta
seis jovens condenados à forca no irã por serem homossexuais
e os carros passam, os cães ladram, as plantas sobem
sempre em direção ao sol
mesmo que você entorne o vaso

uma amiga me diz que fica muito contente de não ter se matado
agora que estão acontecendo tantas coisas boas
eu também, e ainda não me matei
nem planejo
que ninguém se mate
feito aquele povo na guiana
que esperava o arrebatamento num suicídio coletivo
que ninguém se mate
porque o mundo é dos vivos
e há palavras imensas que esperam por nós
um grande conhecimento no fundo do oceano
grutas e por quês nunca antes contemplados
esperarmos os ETs, há motivos de sobra
pra estar feliz e ansioso neste dia de outono
no apartamento emprestado de um amigo
o mundo
é dos vivos

12.5.12




No país do não-me-lembro

No país do não-me-lembro
dou três passinhos e me perco.
Um passinho para ali
- será que ainda estou aqui?
Um passinho para lá
- ai que medo que me dá!

No país do não-me-lembro
dou três passinhos e me perco.
Dou um passinho para trás
e nenhum passinho a mais
porque não lembro onde é
que eu pus o outro pé.

No país do não-me-lembro
dou três passinhos e me perco.


***

En el país del no-me-acuerdo

En el país del no-me-acuerdo,
Doy tres pasitos y me pierdo.
Un pasito para allí,
No recuerdo si lo di.
Un pasito para allá,
¡Ay, que miedo que me da!

En el país del no-me-acuerdo,
Doy tres pasitos y me pierdo.
Un pasito para atrás,
Y no doy ninguno más,
Porque yo ya me olvidé,
Donde puse el otro pie.

En el país de no-me-acuerdo,
Doy tres pasitos y me pierdo.

(María Elena Walsh)

4.5.12

criança, bicho, velho

hoje aprenderemos sobre a vontade de viver

uma mulher de 101 anos se suicidou na rússia no mês passado

após passar duas ou três vezes por hospitais

em que tentara sem sucesso se matar

dizendo eu não aguento mais

a gente se choca com a notícia

"se aguentou até os 101 anos, que esperasse só um pouquinho"

a mulher senta e espera

toma vodka e come castanhas enquanto espera

na rússia comem batatas? não tenho vontade de comer batatas

navegantes europeus roubaram dos incas

quinhentos mil quilos de batatas

levaram da irlanda ao início da ásia

e as mulheres incas amarravam-nas grávidas pelos pés dependuradas

passavam com um cavalo e espada e as estripavam

os futuros mortos morriam antes de nascer

dependurados das mães dependuradas, quase mortas

"não quero batata"

"a senhora precisa comer!"

"sai da minha casa"

"[xingamentos em russo]"

viver não é tão ruim

dá impressão, porque você tem 101 anos e não vê mais graça em nada

o corpo dói, a carne é fraca, e todo mundo morre

quando vai estar na hora?

"tem gente que gostaria muito de estar no lugar da senhora!"

acham-na mal agradecida

com o dom da vida

ela passa a língua pelos buracos entre os dentes

onde a língua encontra e acasala com a gengiva

um amor duro áspero molhado fazem as duas

e infértil

a rússia é o maior país do mundo!

pensa que a senhora passou até pela revolução!

sobreviveu aos campos da sibéria! sobreviveu até ao comunismo!

mas encontraram num dia a mulher morta

então eu já posso abandonar esta história

que é sobre a vontade de viver

...

como a vontade de viver sobrevive à mulher morta?

tem que ser assim: há quatro bilhões de anos

moléculas nervosas se juntaram e formaram

carbono que eu não sei

as primeiras proto-bactérias

simultâneas num acaso certo

e nós somos seu desdobramento

vem um vírus que se alastra e mata

o vírus também é a vida que quer viver

esse é o seu ensinamento

tanto é que depois da mulher morta nós continuamos aqui

pondo venenos nas batatas para matar os cupins

...

quem pode mais chora menos

manda quem pode, obedece quem tem juízo

batatinha quando nasce

esparralhama

20.4.12

sozinhos

em muitos anos de busca / a nossa, entre as galáxias, possui cinquenta milhões de estrelas / e em nenhuma delas.

Logo buscamos noutras, queremos, e o espaço nos devolve o silêncio / do qual (um pensa) jamais deveríamos ter saído.

O astrônomo, esperançoso e entediado, começa seu turno em frente ao telescópio que foi criado por nós para que nunca se canse. Já leva milhares de gerações olhando um horizonte distante, captando ondas de rádio que quebram na nossa orla sem mensagens, vestígios. Na noite mais escura que a noite, nosso intrépido astrônomo se concentra, emboscada, silêncio, o coração lhe estoura os ouvidos. O astrônomo dorme.

Em seus sonhos, uma visita estranha aparece. Tem olhos grandes e escuros e uma pele muito clara, braços longos e ao tocá-la o astrônomo encontra: sua mãe moribunda, de seios e olhar secos, orbitando pela morte.

Ele acorda assustado, quase sempre de tristeza. É um mistério por que as mães seguem existindo, e ficam tendo filhos, parindo-os pelo mundo, se a história é uma sucessão de filhos mortos, e aí ele limpa os óculos e encara o nada doce além da lente, telescópio, estrelas que são sóis e pedras que se movem ao redor delas, cadê a vida, se pergunta

Imagine que uma noite o alarme apita. Num sobressalto, sem mãe que o acompanhe, o astrônomo confere os aparelhos e põe esforços nas coordenadas indicadas. Pulsar, calor, e move-se alternando ritmo e tropeço, querido estranho, depois de tanto tempo! Seu corpo se estira na poltrona de cientista, olhos vidrados nas ampliações de vídeo e rádio...

Numa pedra muito longe, quem sabe se coberto por qual atmosfera, um ser vivo nunca visto por humanos sente que está sendo observado. (Eu espero que o universo se canse de mim e me abandone antes que tudo isto aconteça). Com medo ou raiva afeto fome ou falta de vontade, esse ser estanca um momento / qualquer forma de movimento. Pra logo após (longe está das nossas lágrimas de emoção e das melhores intenções) debandar / correr talvez pro passado. O astrônomo se esquece.

É no passado que você se esconde.

13.4.12

24.3.12

américa

é um continente
nômade leio os
apaches, assim chamados
pelos outros

por eles mesmos, chamam-se pessoa,
só que na língua deles

jerônimo, um dos mais famosos heróis da resistência,
morreu como prisioneiro de guerra do exército dos eua

teve a família dizimada por armas de fogo
e era grande estrategista
mas dizem que se rendeu no dia
em que viu um trem cruzando
a sua vista

28.2.12

a montanha estava grávida do dia

inflava e nascida

mas os cães buscavam o dia

eles vinham desde a noite, uivando

quando o encontraram, deram de mamar

e o dia cresceu assim: cachorro

25.2.12

(história compartilhada no facebook)

Quando fui para a escola primária ,a professora pediu-me que fizesse um desenho e eu desenhei ,casas carros ,um comboio ,àrvores ,pessoas e até o meu cão que se chamava Titan. A Professora viu o desenho e pensou que esta pronto e já acabas-te ? Ao que respondi não,falta-me o céu e a terra ! E ela disse então faz lá o céu e a terra. Comecei a pintar o céu e a terra e tudo o resto que tinha desenhado antes desaparecia e acabei por ficar tão triste e desanimado . Então a professora chegando-se ao pé de mim com muito carinho disse não faz mal ,amanhã fazes outro mas para não apagares as pessoas e a tua cidade começas promeiro a desenhar o céu e a terra. Isto passou-se comigo tinha eu 7 anos ,nunca mais esqueci.

(céu, terra, pessoa)

24.2.12

as horas fundamentais ainda não
nos visitaram, acidente na estrada,
o cheiro de uma camisa, o caminho
pra um amigo que não conheço

depois virão mais estradas, um
xampu que vaza na mochila, as saudades
dos abraços, dos gemidos, da família,
a população humana ilhada
em continentes e se move inconstante,
desencontra sua vontade, o acaso
nos protege

algumas plantas também
desprendem-se da terra
e rodam pelos desertos de um faroeste italiano
em busca de condições mais adequadas de vida

falando assim, pareço um burocrata das plantas

as horas fundamentais crescem mirradas
depois se desprendem e buscam, ficam frondosas
o médico pediatra diz que é tarde demais
as estruturas já estão formadas
e as horas fundamentais estão lindas e capengas
esperando que você chegue até elas

teve um acidente na estrada
vejo corpos cobertos e carros de reportagem


2.

a gente passou por estas estradas em 92
morosidade no banco traseiro, sanduíches
paramos em curitiba pro leite com chocolate
depois seguimos, só eu no carro sabia
que florianópolis era uma ilha
e encontrei o mercado à direita do qual devíamos entrar
mas não avisei ninguém
i was too shy to stop
seguimos em chalé a cada praia fotografei as emas
e minha mãe achava graça nos peidos do meu pai
eu não gostava do meu pai
só aprendi a gostar das coisas depois de adulto, desculpa
ainda não tenho muito jeito
mas que vontade
estas estradas já me pareciam perigosas naquela viagem
neblina e mato, estreiteza

em 2004 também passei por aqui, a caminho
de santiago do chile. quando voltei, todos
os amigos que eu não tinha se espantaram com a minha leveza
ah eu também era capaz
e comecei a gostar menos deles, e a ficar mais tranquilo
as estradas me deram o que eu faço de melhor
a passar pelos perigos

3.

passamos (pra quem que eu conto?) agora por outro acidente

(a descida dos andes é a estrada mais bonita que eu já vi. parece uma montanha russa. um dia eu te levo lá, pra segurar a tua mão)

4.

passamos por placas que dizem
"ganso ensopado"
e logo
"garapero de jesus"
bananais intermináveis sobem as colinas
uma árvore só flores abriga um banco
e sobre ele três moças gordas esperam

(quero te mostrar tudo isso)

5.

há muitos muitos muitos rios sob o asfalto
(outra coisa que queria te contar)
a bateria do netbook quase acaba
companheiros de viagem barulhentos, brasileiros
me falam em espanhol por causa da minha barba

eu aprendi a ser estrangeiro
me pergunto
eu prefiro
há um muro em frente ao muro, e outro muro depois do muro e deste muro. Desde o príncipio as pessoas constroem muros, e antes do muro havia o muro, e antes do primeiro tijolo ser pensado havia a necessidade do muro, a falta que o muro fazia. E antes da falta? Não consigo imaginar. Eu nasci muro.

Já pequenos aprendemos a pôr as pedras e os cimentos que outros fazem. A sociedade está dividida em: os que fazem o material para o muro, os que constroem o muro e os. Os outros, que não se conhece e não se sabe o que fazem. Eles estão além do muro. No seu começo.

Minha mãe morreu. Ela passou a vida inteira, como eu, cimentando e crescendo o sólido contra a vista. Se me perguntam, caso alguém me pergunte, eu penso um pouco e acabo que não sei responder porque faço o muro, porque quero o muro, porque sou o muro. Alguns de nós dizem: ah, se eu não fizer o muro eu morro. Desconfio muito dessa resposta, mas não possuo outra melhor.

Quando alguém morre (tipo a minha mãe) Todo mundo morre, Quando a pessoa morre, coloca-se seu corpo morto dentro do muro que se estiver construindo e aí se põe cimento terra tijolo, o que for, em volta. Então eu amurei a minha mãe, eu e os outros, e cada um amura o seus com a ajuda dos outros, são todos nossos, somos todos deles.

Alguns cantam. Eu sempre fui meio triste. A humanidade é variada. Tem gente que sobe em cima do muro e se joga. É sempre um choque. Depois amuramos a pessoa também, porque ela é morta.

Quando a pessoa comete um crime - de matar alguém ou, por exemplo, querer quebrar os muros, em vez de levantá-los - é punida sendo amurada viva. Há várias covas verticais, espaços que deixamos entre os muros, onde entra um pouco de ar, nenhuma luz, a pessoa não pode se deitar e morre (supostamente, porque ninguém nunca voltou para contar ou conferir) uma morte lenta e sofredora. No fim, todos acabamos dentro dos muros, vivos ou não.

...

Há pessoas que fabricam os tijolos e o cimento. Nós quase não as vemos. Não sei como elas morrem. Desconfio de que sejam enterradas na própria terra. Não sei se vivas.

E há as pessoas protegidas pelos muros. Ninguém sabe quem elas são. Talvez estejam lá por castigo, ou será que podem sair pelo outro lado? Que há cascatas e pomares, cavalos fortes e livres correndo ao seu redor, que pode ser lá atrás desses muros altos e cada vez mais grossos que construímos.

Um dia, depois de muito tempo que eu tiver morrido, esses muros ainda estarão aí. O que restar de mim (se é que algo resta) vai estar dentro dos muros, uma parede. E depois do meu muro haverá mais muros, e muros antes dos muros que virão dos muros. Desde o princípio, sempre o maior princípio. Até antes do fim.

16.2.12

Desde que nasci, comigo:
Tempo-Morte.
Procurar-te
É estar montado sobre um leopardo
E tentar caçá-lo.

Minha tua garra.
Teu matiz de dentro.
Tua lanhada.
Nossa companhia.

Passo de luz e negro.
Dentes. Arcada.

Dois nítidos
À caça de um Nada.

(Hilda Hilst)

14.2.12

no que não pode

levanta da cama

depois deita de novo

1. tem cama 2. pode levantar 3. pode voltar a deitar

então vamos pensar no que não pode:

1.

a árvore criou dentes durante a noite

quando a gente chegou perto

meu vô tinha feito um balanço

a árvore comeu o balanço e a minha perna

a velhice do vó não dava força pra lutar

e a árvore seguiu comendo

outra perna, eu gritando

aí o tronco, odeia o meu

aí cabeça, braço e eu morrido

na seiva do estômago da árvore

meu vô como explicar?

me enterrou no chão, junto com o balanço

se lavou no riacho todo o sangue

e voltou pra casa, balançado

a polícia descobriu e o prendeu

a árvore ficou lá, rindo cheia de dentes

2.

ninguém podia levantar

foi o que aconteceu naquele dia

o editor do jornal se arrastou pelo chão

abriu o email e ordenou a quem estava na cama

uma matéria especial

a margareth tatcher era a única pessoa que podia levantar

NO MUNDO

mas aí ela rompeu a bacia e caiu no chão

osteoporose

e como não houvesse ambulância, morreu ali

a praga durou quinze dias

teve gente que não tinha recursos

telefonei pra minha mãe e ela estava bem

porque guarda comida embaixo da cama

todo mundo se arrastando na rua

eu também me arrastei

depois passou os quinze dias e como que por mágica

TODO MUNDO SE LEVANTOU OUTRA VEZ

e foi uma onda mundial de mareio

alguns caíram

quando a gente levanta muito rápido

3.

querido deus,

que um raio me atinja agora pra provar sua existência

fica esperando e tem catorze anos

é a primeira vez que tenta deus

o diabo tentou três vezes

mas eu não sou o diabo

olha a ponta do tênis e se entristece

não existe nenhuma certeza no mundo D:

chora :~~~~

quando volta pra casa, da escola

descobre bombeiros e as cinzas pegando fogo

MEU DEUS D:

a mãe está na calçada, inconsolada

"quando foi que caiu o raio???"

(foi culpa delx)

a mãe responde

"que raio?!?!

foi curto-circuito"

não tem nada melhor pra dizer, então

é melhor não falar nada!
palavras ferem mais que adagas
caí com uma e me furei o olho
ai
tudo vermelho e nem vejo o sangue aí escorrendo

melhor ficar quieto
tomar sorvete, domingo no parque
acorda e tem formiga na boca

as formigas levam pedacinhos da sua língua
sem palavras e cultivam mofo
na matéria morta aí guardada, do
mofo alimentam as larvas, comunicam-se
só por cheiro e assim trilham
caminhos e imensos
formigueiros, alguns do tamanho
do texas!

13.2.12

caderno público da mágoa

é uma espécie de terapia, qualquer um pode dizer, as coisas assim cifradas, às vezes nem tanto, mas, digo, escrever as angústias, ai esta vida, e sair caminhando até encontrar a saída, se é que se sai, de repente escorrega e ops já não está mais no medo, embaixo do pântano voam flamingos

de muita coisa se pode dizer: é uma terapia!!!

pintura a óleo, também serve. crochê, amizade, comida. manter um diário de ódio e carinho, dizer "hoje me passou isso e isso e isso". depois de dita, a coisa não somatiza e você não tem câncer. (eu tenho bruxismo. o futuro dirá) (a dentista afirma que assim logo mais não terei dentes, todos quebradiços) (estou ficando careca) pois.

mas se é o tempo todo cura que eu busco, do que vou estar doente? na minha adolescência deprimida, a professora de biologia ensinou que os tumores são crescimentos anormais de células, e eu me imaginava um tumor, de feto a adulto, agora passou, quase nunca lembro disso.

qualquer tristeza pode ser interpretada como ingratidão. talvez porque sejamos brasileiros, e tenhamos sol e samba o ano inteiro, uma melancolia clara e difusa, instalada na nuca do sorriso que não fecha. eu, se deus existe, não confio nada nada nele.

acabou o amor

já faz uns quatro dias que eu não saio de casa, a bem dizer, sim saio pra ir ali, vou no mercado, hoje tomei sorvete. a casa tem um jardim, é verdade, então posso sair dela estando dentro, olho a grama, fico besta com a grama.

o tempo passa muito devagar, mas muito rápido. e eu não faço nada, mas não dá tempo de fazer tudo o que eu estou fazendo, e acabo sempre me atrasando. algo assim.

então minha avó agora está provavelmente com alzheimer. todos esperam o resultado da tomografia. isso de avós é uma trabalheira, ainda mais estando longe. penso assim "que o esquecimento te seja bom" mas faz três dias que quero ligar para dizer oi, como está, e não ligo porque não dá tempo, vide o problema no parágrafo anterior.

a última vez que eu falei com a minha avó, com a outra, que morreu no mês passado, (!!!), ela não me reconheceu, mas o problema psíquico era de outra ordem. de alzheimer eu nunca soube. apesar de saber muito.

uma vez eu conversava com meus avós, todos os que estavam vivos, e falei "estou pesquisando sobre velhice na faculdade". elxs ficaram me olhando com cara de ué e eu pensei "que bosta de pesquisa". pois foi.

e agora estou envelhecendo. menos que elxs, é verdade. e ainda lembro tudo. mas hoje vi um filme em que os atores tinham uns dois anos menos que a idade que eu tenho agora, e eu pensava "que novinhos!", e me dei conta de que há cinco anos atrás eu via gente dessa idade e pensava "que adultos!".

o que me faz lembrar que quando eu tinha cinco anos, na pré-escola, olhava os meninos de seis anos do prezinho sem camisa jogando bola e suspirava "que homens..."

parece que antes eu sabia mais sobre o tempo. mas acho que é só impressão.

10.2.12

um homem bom

a gente se encontrou numa sorveteria e tudo o que ele era estava ali: bondade creme, gosto suave variado colorido, doce mas nem tanto. e frio. o que fazer com um homem desses? eu tentava uma sedução de filme, distraído que estou desde que enviuvei de mim mesmo (e descobri que em vida eu tinha amantes e um trabalho secreto como espião do governo, foi uma decepção). mexia no cabelo, abria as pernas pra me tocar, as coxas enchendo as calças. me inclinava de leve pra ele. eu era um peixe recém-pescado naquela mesa, tentando pular de volta pra água, que era aquela mesma mesa, e ele é que era a água. mas não: ele era um sorvete.

depois se despediu, rápido e cordial, e também era minha hora de ir, ele tinha um filho pra buscar, eu não sei o que eu tinha que fazer. capaz que nada. talvez sair escorregando, me debatendo no balde, na grama, pulando pra dentro de um lago, o lago era o metrô era um rio que me levou de volta pra algum lugar do qual eu já saí, o futuro é um mar, a mínima ideia de em qual correnteza posso estar agora, se estou na poça, na fossa, no fundo de um poço. se num aquário. dum consultório de dentista, dum restaurante, da casa dele, onde o filho às vezes olha os peixinhos e se encanta, e ele, o homem, os alimenta todos os dias. com dedicação, pontualidade e silêncio. depois apaga a luz do quarto e dorme comigo macio e distraído. limpo.

não nos vemos nunca mais. é um homem bom, é um homem limpo.

9.2.12

capim na boca

agora eu me mudei pra uma casa que tem um jardim, tenho novas descobertas.

outro dia, depois da chuva e já ao sol. vi um caramujo se movendo pelo cimento, indo de uma terra à outra. pensei assim "ah um caramujo!". que a concha dele é impressionante de simétrica, e que ele é a própria concha, e que se esconde nela. quando criança eu às vezes quebrei a concha de caramujos pra ver se eles podiam viver sem elas. não podem. continuei quebrando, quando criança. mas não desta vez. agora não.

também fico olhando as plantas. penso assim "olha as plantas!". graminha, tempero, tomate, limoeiro. uma árvore grande que eu não sei o nome dela. não sei de nenhuma delas. penso o quanto que eu queria ser planta e o quanto que eu não sou. será que as plantas também queriam ser eu? é uma pergunta...

agora de manhã, saí pra ver o sol. e há, além dos passarinhos que vêm, um monte UM MONTE de pontos brancos que flutuam no ar e sobem, descem, parecem a poeira dos ácaros quando a sua mãe chacoalha o lençol da cama perto da janela. mas não são bichos microscópicos, nem é pedaço de pele morta e solto. são uns mosquitinhos. nunca vi mosquitinho tão branco e minúsculo e terno. penso "ó aí um enxame que não me assusta" e acho muito bonito.

7.2.12

passo o dia me alimentando / como se precisasse / quando devia, não sei, fazer jejum, roçar no além, dizer assim

corpo corpo
vai lá dar nó em coco

o corpo se faz de surdo
de cego e desobediente

então eu como carne, açúcar, já passou?
mastiga vidro, corta os pulsos e bebe o sangue,
se eu só me alimentar de tudo o que sai de mim será que eu sigo vivo?
ou desapareço, que nem o canguru que entra na própria bolsa?

deixaram aqui do lado um hipopótamo
ninguém da rua cuida
quando ameaçaram dar estricnina entrei em casa
e os hipopótamos são bichos muito violentos
então durmo no chão e como apenas restos
o hipopótamo dorme na cama, usa monange
um dia tramaremos a revolução contra o hipopótamo
atado à forca machadas guilhotina
mas nós sou eu sozinho
um dia
PAISAGEM DE UMA AULA DE FILOSOFIA
(Lupe Cotrim)

Porque a pedra
está fora do tempo
e eu por dentro;
porque a terra se desata,
vegetal,
e a mim falta
esse fôlego verde,
em tênue movimento;
porque entre raiz e folha
o animal salta,
elástico, e desconheço
liberdade tão alta;
porque mineral e vegetal
uma floresta é segredo
aberto ao animal
e em mim se enlaça
pelos cipós do medo
— sei-me de outra espécie.
Em que sou fraco. E antes
de tudo—breve.

Mas nessa extensão tão plena
é que mais compreendo.
Tomo nos meus braços,
intersubjetivamente,
o espaço total, que conduz o infinito.
E são rochas de leões,
marés de outono,
folhas alçando-se no arrojo
dos pássaros, répteis
em curvas de diamante,
montanhas côncavas, murmurando,
florestas em ondas, sobre as águas
as distâncias são formas
—corpo de estrela, impulso de planície,
a morte é apenas uma flor
vermelha, que passa no vento,
o amor se desvenda nas colheitas,
rostos anônimos surgem
dos troncos de cimento,
a solidão é o rosto da humanidade
a terra é voo, o céu se reaproxima,
e em tudo estou presente, simultâneo,
o horizonte a meus pés,
como um riacho doce.

Olhando dentro de mim,
de dentro da natureza,
eu a refaço—e invento a beleza.

5.2.12

incerto o nosso afeto. numa camisa é que encontra: nas gavetas, meias, nas cuecas o dobro seu tamanho. e vai despindo o pai ausente: tira as calças, tenta os sapatos, o cheiro de pai em todo o ambiente, no duro do uniforme amarelo as axilas. depois o pai vai chegar e encontra a criança deitada, amassou todas as roupas, a gente faz o próprio ninho, a criança o cheiro fresco sem suor e vai fazer o quê? dá-lhe porrada, repreende, desce as calças violenta. ou só se deita ao lado dela, sem ódio, ao contrário, e dorme junto, o mundo inteiro nesta cama inexistente. cavamos o afeto no colchão meio a bagunça e acordamos com a janela aberta num pai que não vem, na roupa que não tem, ou acordamos no sonho de um abraço, presos no cheiro ruim de uma boca que queremos.
e agora?

agora a gente levanta

faz café

faz um calor!

certo.

come, se apronta.

agora morre?

ainda não.

então toma banho, abre o facebook

curte, curte, curte

depois trabalha

eu odeio o meu trabalho

("eu" não sou eu. é modo de dizer.

embora eu também)

(eu?)

morre, morre, morre...

(ainda não agora)



escrevo pras pessoas

justifico atraso, conto novidades

varro a casa, também é importante

e agora?

queria dizer assim pro meu fígado, ou pra quem quer que seja:

"PARA DE PERGUNTAR"

mas o meu fígado é um órgão quieto

e o cansaço pode ser um tema

geracional

andamos na rua sem ser atropelados

chegamos aos 27 anos de idade sem instituição que nos preserve

espécies ameaçadas de extinção vivem mais

ou vivem menos tempo

nós temos a medicina alopática, entre outras coisas

o amor de mãe, os desejos conflitantes

eu tenho algumas cuecas boxer

e uma barba que precisa ser aparada a cada tanto

chego em casa, quase durmo

o dia inteiro, feito música

um diabo no céu brilha e pergunta

e agora?

e eu respondo fazendo o dia, mantendo a noite

(me levanto, passo o café, etc.)

estes dias vou escrever um testamento

acho um bom exercício

já que há poucas certezas nesta vida

amanhã, por exemplo, vou jantar com amigos

e agora são duas e quinze da madrugada

no relógio

(meu deus)

e agora, pense em todos os problemas do mundo:

2.2.12

próspero

depois vinha um ano, um outro ano
"que horas são, senhora, por favor?"
(esta cena ocorreu por acaso, no meio da rua)
"é ano novo!"
transeuntes se abraçam, votos de felicidade

é sempre bom começar
de alma limpa
ah

nos estados unidos perto da disneilândia
diz que tem a happy new ilha
cada meia-noite fogos de artifício
e as pessoas emocionadas com o tempo que passa

estoura espumante
canta roberto carlos
pula sete ondas

outras simpatias são:
comer sementes de romã
vestir branco e de calcinha variada
pode ser vermelho pra grande paixão
ou amarelo, se você quiser dinheiro

pode ser preto, pra desejar o fim do mundo

(estou engajado na anarquia
mas é difícil
vou dormir)

II

e a gente sempre aliviando a consciência
o que eu podia ter feito?
agora sim começo a natação
põe as crianças pra dormir, o cachorro fica louco
do barulho
e sai mordendo todo mundo

III

a menos que cada
ano você volte
ao ano anterior. diz "feliz ano
novo" e já sabe tudo que vai
passar: morre um cunhado,
ganha um cachorro. desemprego,
emprego. destecendo a
vida até que

IV

29.1.12

demasiado

era demasiado o dia. O cachorrinho latia depois cansava, muito calor nas costas, feito a corcova dum camelo. então o cachorrinho esticou as patinhas e morreu.

ao lado dele deitaram-se os pernilongos e os flamingos. estamos numa selva, só que ao contrário. o chão civilizado recusava-se a receber tanto cadáver. ficaram ali, recusados.

deu no noticiário. mas só uma notinha.

2.

os camelos invadiram a cidade. chegaram nos lombos dos mouros com sabres degolaram a presidenta e instauraram novas corcovas na nação, usamos turbantes e os cães sem burca apedrejados lhes dizem infiéis. com motivos indígenas organizamos resistência desde os vastos pampas, roupas camufladas nas ideias de bagunça. veio a responsabilidade pela dívida externa, os camelos com a imensa vantagem de não terem sede. a gente morreu porque o mundo acabou (mas só pra gente).

3.

um terremoto? não.
furacão? hm-hm.
bomba atômica, infarto fulminante.
aí veio o despertador.
sim, um reloginho.
a história acaba porque ninguém mais pode contar.

verão portenho

mal encarados e cicatrizes
cinema a céu aberto
calor que não segura
minha vó foge de barco
o metrô sobe de preço
lençol de zebra
no zoo cortam asas dos flamingos
assim não voam
outra cena:

excesso de café
divertidas bebidas chinesas
bruxismo
traduzo barcos
chega o divã, a revolução
questões político-econômicas
apanhador nos desertos de soja
oi
desce a cortina:

emperra
durmo no claro
caronte a tiracolo
saudades, saco cheio
veneno aos pernilongos
planilhas chamadas "organizando a vida"
chega de longe
amor, factura e gira
menor
a menor ideia

26.1.12

a imitação do mundo

todas as dores
igual cristo
é essa a imitação?
mas jesus ficou faltando
algumas dúzias de flagelo.
a gente inventa
vidas que não tem
só pra ser outras pessoas
e outras dores também.
se eu sou jesus, a chicotada,
me furam a costela,
cravam os espinhos
e o sangue que escorre
da testa sobre os olhos
arde igual suor.
o que mais dói é o abandono:
chego a duvidar de mim. já que triuno.
e digo "eu, eu. por que me abandonei?"
de outra forma não vou saber
já que eu não me abandono,
sou muito assíduo.
mas, se eu sou jesus, eu sei.
assim a gente expurga o conforto,
se a gente é bem cristão e acha que não merece o conforto.
o papa se aproveita
da guerra na terra e entre as pessoas
de boa vontade, amor ao próximo,
próximo.

assim eu morro todo dia.
de abandono, de tiro, desinteria.
mas, ah, eu amo também.
amor e morte, nessa ordem.
de todos os jeitos possíveis,
a maioria é indecente, mas
as histórias me permitem. alguns
até são crime: eu posso. imagine
o amor de jesus.

com o meu corpo, escrevo
uma história paralela. real
e de pouco interesse, porque já sei,
enquanto acontece, tudo o que se vai
passando nela. a gente vive
pra dar chance de este mundo
imaginar coisas diferentes. vai que
jesus um dia quer
imaginar outras coisas, outros amores.
ele vai pensar em mim, sentado
de camisa vermelha, trabalhando
em buenos aires, numa tarde de
janeiro

23.1.12

parente morre e a gente fica pensando

a morte vem assim, de surpresa
em alguns casos
em outros casos não
ó o meu pai, por exemplo
ficou doente doente doente
eu pensava "ai tomara que morra"
era oportunismo, mas também era compaixão
aí os médicos disseram "saiu da u.t.i"
foi todo mundo ver
aí os médicos disseram "volta pra u.t.i"
e só eu estava lá
com um monte de saco de batata frita correndo pra cima e pra baixo
levando olé de médico
aí depois de muitas horas a médica disse
(tinha uma cara de dó, a coitada)
"ó, você pode entrar, mas tem que ser rápido"
eu entrei e fiquei olhando
as batatas fritas tinham ficado no corredor
ela viu que eu não tinha deus e me disse
"você pode falar com ele, tem gente que diz que a pessoa escuta"
era coma induzido
eu falei "ah tá" e não lembro se falei com ele
fiquei com vergonha
uns dias depois sim, eu falei, mas é segredo
meu pai vai me cobrar quando a gente estiver no outro mundo, na outra vida
vai dizer assim "ah é?" e talvez a gente se entenda
eu peguei o trem pra são paulo porque tinha que trabalhar, uma bobagem
e uma menina de cabelo embatumado de creme cheiro chocolate
ficava roendo a unha na minha frente. o descaso
do transporte público e meu pai morrendo, naquela menina
eu vi o pior tipo de miséria
que é esta nossa, inerente

aí meu pai ficou uma semana exata em coma induzido
e depois, num domingo, sabe lá porque,
morreu.

podia ter morrido antes ou depois.
mas não
ninguém pode morrer antes ou depois.
morre e pronto.
mas com meu pai teve esse aviso.
depois herança eu não vi, nem quis saber.
morre uma pessoa, que me importa a herança? eu fico com raiva.

agora essa semana morreu a minha avó.
eu não fui pra china pensando que se ela fosse morrer
era melhor eu estar na argentina, que dava tempo de chegar.
outra bobagem.
vivendo e aprendendo.
não teve aviso prévio. foi
"oi sua vó foi internada" "oi
sua vó morreu" (certa estava ela,
que não gostava de hospital. o ponto
comum das duas histórias é o hospital)

mas as coisas acontecem como têm que acontecer
ou pelo menos é assim que a gente se explica as coisas não terem acontecido de outro jeito.
(eu sou bem pouco inteligente pra entender as coisas.
isto aqui é só uma tentativa)
também pintava as unhas

aí não gostava de vermelho, só cor discreta

sempre erguia o dedo e dizia "que unha feia"

prendeu na máquina

da fábrica tinha moça que saía sem o braço

a unha era partida ao meio, mas eu não lembro qual dedo

ah, era o do anel

ela dizia "justo o do anel!"

que humor torto essa vida...
era sempre um problema achar vestido

do tamanho que coubesse, e fosse de gosto

florido o mais bonito

perguntava qual que eu preferia

um dia disse não gosto desse preto

mas eu preciso usar preto porque sou viúva

era um preto com flores vermelhas muito grandes

e ela passava batom e punha pedras de brilhantes

tinha lua em sagitário, eu não nasci com essa sorte
todas as avós são escavadas.

colocam elas sentadas nos bancos do jardim.

minha avó não podia ver banco que ficava muito muito feliz.

pois bem: passarão a eternidade sendo felizes.

isso tudo foi patrocinado por um banco,

mas desses de dinheiro

que não é bobo e se aproveita da coincidência da palavra.

paciência.

olha como elas estão felizes

a avó é uma caveira (porque agora já faz tempo)

(viva ela era muito gorda. paciência)

veste o seu melhor vestido, e ri pra sempre

os esqueletos tão contentes

tá, agora acabou.

"parque temático das avós", curta duração

levarão a mostra itinerante até londres

e lá despejarão essas ossadas no tâmisa, pra não ter gasto

a rainha-mãe vai flutuar só pelo escândalo.

*

depois de uns anos eu volto pra cidade

com olheiras de tim burton, uns anos que não durmo

falo oi pessoal

só o vento me responde

cadê? vou até o cemitério, todas as covas estão abertas

vixe todo mundo tá no tâmisa

fico triste, esperando a morte

aí vou até a praça

com sorte as árvores cresceram e haverá sombra

sento no banco, mas no de pedra

já não adianta ter dinheiro

e por acaso é a minha avó quem está lá!

eu não disse que ela gostava de banco?

esqueceram dela, pra variar.

vó, ainda bem que a senhora não foi pra londres.

os quatro dentes que ela tinha me sorriem por falta de opção.

cai a tarde.

um dia eu vou morrer também. é o que dizem as estatísticas.

então eu espero, espero, espero.

ah, conto piadas e dou muita risada.

minha vó ri junto. no final a gente respira: ai ai.

"ai ai" quando foi engraçado.

pronto. acabou.
foi o grande concurso de quem fica acordado mais tempo. Hora, hora, hora. quando um dormia, dava risada, importante era não ter competição. aí os meninos andam pelos corredores da igreja. um deles, o que eu mais gostava, foi quem começou essa história de dinossauro. sabia todos os nomes, eu morria de inveja. e ele via o menino que ia no jô soares e que sabia mais nomes ainda. me dizia: "mas ele erra".

tem uns fósseis a gente nem imagina. diz no livro que é muito improvável que um fóssil exista. e sin embargo se move: terra pá caverna, tchum, emerge a fera. damos-lhe um nome e passamos as noites sem sono, querendo acordar pra sempre.

querido deus, me salve, amém.

depois reclassifica. por exemplo pterodáctilos tem outro nome. eu já não lembro. vinha o adulto responsável e ria, aconselhava a gente a dormir, mas desde que jesus estivesse feliz estava tudo bem.

minha avó morreu esses dias. consulto o livro pra saber quais as chances de que vire fóssil. são vagas. foi enterrada com roupa tão bonita, dizem, pra que tanta beleza lá na cova? é um mistério.

menos mistério que a gente vivo. mas mais mistério que os dinossauros.

de repente todas as avós são escavadas, num futuro de macacos e extraterrestres. eu bebi muitos litros de coca-cola e não vou ter osso, essa bebida é ácido que corrói nosso futuro, não vou ficar pra estudo.

agora já são quase duas da manhã e estou ganhando de mim mesmo o grande concurso de quem fica acordado mais tempo.
agora não teremos mais melancolia, agradeço a todos

uma salva de palmas, nossa próxima atração

logo após os reclames do sabonete lux

abre um palhaço outra vez triste

queria ser carlitos, mas é tão terceiromundista

até nossas piadas são mais pobres

e meio fedidas a cachorro molhado

ao meu lado senta-se a bunda da edna velho

pra me consolar destes assuntos sérios

queria ser triste, mas é sempre uma claque

o nosso verão não tem schopenhauer

na fresta da janela do futuro

minha glória é um pequeno ponto escuro

e tudo tão mais escuro em volta

assim deve ser debaixo da terra

nossos olhos com vermes e o céu sem estrelas

a velha surda senta no banco e avisa que tem câncer

recebe uma homenagem trinta segundos comoventes

foi a última vez que eu vi a velha surda

procuro rima, metáfora, lembrança

nada se encontra

21.1.12

os animais

"mas eu vi na televisão uma macaca que ficou andando de um lado pro outro com o filhote morto, e tiveram que sedar ela pra poderem tirar o macaquinho morto dela."

"isso é insitinto" disse a professora de biologia. ela ensinava pra gente que os animais não têm sentimentos.

19.1.12

vovó subiu no telhado

porque queria se jogar de lá de cima. Andador, banquinho, equilibrista, capacete se tivesse: a gente só viu depois de tudo. Minha mãe gritava aqui debaixo desesperada, minha vó lá em cima do desespero, como teria subido era um mistério. Aí chegou um troço voador muito gigante e um raio que cegou toda a cidade. Quando a gente viu de novo, vovó não estava lá.

Na outra galáxia, esta é a mesma, objetos não identificados, dia útil, os meninos já crescidos. Ela não enxerga e acamada, o câncer comeu nariz olhos deixou podres as maçãs do rosto, por mais limpinha que esteja, a gente cuida, o fim de vida fede. Vovó aventureira pomos um quepe capitã da cama, depois a mãe dá bronca, as crianças pintam bigode e contornam as manchas do rosto com caneta hidrocor, "vovó é meu gato", e riem, cruel tudo quer brinquedo, "isso é jeito de tratar a sua vó?!".

Depois vai pro estrangeiro. Memórias da minha infância. É tão ruim ficar velha. Pior é não ficar. A família quieta, apreensiva, rejeitando o suicídio.

Naquele tempo, todas as irmãs viraram putas, se eu contar o número de homens que já comi, fez um aborto, família nenhuma descobre o teu meio das pernas, a gente se olhava e intuía a sacanagem, ninguém aqui é inocente, mas a gente não tem susto, nisso somos iguais.

Aí veio o E.T.

sem deixar marcas na pele, luzindo medo. Vou prum sítio afastado e passo o resto dos tempos engolindo a saliva do meu amigo. Colhemos milho e protegemos o gado. Um dia minha avó volta desabduzida, sem avisar entra na casa, deita no sofá e ronrona. Vou ter mais vidas porque acredito em reencarnação e neste mundo é um baita incesto: carinhos escondidos, afeto afastado, galáxias perdidas, apartamento solitário.

14.1.12

lembrei agora

que a minha primeira memória de infância
é na garupa de um caminhão de mudança

segurando o telefone que seria transportado
e que não dava sinal, meu pai dava bronca
por qualquer coisa que eu não entendia
outros homens carregavam caixas
e minha mãe estava perto, indo de lá pra cá

11.1.12

pessimismo diante do noticiário matinal

buenos aires está sendo reclassificada
no mapa mundial do clima
como uma cidade tropical
por causa das mudanças climáticas
o mundo vira um único trópico
e logo se verão araras na patagônia
as estepes darão mangas
não haverá mais estepes
além daquelas que temos no peito
e os desertos áridos e frios na nossa cabeça
não haverá mais araras
mangas, só as trangênicas

vão reclassificar a gente
no mapa mundial dos seres
passaremos calor, seremos sozinhos
só a gente e o gado de abate

4.1.12

só interessam os momentos de crise
de que outro modo se fez dostoievski
tão débil na rússia, era século xix
uma vida triste gelada na vodca
as pessoas passavam meses enfurnadas
no deserto inverno russo
por isso criaram a vodca, fermentada com batatas
e na bebedeira havia romances imensos
alguns com mais de mil páginas

nos trópicos também fazem grandes romances
por aí a crise é outra
as palmeiras melancólicas
garcía márquez fazendo porcos voadores
tudo pra inglês ver

próximo ao estuário do rio da prata
por acaso da janela eu vejo um passarinho
lembro dos marmeladov, quando eu não tinha atingido
ainda a maioridade penal, tomava vodca
baikal que comprava no russi e ficava
vendo os musgos do quintal, li
uma biografia do dostoievski mas só lembro
da morte escura, do frio da rússia, da bebedeira,
de alguns problemas com o sogro,
da cristandade

(tolstói
parece
também
tinha problemas com o sogro
morreu numa estação de trem)

o problema da literatura
é que a gente termina
acreditando

3.1.12

a felicidade
pelo ralo

é importante deixar ir
junto com água suja e sabão usado
através das pernas das baratas
cocô de rato
os esgotos da cidade estão cheios
de felicidade

que se junta em grandes correntes
rumo aos rios

a felicidade e seus poluentes

e alcança o mar

, eu estou longe do mar, agora
o mar é um tanque gigante
cheio de felicidade e outras coisas
indiscriminadamente juntas

tomando banho de banheira pra tentar manter
a água morna, a água esfria e desidrata
os regos dos teus dedos, o sangue cava
um caminho para fora
a felicidade é nociva, cuidado,
aprecie com moderação

depois de um tempo, água parada
se não dá dengue tem as bactérias
matéria morta, vamos ao mar

o mar, onde tudo não importa.
ficamos cheios de sal, a areia
gruda feito um amor mal feito

então voltamos para casa. você me
entretem no teu quarto, acho
que eu nunca fui tão feliz

no dia seguinte, agarro um trem que vai pra longe
cheguei no longe

como os peixes, quero crer,
outra hora, noutro acaso,
quem sabe a gente se vê

a água escoa por todo lado
sem você bem que sou lago,
montanha, abro a paisagem

e agora busquemos outros assuntos
(nunca fomos tão felizes
juntos)