28.12.10

nem sombra de amor

a expressão é a hilda hilst quem cita, fala de uma santa, que disse que viu deus e que ali não havia nem sombra de amor.

muito do que eu escrevo é só pela alegria das palavras, os sons juntos, às vezes divertido dizer em voz alta. é, acho que é isso mesmo. difícil ter uma verdade prévia, na maioria das vezes, mesmo se escrevo histórias, a história aparece desse acaso lexical.

por exemplo, eu ando bem metido e achando que aos 26 anos de idade já escrevi algumas pérolas da língua portuguesa e se morresse já tinha feito a minha parte, mas uma dos textos mais legais que eu escrevi, que eu considero, saiu de um título que às vezes eu ando na rua repetindo, de tão bonito me parece -

flan náufrago

- as palavras assim, que nem brinquedos.

nisso, no trato com as gentes, corro o risco e tenho medo, até, de uma inconsequência muito grande. de tipo assim sair falando e escrevendo igual a criança que com um pedaço de pau machuca os testículos do cachorro. pode ser besteira esse medo, ou até uma prova da minha irrelevância tão mesquinha, mas não vou mentir, eu tenho muitos medos e um deles é esse.

outro, que é o mesmo, seria o de machucar meus próprios testículos. pois já que as palavras não têm verdade, a materialidade delas, uma vez confrontada, pode me deixar vazio de pontes, pior.

me espanto com frequência que, por exemplo, pensar de repente "nem sombra de amor" é um brinquedo, mas que logo em seguida isso ressoa, mancha as paredes, somos caverna e eco, paráfrase do fernando pessoa, e o dia vai passando e pode ficar mais escuro, ou mais claro, a depender do que fazemos com o acaso

25.12.10

“We’re all one thing, Lieutenant. Thats what I’ve come to realize. Like cells in a body. ‘Cept we can’t see the body. The way fish can’t see the ocean. And so we envy each other. Hurt each other. Hate each other. How silly is that? A heart cell hating a lung cell.”

Cassie from THE THREE

(final de Adaptation)

23.12.10

são paulo é uma cidade vista do alto
se você não está embaixo

caso contrário caralhos grandes sobem igual floresta e cada passo é um "sim" pro vírus do hiv
uma porta, um sim
um semáforo, um sim
pensei em dizer agora: esse perigo cru e gostoso

perdi toda a poesia

saí pra andar na rua cheio de doenças futuras
são paulo em um milhão de anos
nem ruínas do podium de interlagos
sem os sons da velocidade
e nada restado
nem meu diário
os meus afetos se dissipam, passa o tempo
espero que deem genes sem vírus e o amor urgente seja
um daqueles cometas fugazes mas que voltam a cada
geração resvalam mesmo com nuvens, sem serem vistos,
na expectativa da gente que busca um fio de luz na noite,
novidade

a cidade engole minhas pegadas
não estou me lamentando
embora a pose
mas me parece muito justo
este agora inteiro
em troca do tempo,
derradeiro

com a segunda maior frota urbana de helicópteros do mundo
e prédios lotados de páginas a serem revisadas descartadas e impressas
eu me sinto inútil e protegido
dos monstros
por uma cidade que não me quer
indiferente o bastante pra ser mãe

e escrevo cada palavra com o cuidado de quem planta
chão de sal grosso e ouro que se racha
bosques prados pequenos vasos apartamento,
queimada

17.12.10

16.12.10

volta

demorei mais tempo entre Guarulhos e o Butantã do que entre Montevidéu e São Paulo. Parados por horas num ônibus na avenida Paulista, eu e a Andrea atravessamos as luzes feias e barulhentas do natal, centro comercial do país, e eu vi que mesmo assim é mais fácil chegar onde você já conhece, parece que eu nem fui, só o mercado da esquina é que mudou de dono e a Andrea pôs mechas vermelhas no cabelo, eu emagreci um pouco, se me perguntam eu não sei o que dizer, gaguejo os clichês da cidade longe, não tirei fotos, não comprei lembranças, me sinto um lago que guardou a viagem no fundo, um tesouro perdido dos ladrões. Fui numa cigana que me disse pra parar de falar de mim com as pessoas, ela disse "não diga eu penso, eu faço, eu quero, diga o dia está lindo, faz frio". O avião veio do azul e desceu pela massa folhada das nuvens, chão branco, depois chão branco céu branco e fina linha azul de horizonte, e foi descendo em círculos sobre o aeroporto até chegar no céu cinza de São Paulo, no chão falado em português, nas filas da gente que chega, e agora chove.

14.12.10

carta

Cuando me despierto por las mañanas, todavía en la cama, te imagino a ti y a Reiko en el gallinero. Me parece ver a los pavos reales, a las palomas, a los loros y a los pavos. También recuerdo el chubasquero amarillo con capucha que os ponéis cuando llueve. Es muy reconfortante pensar en ti, yo todavía en la cama y bien tapado. Me da la sensación de que estás junto a mi durmiendo hecha un ovillo. Y pienso en lo maravilloso que sería que esto fuese cierto.


A veces me siento muy solo, pero intento afrontar la vida con ánimo. Al igual que todas las mañanas tú cuidas de las aves del gallinero y trabajas en el campo, yo me doy cuerda a mí mismo. Antes de saltar de la cama, lavarme los dientes, afeitarme, desayunar, vestirme, salir de la residencia y llegar a la universidad, ya he dado treinta y seis vueltas a la clavija. Me digo a mi mismo: "¡Vamos! Hoy empieza otro día. ¡Ánimo!". No me había dado cuenta de que hablo mucho solo. Puede que, mientras me doy cuerda, no pare de murmurar todo el tiempo.


Es amargo no poder verte, pero, si tú desaparecieras, mi vida en Tokio sería mucho más dura todavía. Es pensando en ti, por las mañanas, en la cama, como me decido a darme cuerda y a vivir un nuevo día. Del mismo modo que tú luchas para seguir adelante allí, yo debo luchar para seguir adelante aquí.


Pero hoy es domingo y esta mañana no me he dado cuerda. He hecho la colada y ahora estoy escribiendo esta carta en mi habitación. Una vez la haya terminado, cuando haya pegado el sello y la haya echado al buzón, no tendré nada más que hacer hasta la noche . Los domingos no estudio. Durante la semana ya estudio lo suficiente en la biblioteca, entre clases, así que los domingos no tengo nada que hacer. Las tardes de domingo son tranquilas, apacibles y solitarias. Leo y escucho música. A veces recuerdo, uno a uno, nuestros paseos por Tokio en domingo. Incluso me acuerdo de la ropa que llevabas puesta. Las tardes de domingo recuerdo un montón de cosas.


(Murakami, Tokio blues. Nowergian Wood. "Para muchas festividades", está dedicado)

23.11.10

história das viagens posses horizontes

Os barcos somem no horizonte e foi assim que os primeiros gregos intuíram que o planeta era redondo.

15.11.10

novembro

a viagem morreu.
estertorava no trem, veio um vigia e perguntou
o que tinha se precisava de ajuda. orgulhosa,
ela foi ao banheiro e se deixou ficar.
se ninguém se der conta, e se o trem for
dragao, a viagem clandestina e ignorante vai
sem trilhos nuvens por aí, perdido o passaporte

a família chorando no jornal nacional
com foto e violinos
diz "ela sumiu no universo"
as maes do mundo deveriam aprender que o universo
é negro e draga toda luz, é túnel e leva
toda luz pra olhos que ninguém aqui conhece

tenho medo dos olhos que veem. arrumo o pinto
na calça e enrubesço. mas pra falar da viagem
melhor em terceira pessoa: que ela tomou muito calmante
e está dormindo até agora. a viagem no rehab,
que a viagem anda em voltas sem dar conta.

#

2010 está acabando. logo mais, o obituário do ano findo. mas agora ele està vivo, igual a gente.

11.11.10

do ofício. ouro de tolo

depois de ler: http://limasdapersia.blogspot.com/2010/11/massa-sebenta.html

pensando:

que as trincheiras têm que ser descobertas - ou inventadas? - e, antes, ¿as trincheiras sao necessárias?

estou terminando um livro de contos. faz meses que estou terminando, e só topei com a vida fazer esse livro quando decidi que nao tinha pressa, que nao tinha necessidade, que nao tinha urgência pra além da necessidade de fazer moverem-se as placas tectônicas das gentes, eu incluso, todas nós.

quero dizer, o meu chao é a gente.

de "a gente" tenho tentado excluir as vontades de fama e de dinheiro e de autossatisfacao que sao automáticas no imaginário do artista. vai epígrafe do raul seixas nesta vida

Eu devia estar sorrindo
E orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa...


.

o próximo passo, quando terminar o livro que já está terminando, nao sei qual vai ser. penso em mandar pra editoras a ver qué onda, mas eu desgosto tanto do que vem sendo publicado e tido sucesso que nem imagino o que poderá acontecer e qual vai ser a minha reacao com o que acontecer.

também nao quero ser mulher desprezada e raivosa e admito que quem faz as editoras e as livrarias é tudo gente, também. eu trabalhei um tempo como vendedor de livros. e as pessoas sao ao mesmo tempo predadoras capitalistas e massa mole & afetuosa, quer dizer, eu me confundo muito. no que diz respeito ao dinheiro. tudo que passa pelo dinheiro.

porque a escrita é um lance que mastiga e arrota e deglute e estraga o dinheiro. o resto é tino comercial e gosto dos banqueiros.

porque mesmo inventar outras formas de livro - estou fazendo até curso de encadernacao - sempre passa pelo dinheiro. ou nao?





(...)

(tem também outra coisa, que eu fui educado em igreja evangélica lendo a bíblia feito gibi, e jesus cristo diz "onde estiverem mais de duas pessoas reunidas em meu nome, ali eu estarei também". como fundamentalismo cristao a gente vê a merda que isso fez, mas se deslocar essa lógica para a experiência de leitura, nao sei, a mim parece forte e um pouco verdadeiro)

10.11.10

a insônia

eu nao conseguia dormir e era de ansiedade - hoje eu durmo muito bem - mas tem que ser de noite e após o dia - cochilar assim como quem nao tem pressa, nao consigo - tenho um amigo que dorme tudo o que pode, e é bastante - e uma professora escreveu um texto contando a insonia da clarice lispector e do virgílio piñera - a insonia é um negócio muito persistente, etc. -

outro dia cantavam: que a solidao é um negócio esquisito, tanta gente tao sozinha, se os sozinhos se juntassem a solidao é que ficava sozinha

hoje eu consigo dormir. nao quero uma vida insone. a vida é sonho. menos quando a gente nao dorme. descoberta da língua castelhana. que a frase do goya, el sueño de la razón cria mosntruos, nao lembro se é crear ou criar, têm acepçoes diferentes, mas sueño significa tanto sono quanto sonho

de criar e crear, um é pra filhos e açudes, outro pra histórias.

a tarefa mais difícil, eu sempre achei: se me pedia "conta uma história" para dormir. mas pedia com tanta veemência, e necessidade, que eu contei sem saber o que contava. e depois nao consegui dormir e fiquei ouvindo os roncos.

8.11.10

notas pro meio do caminho

a natureza nao precisa ser escrita

os passarinhos cachorros mesmo a gente os nossos órgaos e as veias nada disso pede escrita

ou entao tudo escrita de deus javé, cada coisa é uma letra e a sintaxe paira sobre as águas

deixei de tentar escrever a história das pessoas e tenho me dedicado às placas tectônicas e â vida dos animais extintos. agora penso em voltar â gente, mas ainda nao tive sucesso.

como a história das grandes navegacoes e das terríveis ditaduras.

ou entao eu devia escrever mais particularidades, a história da menina gorda, estou de saco cheio das meninas gordas.

acabo de ver um filme muito ruim sobre uma menina gorda.

5.11.10

a vida te deu algo que você nao sabe: recebe
as maos abertas e medrosas, é uma coisa fresca
e morna

você, essa coisa, carrega para longe de casa
passeasse no parque os periquitos que lá estao

a coisa é um periquito / sem gaiola
e a vida também te deu uma gaiola

1.11.10

história do paraguai

os homens no paraguai têm horror a feijao
porque dos quinze aos dezoito iam ao servico militar
voluntariamente, caso contrário eram raptados pelo estado,
e a única coisa que tinham para comer era feijao
uma das comidas mais comuns no país
adultos, se veem vomitam.
toca às mulheres cozinhar, comer
os cereais e a pátria defendida

29.10.10

noturno

na casa estão todas as naçoes
do mundo, conversam
na linguagem universal do amor
vazio, esse que fica ao meio
em traduçoes de má vontade, eu
arrasto desde os primeiros
tempos da humanidade uma língua
sencilla que não dá conta
do tanto que tem pra lamber,
sou uma ilha na casa do mundo

26.10.10

os ossos das aves sao bem
leves nao servem de peso
aerados na verdade os ossos
mesmo das vacas da gente
o que pesa é a coisa que
paira e às vezes pousa

eu dei de morar nas
pernas dos rapazes, eles andam e eu
caio por um fio fico dependurado outras
asas te levam num ninho

22.10.10

acabo tenro
uma gordura quente que derrete a
faca de plástico você me
fala e parte ao meio, nao resisto

guardo as coisas que o dia me deu
numa caixa sob a cama

meus primeiros medos moravam sob a cama

hoje eles sao menores
mas se escondem nos lençóis
quando eu vou dormir é um fio invisível o que puxa
as pálpebras pra baixo, noite

história dos tigres na argentina

rajados
vieram com o marajás em navios
o fim do mundo habitado
e instalaram-se ao norte do prata
os tigres em cataratas
comendo os heróis românticos

a história verdadeira é que os hindus
chocados com a morte das vacas
transformaram-se bruxos milenares
no grande tigre americano
gostoso da carne da gente

os tigres que faltam em java

os tigres que faltam aqui

agora sao os porteños
exaltados com os pintos nas pernas
andam por aí como se fossem felinos
da floresta

no escuro, não, no claro

Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê,
pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá.

13.10.10

escrevi uma carta chamada rancor

*

aí percebi a ficçao dos destinatários
mandei cartoes postais como quem dorme
e no sonho percebe que sonha
e nao sabe se o sonho do sonho é outro sonho

*

nota de método: só escrevo quando nao entendo.

escrever é um jeito de entender.

quando entender nao for mais importante.

nao isso de vida e morte, esses porquês.

o que eu nao entendo é o vácuo do universo.

hoje formulei uma proposta: de que o vácuo vai ser preenchido
pela vontade falha das estrelas
que vao crescer até tomar tudo
fazer luz infinita.

luz infinita é a imagem de Deus na Divina Comédia.
eu nunca consegui ler o Paraíso
que é só luz e fica mais chatinho,
ou entao será algo da idade e da subjetivaçao burguesa
ir aos poucos e nao ter olhos pra além do castigo.

planos de fuga do castigo.

o que os cantores chamam baby.

*

e tenho descoberto muitas coisas,
como por exemplo que os índios raptavam as brancas
e no deserto dos pampas rasgavam-lhes as solas dos pés
pra que nao fugissem.

*

depois acabei concluindo que nao mandei a carta.
hoje eu acordei de um jeito que nao vai interessar pra ninguém.
nos pampas declamando às vacas versos longos e ressentidos.
estou lendo toda a literatura argentina e vou sair daqui melhor do que entrei.
isso aqui é um diário.
oi pra você.
vou contar outra história:
da cordilheira que se formou com fúria
veloz no tempo geológico
humanos nao viram ela crescendo
acho que o ser vivo que mais vive é uma árvores que esqueci o nome
e chega a quinhentos anos ou mais
a professora da terceira série mostrando
eu tinha muito amor pelas árvores, fiquei imaginando
as linhas dos troncos
contando a história do mundo
sem palavras.

agora outra história:
era uma vez o deserto
e o mar
e as outras coisas
e as elipses em volta do fogo
e a gente
e os correios que a gente inventou
pra escrever pra quem tá perto
e o deserto,
Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.
Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
– Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.

(Bandeira)

10.10.10

falkland

piratas porque bombardeiam de novo as ilhas perdidas
num atlas histórico monumentos pátrios eu procuro
as ilhas na rua enquanto ando leio nos muros relatos

depois fico encolhido na bichice: de dizer ai
essas ilhas meu amor baby essas ilhas
que são gêmeas e estrangeiras e ocupadas pelo reino britânico

como se o amor fosse o espólio desse império
como se eu pudesse dizer amor e mortos no afeganistao
sempre que queira

*

confissão: que tudo o que eu escrevi até agora e elegi só virou carta depois de escrito eleito, e não tem destinatário porque dessa eu tenho medo, a carta selvagem gritando em português o indefensável, mas eu defendo.

*

passei a manhã trabalhando na rua e a tarde lendo no parque
trechos preciosos de uma entrevista com vargas llosa
o repórter pergunta "você sabia como ia ser sua vida"
e o escritor responde: que não, nem tinha ideia.
ganhou o prêmio nobel e um dia concorreu à presidência do peru.
recebo a notícia como um travesseiro.

*

criei uma vida substituta na qual eu não existo. então calço os sapatos e vou pra rua, senhor de mim.

*

ah, uma outra coisa que o vargas llosa disse, essa também muito preciosa:
que a gente escreve pra não ser infeliz
nunca tinha reparado nisso, mas me parece.

5.10.10

geográfico

uma menina grande e barulhenta chega ao hostel
eu nao quero mais solicitude, mas vou me esforçar pra nao ser cruel
nao tenho tido vontade de escrever no blogue
por outro lado meu caderno escorre pelas páginas
comprei um caderno com um tigre na capa
tigre
e hoje comprei dois livros do borges, num ele fala sobre tigres
descobri que o borges e o cortázar escreviam no deserto
uma hora eu vou descobrir que tambèm escrevo
o deserto é um ecossistema complexo
os primeiros europeus na argentina diziam que os pampas eram mar
de terra, assim como na água nao se tem referências
para nada, barbatanas te amam

a argentina é a última fronteira do sul

mas entre dois corpos o que tem nao é fronteira
mas sempre - um gap, um abismo

/////////////////

2.10.10

como se nada fosse doce / policiais torturando nas selvas do Peru / eu ouço a notícia sem entender o castelhano, mas parece que forçavam-nos a andar descalços sobre flechas no meio da rua e sem roupas batiam quebravam-lhe os ossos e água e fogo e terra e a gente quando tortura usa todos os elementos / só nao ouvi ninguém dizer de tortura com açúcar / se bem que agora penso: na cultura caneeira / olho com vontade pro pote de doce de leite / acho impressionante que a gente ouça dizer de crueldades e ainda tenha vontade de doce de leite / tem um poema do ferreira gullar em que ele fala do açúcar branquinho na mesa burguesa e o caminho do açúcar até lá / a burguesia é a classe universal, entao nao se trata mais disso / nao desse jeito tao pao-pao-queijo-queijo / a gente é capaz de malvadezas que nem sonha a imaginaçao /

28.9.10

tigres

são os animais perfeitos

eu ficava pensando no meu amor e queria um tigre

meu amor de bengala

hoje passei o dia escondido, não me arrependo
também a cobra pra dar o bote ou o gatinho todo listrado
relva até as orelhas e ZÁS te engole os artelhos
com aquele goshto bem pouco cristão

agora vou pro quarto fazer sudoku

diário de viagem

querido diário,

hoje eu não saí de casa. estava chovendo e todos diziam oh que dia feio. o que não é espelho. mas então vim pra cá e fiz isso:


beijo,

26.9.10

uma breve carreira como fotógrafo

minha mãe ficou puta da vida porque gastou quarenta reais revelando fotos de poste, eu que tentei pegar a vida dos pássaros mas não tinha foco, meu pai sabia ser a pessoa mais desagradável do mundo, geralmente sem pássaros, e também composiçoes poéticas de revistas e flores sobre a cama, morria de vergonha dessa veia artística, depois nunca mais peguei na câmera

lembrando disso eu agora lembrei que buscava cursos de fotografia mas eram muito caros

e continuo lembrando: que fiz um curso de desenho e pintura a óleo, mas escrevia nas margens da tela quando a professora não via

e que matei a segunda aula de violão para ficar no parque vendo passarinho, na terceira já não fui, embora o mês estivesse pago e a família com futuros

teclado, bem criança, não passei do primeiro recital

e as oportunidades que eu tinha eu nunca aproveitei

segundo a minha mãe

história de uma ideia fixa
vocação do vacilo

questionário

¿que cosas te interesan?
1. leer y escribir
2. observar pájaros
3. estar lejos de casa
4. hacer amor

24.9.10

horóscopo

aqui eu fiquei doente. Acho muito que tem a ver com a falta de cedilha. Depende do teclado, mas de todo modo esses tropeços, o corpo da gente é mais sensível do que parece, também mais forte. Estou fazendo uma incursao nas letras argentinas. Comecei a ler "O túnel", do Sabato. Gosto muito de ler, nao é novidade, mas às vezes é tao óbvio que perde a natureza de fato, que é: gosto muito de ler. A televisao do albergue sempre ligada, as pessoas nao vivem sem televisao, e é ruim em qualquer lugar do mundo. Muitas tragédias. Uma mulher foi baleada na barriga e perdeu o neném de nove meses ainda nao nascido. Comercial. Seis pessoas mortas por ônibus atropeladas a manchete COLECTIVOS ASESINOS la puta tele.

Mariana me conta que Horacio Quiroga, um importante escritor, no começo do século XX foi viver no que seria a Amazônia argentina e ficava correndo de moto no meio da floresta todo el dia. De modo que eu, com febre no albergue, ainda sou café-com-leite. Preciso de uma moto, a floresta já tenho. Ou o revés.

Engraçado que, cansado, nao tenho metáfora. Por isso deve ser que, para escrever, hay que ser um pouquinho que seja aristocrata.

Chegou no albergue uma montanha de meninas que parece vieram a um congresso de dança árabe. Perguntei a duas delas "¿están de vacaciones?" elas deram risinhos dos catorze anos de idade, e nao.

Às vezes esqueço que estou aqui.

22.9.10

correspondência incompleta

Os horóscopos esta semana têm servido muito, não sei o que fazer aí leio "você não saberá o que fazer" brinco de seguir as outras orientaçoes e até agora não me arrependi. Por exemplo hoje acordei meio doente, leio "apreensão no ar (...) cuidar da saúde", óbvio. Mas também "distração e esquecimentos, tendência a se acidentar por conta disso", vou ficar em casa e talvez hoje, sim, ir pro cinema.

O cara do meu lado pergunta quando eu faço aniversário, lembra que é no mesmo dia do John Lennon, ele diz "John" eu entendo "yo" e ele corrige dizendo que não, ele faz no 14 de junho, mesmo dia do Che Guevara, entro no horóscopo do Che Guevara e descubro que ele era de 14 de maio, o cara vai embora e eu acabo não dizendo, também é bem legal achar que você nasceu no mesmo dia que o Che Guevara, as celebridades enfim.

Pro 9 de outubro a wikipédia também dá: Dom Dinis! O rei poeta. Que o Fernando Pessoa escreveu "plantador de naus a haver" e de fato D. Dinis plantou as árvores que duzentos anos depois serviriam pra chegar no longe, a gente planta as árvores nunca sabe que barco vai dar.

O cansaço, não for tuberculose galopante, será de falar língua estrangeira o tempo todo, nunca imaginei tão cansativo, ter que tomar fôlego no meio da frase, cada palavra é um esforço, e os teclados sem til nem cedilha me forçam o ctrl+v o tempo todo.

Mandei cartas pro Brasil e espero que cheguem.

19.9.10

fronteira

os países são como cárceres
para entrar no méxico se tira fotos
e para sair não pode pintar o cabelo
ao passo que em cuba te passam
por mil interrogatórios e depois
pegas a bagagem numa sala escura
todas as malas no chão cercadas
por cachorros

18.9.10

Conhecimento

Como escritor, onde ninguém lê a minha língua, não sirvo pra nada.

A estrada

os meninos bonitos
fico com vontade de ouvir joão gilberto
nosso amor não é comédia
pra dar risos a ninguém


os dias aqui são bem agradáveis. Todo mundo diz que no verão faz um calor de mamilos assados. Essa semana é primavera.

Tenho dois cadernos paralelos em que escrevo diferentes coisas do mesmo jeito. São diários a vida uma viagem e fatos que não se completam, mas também não se excluem. Na senilidade terei tido muitas vidas pra não lembrar.

Todos os estrangeiros acabam sendo carinhosos de algum jeito. Talvez menos os chineses que trabalham nos mercados. Os chineses são muito reclusos. O menino diz que não gosta de chineses, mas eu nunca conheci nenhum e, de todo modo, um bilhão de pessoas é gente demais pra serem todos chatos.

Ao ovo dedico a nação chinesa.

Está passando uma retrospectiva do Fellini com muitos horários e salas lotadas. Anteontem vi Noites de Cabiria e só agora me recuperei. Acho um grande aquele que toca a dor sem sucumbir. Quando alguém acha uma solução que não seja a morte, porque a morte é uma solução, mas outras deve haver. Gosto demais dos filmes do Fellini e acho que eles podiam fazer parte do Bolsa-família.

17.9.10

all i want to know

Eu me perdi dos meus amigos. Aí fiquei andando com os estrangeiros em Puerto Madero, um frio cortante de vento e poses engraçadas, faço uma saudação nazista e ninguém entende a piada, europeus precisam de contexto, a Puente de la Mujer os grandes monumentos saudades do Che Guevara vou dar amor pra todo esse povo, ia escrever "amor" digitei "amora" pois bem destino,

ontem pensei que é muito fácil quando você não promete nada pra ninguém, porque aí ninguém pode te cobrar nada, e que isso é um jeito de se isentar. Não, eu não sou assim. Um mal-encarado me chamou pra briga, aqui os imigrantes de países mais pobres andam com rabichos de cabelo e tatuagens no pescoço, é perigoso como os angolanos no centro de São Paulo, essa gente que anda pela cidade feito ratos, porque quietos e presentes, eu ando barulhento, a espanhola diz que em outra província a queriam muito bem mas que aqui todos estão acostumados com estrangeiros, eu tou muito cansado.

Não eu não sou nazista. Mas acho que todo mundo tem um dentro de si. Calculando a melhor hora pra sair.

É preciso estar atento e forte.

Então vou levar adiante o sonho bolivariano, com carícias. Quando menos se espera os continentes formam bichos chineses e nova pangeia.

Já escrevo como se pertencesse ao lugar e o lugar fosse ficando velho, nascido e células sem volta, vou me cansar muito rápido de tudo na vida, mas se paro pra pensar nisso também acho que conservo até demais, bombas bromas y todas las girls.

Viver não tem volta. Tá.

Isso aqui não é confessionário. Primeiro caderno do estudante. Daqui vou para o norte conhecer os povos do altiplano. Eles têm uma bandeira de arco-íris e são gente muito linda, me diz um guapo. Depois me perco. Um rio me acha. Tchau.

16.9.10

seiva saudades

corre nas veias do nosso tempo
feito mão que acaricia montei
meu livro em folhas azuis porque
me lembra o mar as idas quando criança
não sei onde se dizia azul a cor da
esperança e no meio pus folhas pretas
que dragam a cor porque há tudo o que
eu não sei onde pôr

Cariño,

acordei hoje sentindo falta. Vai ser uma provação tanta saudade, mas eu já atingi níveis nunca vistos de tristeza, tanta que agora até posso dizer: tristeza que nem doce de leite, porque a doçura inadvertida, e quando a gente está muito tempo num mesmo lugar precisamos reinventar esse lugar, caso contrário morremos, a viagem sine qua non, mi amor

Dizem que em Moby Dick é que está escrito: os verdadeiros lugares não estão no mapa.

Então seria dizer que tanto faz eu estar aqui, mas não é verdade. Quando a gente nasce, não tem volta.

Tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso.

Saudades. Beijo.

m

15.9.10

seringueira

com raízes
aprendo muito com as árvores

a lucia é que me disse, apontando:
isso é seringueira
assim enorme
e porque plantada no asfalto, suas raízes
que deveriam ir até Guarulhos
se verticalizaram
tomaram o céu
assim é a natureza

escrevi num email que é isso que eu quero:
escrever seringueiras

14.9.10

foi pro lado

foi pro lado embora
essas coisas chegando todas
me decretei um lugar no mundo
finquei bandeira e agora vendo as terras
terreno fértil nem te conto quanto
é pegar ou largar

escrevi um livro. ele ainda não está pronto, mas já está. fico ansioso pra parir, mas a criança tem sua hora.

há menos de duas semanas em paramaribo e creio que vou ficar por aqui. desconfio que vá morrer afogado no oceano pacífico. se isso acontecer, me dirão grande profeta do que já se sabia. a astrologia não dá conta. vamos parar com isso de redenção.

caderno de viagem: assistindo desenho animado em língua estrangeira. o menino paraguaio rola no sofá, morde o nugget, rola mais, fica de ponta cabeça, eu muito quero ter um filho.

tenho saudades. mando beijo.

11.9.10

decisão

acho que eu não volto pro brasil.

Our cities were built to be destroyed.

Everybody knows that our cities were built to be destroyed
You get annoyed, you buy a flat, you hide behind the mat
But I know she was born to do everything wrong whith all of that

She has given her soul to the devil but the devil gave his soul to God
Before the flood, after the blood, before you can see
She has given her soul to the devil and bought a flat by the sea

Everybody knows that its so hard to dig and get to the root
You eat the fruit, you go ahead, you wake up on your bed
But I love her face cause it has nothing to do with all I said

10.9.10

defensa outra vez

chove a cântaros
vimos um filme colombiano que mostra a desgraça da américa latina
tem inspiraçao em fábula do andersen e crianças cheirando cola
nao encontrei ninguém esta semana que tenha encontrado na semana passada
se for assim entao semana que vem, reticências
no albergue tem uma banda colombiana
aqui tem muitos colombianos
e quatro meninas suecas que gostam de funk carioca
escrevi um livro e agora nao consigo escrever nem um post
passo os dias cantando qualquer uma do caetano
e aquele rock-salsa que diz

nao quero trabalhar
nao quero estudar
nao quero nem casar
só quero passar o dia inteiro
con mi guitarra
y cantando con mi voz

estou terminando de ler o livro do ricardo piglia
que se chama prisao perpétua
e vou começar a ler um do ernesto sabato
que se chama o túnel

nunca estive tao preso
e nem tao livre
e nem tao triste
e nem tao bem

(teclado sem til)

atlas

9.9.10

ponha um pouco de delicadeza

o quarto fica do lado da autopista

que é quando você vai dormir com caminhões

vou fazer um panelaço contra a delicadeza

vão todos à merda

amor on the rocks

a nossa classe média

na tv dão destaque aos mineiros
que ficarão ainda meses sob a terra
com risco dos sismos caindo
penso ah uma boa metáfora
ah a caverna de platão
penso ah a vingança do solo
ah os enterrados vivos
pfff...

vou fazer um panelaço contra a delicadeza
do jeito viado que é só o que eu sei ser
se me baterem eu choro
se vir florzinha eu sorrio

a delicadeza não tem nada a ver com tons de sépia.
fotos borradas luz oblíqua, não.
a delicadeza é um álcool.
delicada é a dor no escuro e carinho.

pronto, agora eu vou fazer um panelaço a favor da delicadeza.

isto aqui é só teoria.

te proponho pelado.

7.9.10

muy rico papi

vou ganhar muito
dinheiro escrevendo um
dicionário de expressões
sexuais e unir a américa
latina no grande gozo
bolivariano

6.9.10

playground

a tristeza agarra nas tuas calças. Ela é uma criança de poucos anos que tem medo de andar sozinha. Você diz "vai brincar com os coleguinhas" e a criança fica do seu lado, é um encosto. A gente vai lá e cuida da coisa frágil. Se eu fosse definir a missão do ser humano, numa entrevista prum ET, eu diria: a gente cuida das coisas. O ET olharia pro planeta Terra todo zoado e depois para mim, cheio de más intenções. A gente cuida das coisas ruins, eu completaria sem saber. Ai eu sou um falastrão nessa entrevista com o ET. Corta.

Mas a coisa frágil.

A coisa frágil é um bilboquê. Também a mão quente e úmida do coleguinha na ciranda. Eu tinha nojo e vontade dos corpos dos coleguinhas. Hoje quase não tenho mais nojo porque fui muito bem educado.

Quebrada na prática. (...)

buenos aires

ideia editorial, fazer
um road book, diários
de bater perna

#

as ruas são largas idem
as calçadas com árvores
simétricas a violência da
cidade é essa, quanta gente
escorreu pra gente ter agora essa lisura de caminhos,

um monte de brasileiros de mapa aberto,
falando português como se não existisse outro idioma.
os argentinos respondem sem sorrir, pacientes,
eu tento falar um castelhano sucinto porque fico com vergonha de ser confundido com os brasileiros

ontem passei a tarde toda tentando escrever uma história uma carta sem raiz ou antes: de uma raiz aérea, que se desprenda e grude em outro canto pra não ter passado, uma vida sem origem, sem ato inaugural. mas ando demais por aqui, as ruas são muito agradáveis, quando chego num lugar é porque meus pés tomam toda a atenção.

#

diário de viagem.

#

coincidência que estou lendo um livro do Ricardo Piglia, que é argentino. A coincidência é essa. o livro se chama "Prisão perpétua". Explico pra menina inglesa que é a história das histórias que a gente inventa/escolhe/é escolhido pra viver, e não sai mais delas, porque a narrativa é uma armadilha também. Explico num inglês meia-boca. A menina diz "sounds very interesting" e come outra pão com doce de leite. "Oh my god" pro doce de leite, que ela não conhecia. Do livro depois eu conto mais. A inglesa foi embora e ontem eu encontrei uma livraria cuja especialidade são livros de editoras independentes. O moço da livraria é um argentino cabeludo que morou em Santa Catarina e ficava surfando por lá. Disse que montou uma biblioteca na cidadezinha, mas quando voltou pra Argentina se desfez de todos os livros. Como eu não entendi o que ele disse (se vendeu, se doou os livros) me dei o direito de imaginar a cena, coisa que faço com frequência, ainda mais se tratando de língua estrangeira:

Ondas marés estantes volumes na praia, sendo levados.

#

Eu poderia ficar escrevendo o dia inteiro.

4.9.10

epistolário

o desejo feito cartas que
se escrevem correm as letras
não encontram envelopes

#

na festa eu conto de
novo, sempre, a grande
história passional,
que não tenho conta no banco,
e latino-americano,
e vindo do exterior

#

(de tanto andar por
aí vou dar nome às
solas dos sapatos
chamar-lhes tristeza y
dolor gastem-se todas)

#

o exterior

#

ouvi dizer de um livro que é uma ficção científica
fala de um tempo em que o vírus passa por pele
de modo que as pessoas reclusas em casa
ninguém se encontra escrevem-se umas
às outras longos sentimentos afáveis
na esperança de receberem resposta deus
me livre de esperar resposta como se eu
tivesse um vírus letal na pele apesar
disso atualizo toda minha vida virtual
constantemente

#

não escreve mais cartas
como antigamente

#

anotações pra um epistolário.

1.9.10

upa la la

31.8.10

diário

a viagem vai chegando
perto faço listas para
não esquecer as coisas
ir ao banco lavar
roupa por exemplo, a viagem
é uma trapaça no tempo
ou é ele que blefa
finge um colo pra
depois me esquecer e vir
a trote gritando a-ha
te peguei

30.8.10

o crime da mala

a mulher picotada escapa
um bolso furado
polícias sargentos a igreja
e todos os jornais vêm acudir
eu não posso te levar comigo
nem te despachar pra bahia
de todos os santos
te deixo na estante, com sobrevida
no que deveria ser a minha alegria
virou essa coisa empoeirada
tiro a poeira
você fica lá
espanado

depois de amanhã eu vou viajar
o avião vai cair e você nunca mais vai me ver
vai chorar lágrimas de sangue
tanto amor a gente tinha pra viver

é nada.
eu vou chegar lá longe.
você vai ficar agarrado no meu ombro
feito encosto
até eu arranjar outro.
esse outro não vai ter poeira: delícias
mucosas presentes de grego, deus
grego

lembrei agora dos poemas do kaváfis
com os meninos de esguelha
e os velhos perfeitos que cambaleiam

eu não posso te levar comigo
nem te despachar
nem com pinga

acho que preciso aprender a conviver
com você sem você
mas isso é viagem minha.
o tempo cura todas as feridas
só não faz milagres.
os pedacinhos de mulher
que te digam.

amor

sempre que eu arrumo papéis eu lembro de você.
isto é uma carta.
mas quando eu escrevo cartas eu não lembro de você.
etiquetas organizadas eu lembro de você.
e também coisas de qualquer um, tipo unhas quadradas.
pontas dos dedos eu lembro de você.
de qualquer um as pontas dos dedos.
lembrar pode ser uma questão de toque.
lembrar é definitivamente uma questão.
sempre que eu penso "presença" eu lembro de você.
a presença nunca é uma questão.
a não ser quando pensada.
presença pensada é uma ausência.
eu queria ter sido didático assim com a gente.
sempre que eu penso em não ser didático eu lembro de você.
e quando eu ponho pontos finais.
sempre que eu ponho pontos finais eu lembro de você.

unha

feito paredes / de
beliscar

parecia

nova imagem no espelho parecia
uma cara coberta de pano
camisa peito aberto você
ausente de um rosto e eu
incógnito atrás do que é
seu

com espátulas brocas cavar
o espelho tirar as
camadas que ficaram até
que chegue o que não vejo

a parede o quarto do vizinho
o fim do prédio o ar
livre se eu caísse continua
cavando essa espessura
pra encontrar

o que não está e mesmo
assim perdura

cadernos da ida

entro no site local pra saber a temperatura
que tipo de roupa levar a previsão
astrológica não iria me informar com tanta
precisão os perigos do frio dos preços da inflação

quando você sai de casa, quando vê as coisas
pela última vez, é como se já tivesse chegado
ao local

o destino começa no primeiro passo

esta vida é pra aprender a ficar e partir

o corpo da gente é um meio de
transporte

a partir daqui até a morte vou concebendo
axiomas do movimento
um vento sopra eles pra longe, desfaz em folhas
tanta verdade, nossa senhora do movimento
é uma árvore sem medo de perder
vou ser que nem ela. queria muito rezar e ter
uma companhia pra essas passagens. a solidão
também inexorável, primária me leva
pela mão que nem professora do jardim
da infância, tem modos didáticos e não
se envolve demais, apesar do carinho. tudo
isto é a história do apego. inevitavelmente
o futuro não chega, toca a gente
agarrá-lo sem presas.

sinto que desde sempre escrevemos
as rotas de migração, mas agora me
pergunto se é possível escapar do inverno
perseguindo o eterno verão?

busco um berço generoso
na rotação da Terra. bem que as respostas
poderiam chegar na manhã
de uma volta.

ENORME, MÓVEL,
ESCURO E DERRADEIRO

MEU AMOR É O MAMUTE
NA ERA DO GELO

29.8.10

istmo

figura um bosque aceso
a pessoa vai de costas
narrativas das imagens vagas

se eu sou precário, o texto /

um bosque aceso

*

História do gato: que nunca soube que era um gato. Nunca desconfiou de que fosse um gato. E no entanto miava no cio, era leve, e só voltava quando queria.

*

A força mantém a matéria. Primeira lei das órbitas.

*

decola

um céu todo teu. fim.

*

Devido a grande pane no acontecimento das coisas, todos os aviões do mundo foram impedidos de pousar, os que estavam em voo, pilotos inalcançáveis convictos e outros, no chão, ninguém mais decolava também. Os passageiros aéreos ficaram desesperados, ao que sucederam-se vários motins, barrinhas de cereais roubadas no dente, e quedas mortes porque é melhor morrer logo do que ficar aqui voando até morrer depois, seja de fome inanição ou solidão, qualquer passageiro diria isso em entrevista, uns de fato disseram pelas redes de comunicação invisível que existem no planeta, suas fotos sorridentes em jornais do tempo em que estavam na terra. Uma boa parte dos aviões, no entanto, seguiu voo. E foram abatidos por terroristas presidentes raios vendavais ou simplesmente aves nas turbinas, o desengano maior que é um encontro entre dois objetos livres em voo que se exterminam mutuamente.

Nós, aqui embaixo, assistíamos a tudo primeiro espantados, depois perplexos, depois vagamente perplexos, depois sem sombra de espanto. Os aviões em terra enferrujaram e cresceram as companhias de transportes fluviais. Menos pessoas viajavam, verdade, pois os caminhos ficaram longos e nem sempre se tem paciência para o mês no convés. Contudo, talvez pelo costume, o trânsito entre os continentes seguia volumoso, multidões se deslocando entre turismo trabalho e aquilo que eu não quero mais chamar de amor. Os navios partiam lotados rumo ao horizonte e muita gente esperava nos portos para embarcar. Até o dia em que os navios se esqueceram das margens, dos ritos, e nunca mais atracaram.

27.8.10

bonita

Nem a mãe consegue achar. Olha pro marido constrangida, vê que ele também não acha, mas quem irá admitir? Nem tem o que admitir. Estou levemente copiando a história do romance Cotovia, de Dezső Kosztolányi, e nem tinha reparado, desculpe. No livro, a Cotovia é uma solteirona que mora com os pais e que vai passear no campo. Aí eles ficam sozinhos em casa pela primeira vez desde que a filha nasceu e têm de admitir gradualmente: ela é feia. O romance é muito mais sutil. Vou mudar a estratégia e tirar o foco dos pais.

Nem a mãe consegue achar. Ela passa o batom, vinte anos a pele tão seca, os lábios puxados, ela parece um peixe. Ai de nós, um peixe feio. Se namorasse um rapaz camponês em alguma ancestralidade inocente, ele olharia pra ela com ternura e espanto, de pau duro, e diria: você tem olhos de bagre. Ela ficaria ofendida e elogiada e dengosa com carícias: e o seu mastruço é de lambari. Vamos convir que a beleza e as adequações do corpo são bastante relativas e constrangem qualquer um, quem é que está feliz consigo? Muito menos com os outros. Ela, coitada, calhou de exceder os limites da civilidade. Tem gente que grita na rua "filhote de cruz-credo!". Era legal ter uns campos de concentração pra gente que nem ela. Ou, numa ancestralidade tribal, teria sido enterrada viva assim que nascesse. A maldição da mulher-peixe.

Aqui eu perdi o estilo outra vez. Ninguém gosta de uma menina feia, ninguém vai gostar de um texto feio. Harmonia e reconhecimento. Somos todos uns nazistas.

Pois bem. A mãe olha resignada a menina que sai de batom, perfume, roupas boas e mesmo assim é um estrupício. Chegaram a ir no médico, mas não, senhora, a medicina ainda não identificou isso como uma síndromes, não senhora cromossomos DNA sim podemos fazer testes mas, entenda, não há um padrão, veja aqui: sua filha é perfeitamente normal para a medicina. Um cirurgião plástico, talvez, embora ele não vá resolver o cecê, o cabelo ruim, a corcundinha, talvez modelar um pouco os olhos, fazê-los assim de gazela, implantar cílios, talvez melhore.

A menina sai sem cura e encontra o homem que a espera de carro. As fotos na internet não davam a dimensão de que era tanto o estrago, ele se assusta um pouco, mas se controla. O homem é meu pai, por isso eu sei de tudo isso: ele põe a piça pra fora e galanteia: e aí, vamos assar essa perereca? Ela fica masturbando e eles vão falando sacanagem até chegarem num motel. No caminho ele pede: mama o gansão do papai aqui, porque assim a cara dela não fica visível pros outros motoristas. De boca cheia, encolhida num banco macio, a mucosa é o prazer universal. Vou parar aqui e brincar com a minha. Fim.

ar seco

é o tempo do fogo alastrado
eu gosto muito de um conto do Caio Fernando Abreu chamado "Holocausto": em volta de uma fogueira, o fim dos tempos, peste e solidão alimentando o fogo. É muito triste. Na escola a gente tinha que apresentar um conto e eu apresentei esse, causou uma certa comoção. A Andrea fala que a gente não sabe ser agradável. E também fala: "fazer o mal sem olhar a qual". Rimos muito. Eu sou bastante agradável, sim. Mas de repente o bicho escapa.

O BICHO ESCAPA

e ele é pequeno, a cidade não o vê. Uma mulher cheia de sacolas quase tropeça nele e dá um grito: AI! e depois CREDO! o bicho feinho olha pra ela. Meu pai dizia: ele assustou mais com você do que você com ele. O bichinho era o meu pai. A mulher das sacolas não sabia e deu outro grito: QUE NOJO! Um camelô foi acudir e PLOFT pisou no bichinho com a sandália havaiana. "Assustou, dona?". Ela agradece com nojo do camelô. Meu pai morreu. Fim.

Projeto de ONG: "Respirar por um mundo melhor". A nossa ação visa conscientizar as pessoas de que se todos conseguirmos prender a respiração por um minuto, ao mesmo tempo, seis bilhões de pessoas no globo, isso não vai servir de nada, mas vai ser bastante divertido de contar e talvez resulte imprevisíveis avanços da ciência.

O mundo é uma bosta e não melhora. Respiramos.


PARAMARIBO ROAD

carrinho de fricção
john travolta acende isqueiro explode a cidade
meu pai vai junto
é o tempo de maior secura em são paulo
10% de umidade do deserto do saara
massa amorfa marrom na janela
vou cruzar o rio da prata
lavar a borra feito ganges
o futuro ninguém sabe:
incêndios fumaças riachos
vou parar de usar metáforas meteorológicas
da geologia
e falar de gente
terremotos dos corpos
taí não consigo
faço o contrário:
pele dos continentes
ontem aprendi nova palavra
istmo
sendo uma faixa de terra a ligar duas maiores
e.g. istmo do Panamá, istmo de Suez
ou há istmos naturais, que não tenham resultado de
acordos comerciais? eu sou península.
vou escrever a epopeia de toda essa secura.
e morrer num desastre de avião. igual
Carlos Gardel.

25.8.10

anotações pra lua em peixes. são paulo

pendurado numa rede de balançar sobre a cidade

nós somos peixes que a lua pega numa noite

cardume à deriva grande barco do planeta

22.8.10

tour para o futuro. planeta diário

há milênios que se anda no mundo
uns atrás dos outros
trenzinho da alegria
e fileira de dominó da crueldade

eu criança ficava pensando intrigado muito constantemente como é que pode tanto pé fazendo atrito e ainda haver chão! a única coisa que se pode concluir é que: há chão bastante.

e mais, talvez: pois você escava e encontra outros pisos e mesmo tetos de cabeças cavalos enterrados viraram fósseis dinossauros nossos antepassados inúmero primatas. as conclusões me admiram cada vez mais: que não só o chão não se gasta, como só faz crescer!

chega um momento em que a terra atingiu a atmosfera
lá em cima os aviões passeiam de rodinhas, trens de pouso
sempre expostos, e jacarés caminham no que antes
eram os cumes dos andes, um grande pântano tornou-se

o destino do universo: chãos crescendo, a erosão era
ilusória, parecem bolos de fermento os planetas que se
juntam: vênus, terra, marte, mercúrio, júpiter, saturno, urano,
netuno, plutão

todos juntados em pedra
formam uma lua crescente
que gira tostada em torno do sol
bambolê

pensa nas coisas mais queridas
que se tornarão fóssil, fenda, ferida,
rocha perpétua no centro da vida

mochileiro das galáxias a gente
deveria ser mais generoso com esse
nada de tempo em que vivemos

objetivo de vida: ser generoso
slogan: porque a vida é agora

não quero viver um slogan

título da vida: não sei ser rótulo

agora imagino braços cruzando oceanos

a imaginação é o que a gente tem
os braços também

mendoza

Sonhei algo a ver com Mendoza, onde só estive de passagem uma vez num posto de fim de estrada, acho que no sonho tinha um homem que era de lá, quero pensar no homem com calor e partes umedecidas, ontem o Fabinho chamou a atenção pra garrafa e disse mendozino, por isso eu devo ter sonhado, acaba ficando do sonho só a palavra, realmente não lembro de mais nada

moby dick

"os verdadeiros lugares não estão no mapa"

21.8.10

nosso amor ridículo se enquadra na moldura dos séculos

nem tanto ao céu a queda de
um pássaro no asfalto comido pelo
tempo a terra cresce em plantas tudo
tomam esses matos ossos cemitérios gado
e bosta ressequida formando o chão
que a gente pisa abaixo dele galerias
de água suja e ratos e lençóis
freáticos meu amor é nesses que a gente
deveria se deitar para nascer sem
chuva ácida cisticercos água
parada correndo de volta pra o meu
aconchego se infiltra e abaixo pedras e
mais pedras e mais pedra até que
tanta pedra ela se funde e queima e vira
lava magma no centro a Terra é um grande
coração maior que tudo não vamos
nos ater a esses dramas miúdos nós
que somos queda e lava e oceano meu
amor sejamos tanto e tantas vezes
merecedores do planeta,
tectônico

extravirgem

a maior plantação de olivas da península
ibérica onde fazem até amor gosto de azeite
e mesmo as brigas brigadeiros sabonetes nós
vivemos um grande deus de frigideira que
óleo frita a nossa sorte e serve à
mesa você me quer com temperos ou ao
dente ou carne seca beba babe hoje
um jogo americano nos parques de nudistas
da alemanha enchem cestas pela manhã com
azeitonas lábios secos lubrifica o
avião comercial desliza os céus e unta
outra via um continente a
américa

os fósseis nossos

daqui a um trilhão de anos essa
tendinite achada com
melancolia numa escavação das raças
futuras. você também, de coração
acompanhado pelas relíquias sagradas de
plástico, chega junto dinossauro
da minha afeição grande réptil
do que não deu certo, astros
da televisão num caminho mamífero
de gordura se torna pedra, carícia
essa palavra osso entrada em
anos entardecer da nossa era,
me agarra o solo nos espera.
escolhe o novo que te completa
nem que seja velha a escolha
algures escrever a coisa azul
sobre o desejo da palavra algures
solta no nunca aparecer
é assim como a resposta do desejo

a resposta do desejo

meu amigo vira a esquina dizendo a vida é muito dura, agora ele tem tudo menos tempo de vivê-la, meu amigo diz "a vida desaparece nesse enquanto"

as minhas escolhas me trouxeram a este acaso
eu queria poder dizer ao meu amigo que afirmar é o motivo
mas o sim não me convence além do meu passo
que tem sido em falso, cadafalso
eu vi as melhores mentes da minha geração blablablá
eu ainda não tive uma geração
nós já estamos velhos pra sermos jovens
desconfio que é nisso que encontraremos o
de fato, a essência, a nossa síntese,
numa maturidade tardia, nós mais frescos que os mais frescos que virão
a gente fruta orvalho e vulcão
mas essa desconfiança não enche barriga,
enche meus dias,
eu e o meu amigo nos despedimos e eu vou embora
por que não?

19.8.10

divórcio

mas fica em casa sozinho. hoje é esse amor que não me acompanha: moreno, meio desajeitado e egoísta o bastante pra não lavar a louça. A história dos amores que não deram certo, que é a história de toda a humanidade. Ela fica em casa sozinha e não vai abrir a porta pra quem chega. Ninguém chega. Nem a porta do fogão do gás, pra se matar. Vou fazer uma lista de todas as pessoas que sentirão a minha falta se eu morrer AGORA: papel, lápis, sofá. Número 1: pensa, pensa, "minha mãe". Número 2: "meu gato". Olha para o gato, que não olha para ela, e amassa o papel cheia de pena. É uma desgraça essa vida. E ela sente, não é uma ideia, nem um pensamento, é uma premonição que não vai se concretizar: em matar o gato de fome, pois assim quem sabe ele a olhará com carinho. "Eu aqui sem comida, miau, minha dona deve estar triste, miau, eu sou um gato terrível e egoísta", liga a tevê.

Mas eu não vou falar da tevê, porque nesse momento ela não existe. Vou esperar um pouco, ela desliga a tevê e eu a pego de jeito: a cabeça no travesseiro. Quando a mãe morreu e ela se viu sozinha no apartamento, achou que era muito justo, e até esperado agora, que comprasse uma cama de casal, assim o fez. Nunca a dividiu com ninguém da sua espécie, não porque se guardasse para algum momento especial, mas simplesmente porque ninguém nunca pediu. A quem pedisse, ela daria o travesseiro. Mas tem gente que tem essa sorte no mundo: ninguém te quer. Tanto foi que, quando teve idade de se aposentar e entrar de graça no ônibus, deu a vasta cama solitária para o Exército da Salvação e comprou uma menor, estreita, que pareceria mais triste, sim, unicamente porque a tristeza estaria concentrada.

Agora eu preciso arranjar um porque para esse título, "divórcio".

Posso dizer assim: que ela pôs o gato pra fora. Que ele ficou arranhando a porta do apartamento, incomodou todos os vizinhos durante a noite, mas não houve apelo do síndico que a tirasse de sua resolução. Depois, como ela já tinha fama de solteirona e, pior, de velha, acharam que faziam um favor pra todo mundo se sumissem com o gato dali.

Não foi assim. Este é o momento em que ela se livra da cama de casal. Foi com pressa, pois ela nas decisões não tinha não-sei, era pá-pum. Na primeira noite, teve de dormir no sofá, pois não tinha se dado conta de que viria a noite seguinte e viria o sono e enfim onde é que se dorme? Uma mudança tão brusca e tão necessária independe de firulas, você dorme em qualquer lugar pra não ter que dividir mais uma noite que seja com / o vazio.

De manhã logo cedo foi a uma loja popular e comprou a que lhe pareceu a cama menor e mais silenciosa de todas. Entregaram no mesmo dia e ela pagou à vista. Depois disso ela ainda viveu vinte e três anos, alguns meses e uns dias.

a morte do autor

uma coisa que eu não admito é escrever sobre escrever.

mas abro exceções.

declaro pra quem quiser ouvir (a plateia é basicamente composta por mim mesmo, que quero muito ouvir isso, ser é um devir e tal) que não escrevo mais nunca mais nunca NUNCA mais a partir de agora.

uma obra natimorta.

entreguei meu presente pro mundo.

o céu seria mais azul.

e imagino uma situação: ele um filólogo fugido da guerra com a pobre mãezinha, ele grande erudito da língua morta que só a mãezinha fala, ele homem de letras de uma universidade bombardeada exilado no brasil VIVA O BRASIL acolhe os órfãos do mundo grande mãe / diferente da mãe dele, que é pequena e quase morre. antes que morra, ele começa a anotar as palavras: "mãe, como se diz cumbuca? mãe, o que é uma novena? mãe, tal sentimento qual seu nome?". a mãe responde, mas quem dirá que a memória dela tem valia? ele anota, tabula tudo em documentos no computador, haverá grande interesse por uma língua morta de uma civilização exilada da qual só sobraram uma velha caduca e um literato solteirão. é um tanto feio, também.

me angustia quando uma história não tem desfecho.

viagem

tão logo se abrem, os mapas não servem

18.8.10

resoluto. anotações para. gana de agora.

quantos dias para o dia chegar / ou um úmido de penas / voto na escritora que não quer ser escritora / a escrita é uma grande bobagem / quero ser vaca no pasto

objetivo de vida: a derrocada do sistema capitalista.

anuncio no blogue, pois é.

1) fazer a nossa geração.
2) terrorismo viral e gatuno.
3) beleza põe a mesa.
4) como nunca antes na história deste país / da grécia chegam notícias: os revoltosos exigem A ABOLIÇÃO DO ESTADO / nem as organizações criminais poderão nos salvar / o amor também não poderá / o amor é uma bobagem, é uma invenção burguesa e é uma delícia / a favor de todas as delícias

é hora de terraplanar o inconsciente.

anotações para um manifesto.

objetivo de vida: escrever manifestos.

estudante de húngaro

Paulo Rónai comenta as dificuldades de seu idioma materno, o húngaro, considerado uma das línguas mais complexas da Europa. “Levei muitos anos até perceber as complicações de seu mecanismo. À medida que aprendi outras línguas é que me espantava com a minha”, confessa. No seu primeiro contato, o estrangeiro se extasia com a simplicidade aparente do idioma: a ortografia é praticamente fonética (ao mesmo som corresponde sempre a mesma maneira de grafá-lo). Além disso, as palavras não têm gênero (masculino, feminino ou neutro), o que deixa todos os adjetivos com uma única forma, já que inexiste a necessidade de concordância. O quadro dos tempos verbais é quase miserável: só existe um passado e um presente, mais alguns tempos compostos. Cessa aí, contudo, essa singeleza enganadora. Há um feroz sistema de declinações, com quase o dobro das declinações do Latim. Além disso, diz ele, “A inexistência dos tempos verbais é também compensada, e rijamente, pela abundância de outra espécie de recursos. 0 húngaro, como o russo, pouco se preocupa com a correlação dos tempos de um período, mas é cioso de marcar nitidamente o aspecto de cada ação considerada separadamente. Ele não sente a diferença entre escrevi, escrevia, tenho escrito, escrevera, tinha escrito, ações que se confundem a seus olhos num vago passado “írtam“; mas quer saber as circunstâncias em que a ação foi realizada: se a pessoa escreveu sob ditado ou copiando, se em folha solta ou num livro, com ou sem intuito de guardar a anotação, se encheu a folha ou não, se o que escreveu era substancial ou acessório, se o tirou de uma ou de várias fontes…e, conforme o aspecto dominante, usará o passado “írtam” precedido de prefixo ou provérbio diferente (“leírtam, átírtam, beírtam, felírtam, teleírtam, odaírtam, kiírtam, összeírtam” …) ou, como diríamos nós, empregará outro verbo composto.

A riqueza de matizes destes e de outros prevérbios é espantosa: um deles (“ki-“), junto ao mesmo “írtam“, indicará ainda que o escritor deu tudo o que podia dar e está esgotado; outro (“el-“) que o assunto que tratou ia ser tratado por outro autor; um terceiro (“agyon-“),que morreu de tanto escrever.

“Os adolescentes húngaros não sabem o que são aspectos do verbo, porém os manejam com instintiva segurança; ao passo que o estrangeiro perde completamente o seu latim sem ter adquirido o húngaro dos outros. Tanto mais que os mesmos prevérbios associados a outros verbos indicam aspectos inteiramente diversos: assim, se “fel-“, seguido de escrever, indica que se escreve para guardar a anotação; de ler, que se lê em voz alta; de viver, que se come tudo o que se tem; de olhar, que se olha de baixo para cima; de chorar, que se explode num choro convulso; de citar, que se evoca um morto; de cobrir, que se descobre; de dar, que se remete uma coisa pelo correio, ou que se denuncia alguém, ou que se abandona uma partida; de tomar, que se apanha uma coisa no chão, ou se admite um empregado, ou se leva a sério uma observação; e, por cúmulo, às vezes não exprime nada disso, apenas o acabamento da ação.

“Se essa riqueza na expressão dos aspectos constitui fenômeno surpreendente para os latinos, não perturbará sobremaneira um alemão ou um russo, que conhecem na própria experiência lingüística o uso dos prevérbios, fonemazinhos perversos que, sem chegar a ser palavras, freqüentemente se soltam do verbo, às vezes até para substituí-lo de vez; mas germânicos e eslavos perdem todo o à-vontade ao tomarem conhecimento da existência de uma conjugação “transitiva” e outra “intransitiva” (denominação imperfeita, pois a segunda se usa também transitivamente, apenas com objeto indeterminado), e ficam perplexos ao descobrir que as formas verbais podem refletir a pessoa não só do sujeito, mas também do objeto direto – o que faz que nas frases “Eu amo uma mulher”, “Eu amo as mulheres louras” e “Eu te amo” se usem três formas diferentes do verbo “szeretni“(“amar”): “szeretek, szeretem, szeretlek“.


(daqui)

15.8.10

argumentação

solar a maré que nós machos guardamos, mas
se envolves os membros no meu tronco que
associações posso fazer - imagéticas, simbólicas -
o uivo de um lobo e veludo na tua

muito embora não sangremos estou certo de que
é um escuro quando vejo a lua
cheia, esse abandono da órbita que
retorna, e muda a fase na

(tua língua engole à cata
cisticercos casamentos cartões
de crédito roubados, mas

devolve fosse
seda, na saliva,
pro meu dentro)
(obsessonho)

14.8.10

um nome que te faça, e

a premissa que dás aos olhos pra mim fica
nas palavras lembro que sonhei uma vez com
castanhos e soube o dia em que chegar a eles
então será o amor, profético um sonho de
cores que nunca se realizou mas qual sorte
de sonho é de ser realizada? desde agora faço
profecia com os dedos que entram
no corpo que eu não conheço assim de novo
o sonho, feito de carne e doce, acolhido
neste espaço.
Cada um fora feliz alguma vez e ficara com a marca do desejo.

(CL, Felicidade clandestina)

sopro

vermelho involuntário oco pulsa
pensa em todos os chavões coração
dentro do peito aventa agora
a coragem outra, de não dizê-lo

13.8.10

A interpretação dos sonhos

E essa noite tive um sonho pornô bem chulo com uma assistente de proctologista, que era uma morena linda chamada Sorror.

boca de lobo

a boca dele tem cheiro de pé
se as nossas unhas tivessem paladar
acontece que o corpo inteiro
é um lugar de passagem, a gente
passa a mão nas partes, que é o todo
mais próximo do meio

no cinema, os dois chineses
não têm cheiro você sabe uma bobagem
chineses fedem todos sabem
queria ver você gostar do clark
gable que tinha um bafo tão
ruim nem o vento levava
pobre vivian leigh

e o proust com um cheiro
fez duas mil páginas de historinha

eu vou rimar dizendo "termino
nesta linha", mas daqui a coisa
se estende, sem estilo, por
todos os bueiros da cidade,
nenhum ralo é poupado,
o cheiro sobe os asilos e igrejas
a casa da sua mãe

o cheiro se espalha, mas
segue uma linha narrativa, ele
também, assim como o som, se você
pensa é tudo transmissão molecular,
então como pedir uma suspensão
da nossa linearidade se linha
molhasse ah se linha mo-

(aí eu penso uma hipótese
que foge do texto: o afeto
casado com o tempo)

12.8.10

veneno cor-de-rosa

Tia Rute

Ela era que nem ter férias, mas eu quase não me lembro. Fazia cosquinha na barriga e, imagino, tinha uma voz meio esganiçada, meio gaguejante, mas também muito terna e envolvente, habilidosa no ofício de agradar.

Chegou sem muito aviso prévio e ficou tempo o bastante para que eu estranhasse sua ausência, até que me avisaram "tia Rute foi embora" e eu amuei, cinco anos de idade, e achei um descaso um desrespeito UM ABANDONO que nem tchau ela tinha falado. Era a irmã da minha avó e eu sempre tive um tesão especial pelas velhinhas, frequentava a casa de todas as vovós da rua, mesmo as que não tinham netos, e às vezes elas eram minhas amigas mais do que as crianças. Passávamos as tardes conversando e colorindo e comendo bolachas.

Aí eu ficava esperando que a tia Rute voltasse. Lembro que durante muito tempo toda campainha era ela, cada pessoa que chegasse, mas nunca mais a vi.

Um dia me contaram, acho que minha mãe, que ela saiu de casa porque quis ir um dia de minissaia à igreja e meu avô não deixou. Eles brigaram, ela pegou as coisas dela e foi embora. Faz sentido porque eu nunca estava com os meus avós no domingo de manhã, então não vi nada disso.

Depois, acho que eu tinha uns onze anos quando a gente estava passando de carro por Itu e minha mãe soltou, através de uma praça escura, "acho que foi aqui em Itu que a tia Rute morreu". Falou isso como se fosse qualquer coisa, mas eu fiquei cho-ca-do e quis saber mais. Tia Rute tinha morrido?! "É, de aids". Porque a tia Rute era "stituta", na linguagem da minha mãe, assim como quase todas as irmãs da minha avó foram.

Faz coisa de um ano, talvez, eu e minha mãe olhávamos um bando de fotografias velhas e foi novamente ela que anunciou "aqui tia Rute". Uma moça de nem vinte anos, de vestido claro e rodado à moda do começo dos anos 1960. Ao lado dela, um rapagão bonito e bem apessoado, que minha mãe inocentemente disse não conhecer. Ele estava com uma camiseta colada ao corpo forte, grandão, um topete, a jaqueta segurada pela mão no ombro e, ao lado, um carro da época. Tudo muito típico. Assim como o sorriso da tia Rute, boca fechada sem timidez, gostosa no vestidinho bonito, ao lado do homem.

Mas a única lembrança que eu tenho dela, um pouquinho mais nítida, é de um dia, talvez domingo, estarmos no quintal conversando. Acho que as roupas eram de domingo. Ela se arrumava ao espelho e tirou de dentro dele um frasco de Biotônico Fontoura, bebeu em colher de sopa o líquido preto e me ofereceu. "Quer experimentar?". Era um frasco enorme, cheio daquela água escura e esquisita. Eu tinha muita vontade de provar, mas também tinha nojo. E não lembro se provei.

vênus em escorpião

tem uns morcegos rondando o quarto de dormir. Eu achava que eram ratos e ficava procurando nos batentes, nos pés das paredes aquela corrida cinza e assustada que me assusta. Mas aí me explicaram: são morcegos. E eu passei a procurar nas janelas o assassino sanguinário bandidinhos de luz vermelha morcegos. Mas aí me explicaram: eles são nossos amigos, comem insetos.

Como eu não gosto de insetos, me fecho em casa e agradeço aos morcegos

que ficam guinchando lá fora, em banquete.

Quando menos esperar, mando à merda esse papo de astrologia. Mas por enquanto ele me serve pra colocar em gavetas a desordem, depois desordenar e gavetas outra vez.

As gavetas vão se gastar e vira road movie outra vez.

Pensamento leve da madrugada:
el caminante é quem faz a caminhada.

e à luz da tarde, de salvo-conduto,
tem muito chá brotando nesses viadutos

8.8.10

proposta, manada, alegria

a tristeza é um boi de piranha
que a gente manda na frente
porque atrás vem gente
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

Italo Calvino, As cidades invisíveis

imagem

mar de manhã
sendo mar uma metáfora
pro meu amor e manhã
essa tarde clara
que engravida
a janela vazia

7.8.10

sonho

é um desengano. Mas também um grande privilégio: que a cada minuto morre de fome uma pessoa no mundo e você, aí, essa bela barriga. Vou contar a história da barriga.

Que os mandarins eram grandes glutões, os europeus quando os viram ficaram extasiados: homens cultos, tocando a viola e enormes mais que porcos. Outra história da barriga: os castrati, que eram bem comuns não só na China, mas em muitos países da Europa: a família cedia o menino ourinho do coro ao rei; então, antes da puberdade, cortavam-lhe os ovos ou algo parecido e o menino não desenvolvia pelos e músculos, do contrário ficava meio viadão aos olhos de todos, de mamas grandes e voz fina. Dizem que era um ótimo subterfúgio para as damas da corte, que podiam tê-los como amantes sem que ninguém desconfiasse, eunucos pintudos endurecidos que mais pareciam moças delicadas. E um dos efeitos da castração era a gordura, também a calvície. Dizem que não eram belos os castrati, rouxinóis com aparência de hipopótamos, mas quem vê beleza não põe a mesa.



Um homem esguio, magro de ombros finos, sempre muito seguro de sua magreza, começa um dia a desenvolver o grande medo, uma tenebrosa pança. Que cresce até que o hábito de encolhê-la não sirva para nada além de espremer o diafragma e provocar falta de ar. Não que antes ele fosse particularmente atraente, mas é que agora.

Pausa. Essa é uma história injusta. Vou pra outra.

Grande, forte, cavalo. E coroado dos lados pela massa fofa de certezas: os machos culotes. Esse é um outro personagem. Quantas mãos já agarraram isso feito rédeas / pra não cair do seu galope.

Link.

dinoçauro :(

http://www.nomorefriends.net

as rosas não falam

entre os dedos é uma história

dos cavalos que se extinguiram da natureza nos desertos da mongólia, o deserto de gobi um gigantesco paraíso de fósseis os paleontólogos e os cavalos de nome impronunciável.

"gobi" é palavra mongol que significa "deserto"

gosto da geografia por ela ser redundante

mas os cavalos: sumiram a forma selvagem nos anos 60 e foram reintroduzidos gradualmente

agora correm livres, são mais parrudos que os cavalos comuns

a júlia diz que a gente é que nem esses cavalos, mas vivemos na saudade ainda não restituídos no selvagem

cavalo-de-przewalski

você também deve ter seus momentos açúcar

6.8.10

soque-o, agarre-o e solte-o

só o coelho pra ricochetear

marajoara

As paredes não escorreram, ficou tudo seco. Eu queria dizer: um quarto cheio de água. Mas nem goteira. Os jornais anunciam os perigos da falta de chuva: caso você sa CASO VOCÊ SAIA de casa / guarde seu pescoço, não faça movimentos brutos, hidrate-se muito. Dunas de sal. Estou tendo problemas com a prosa, confissão de diário n.1. Depois das cartas, tudo o que eu escrevo parece cheio de sal e açúcar, atrito de engolir.

O corpo vai rolando ladeira abaixo, ensaboado sem lugar pra segurar, enquanto a cabeça quica na outra direção. Coisa de gente cabeçuda. O narval, que é peixe-espada?, tem um dente muito sensível e longitudinal que, segundo o dentista do National Geographic, serve para que o bicho verifique as correntes marítimas e os níveis de salinidade e a existência de amor nas profundezas. De vez em quando precisa vir à tona: é quando são mortos pelo marfim.

E os marujos da antiguidade pensavam: eis, ali, unicórnios.

Queria que os problemas com a prosa fossem como carrapatos que te coçam, mas não o bastante pra que você búfalo marajoara deixe de ser: um grande corpo. Vou lá e me descubro um carrapato. Vou lá de novo e me descubro um ser humano que olha os búfalos e os carrapatos e não se entende com seu corpo. A prosa é o menor dos problemas.

Esses movimentos que a gente faz, de saída e de chegada, cansei de compará-los à respiração do mundo sístole diástole do coração de quem eu amo. Chega de eterno retorno, por enquanto. Volto pra um texto antigo:

OS CIGANOS QUE SEQUESTRAVAM

ou eram índios. o menino. no final, minha vó sempre dizia: o menino então voltava para os pais, depois que bons homens armados o resgatavam das trevas sem cristo. quando eu for minha avó, eu vou me contar da seguinte forma:

que o menino aprendeu a dançar como os ciganos e a cantar como os índios, cresceu mais um tiquinho, ninguém o encontrou. e um dia apanhou por causa de qualquer bobagem que aqueles tontos queriam. aqui não fico mais: sequestrou-se. no caminho, encontrou um rio e achou melhor segui-lo, pra não se perder. mas depois pensou que seria fácil também que outros seguissem o mesmo rio e o surpreendessem quando ele estivesse se banhando ou bebendo água ou dormindo flutuando. foi pra selva. e eu só posso contar até aqui, porque também eu perdi o menino de vista. fim.


*

eu sempre paro quando encontro cama no corpo de alguém. Então chegam as formigas, chega a fúria dos cupins, chega a peste e tudo isso me força a sair, povos nômades da terra, tudo o que eu tenho são meus pés e a cachola. Embora, embora.

Refugiados, clandestinos, sequestrados, perdidos: essa a história da nossa gente, canaã que eu não sei. Preciso escrever sobre isso.

Confissão de diário n.2, tardia: a escrita é a morada que me falta.

aventura

a maior foi uma panela de pressão
que por um momento pareceu
fosse explodir

desde então adubou
essa cautela sem folhas
tronco seco de quem deseja
mais que tudo não morrer

pudesse cobria
as juntas do corpo
de gaze e algodão no
movimento dos ossos,
no meio dos dentes

fácil dizer que esta é a história
de um espírito miserável

mas vós que fazeis as cruzadas
da grande aventura do mundo
não deveis vos indignar

há tempo pra tudo

e
não havendo
ela é pequena na cozinha
fazendo feijão no banho-maria
cinco horas depois, pronto o almoço,
mastiga devagar
o medo de morder a língua
quem não tem?
de arrancar um naco de carne própria
depois a sangueira, aftas

a grande aventura
é o futuro

4.8.10

jundiaí

depois de tudo

o nome da cidade significa um peixe
de rio, sendo "jundiá" os índios chamavam
uma espécie de bagre e "í" os índios chamavam toda
água

ou só a que flui
como o rio

este país foi todo feito por rios

os bandeirantes entravam no continente
chacina e coisa e tal
aqui durante muito tempo foi o último pouso
pra lá do japi sendo mato grosso

japi é o nome da serra que cerca a cidade
e que até eu sair daqui me angustiava
porque eu olhava em volta e era um obstáculo ao horizonte
coisa que hoje ainda acho, mas ganhei outros horizontes
então posso viver

a gente vive é vendo ao longe.

menos quem é cego. quem é cego deve ter outras metáforas.

mas pra mim isso não é metáfora.

de todo modo, é bom sentir, quando a gente volta,
que a cidade natal é também um entreposto

deus me livre de ser um bandeirante

mas acho que eu já tenho alguns objetivos na vida:
o fim do capitalismo,
alegria,
mato grosso.

2.8.10

história do alfabeto chinês, contada na pele

então o monge português pediu ao monge chinês
- escreva o seu abecê - pois queria aprendê-lo
ao que o monge chinês escreveu
[sinal]
[sinal]
[sinal]

o monge português pediu
- escreva-o inteiro
ao que o outro respondeu
que inteiro o abecê tem mais de 5000 letras!
e por enquanto você só dá conta destas três

- então leia essas três pra eu aprendê-las
ao que o chinês leu

CÉU
TERRA
PESSOA

.

(eu comecei explicando
"com isso se escreve tudo"
e não me parece falso, mas agora me corrijo:
em termos didáticos
com isso se começa a escrever)

.

também no livro do Tao
encontramos:

o homem segue a terra
a terra segue o céu
o céu segue o curso
o curso segue a si

belo horizonte

cada poste promete trazer de volta a pessoa amada
em 48 horas ou três sextas-feiras

por via das dúvidas levo um flyer

e vou decorando os nomes dos bairros
como se fossem doces gostosos.

segundo capítulo

diz que de algum desses morros
dá pra ver o mar e a geóloga que
há muito tempo atrás
tudo estava embaixo d'água
por isso hoje temos cobre
e - desconfio - somos peixes

terceiro capítulo

um texto do waly salomão
sobre viagens e voltas
dizendo que viajar é ruim
pois se volta e vira tristeza

"voltar e ir", fico pensando
e perco a direção
toda bússola imantada
gira a toda direção

como alternativa a essa tristeza, só se pensar
que pros chineses, no avesso do que pra gente
- visto que a china fica de ponta-cabeça -
o futuro é significado pelas costas
e o passado vem à frente

o professor explica:
uma pessoa caísse no abismo
suas costas voltadas pra baixo
ou aqueles ônibus em que a gente senta
do jeito contrário

26.7.10

ouro preto so long

mickey mouse versão clérigo
bem, tchau

na suíça encontraram um pacote de cartas
caídas de um avião espatifado
todos morreram menos os envelopes
que agora serão entregues, 60 anos depois

só isso me interessa

as letras perdidas na neve
envoltas em barbante plástico papelão
acho bonito essas coisas que demoram pra chegar

não gosto de atrasos deliberados
aí é falha de caráter
mas o acaso quando atrasa
fico imaginando razões aleatórias
perfeitas

eu busco a estrada ideal

linhaça

quando eu for bem capaz, vou escrever sobre as coisas mais banais

agora, no entanto, não consigo nem me interessar por gente que só come pão integral

gosto da história do menino chinês, aluno da minha amiga, que respondeu

"o que você gosta de fazer no seu tempo livre"

e ele:

"cocô."

diz que o chinesinho come dois pratos de arroz com feijão no almoço, é robusto aos onze anos, e a professora teve que pedir pra ele parar de fazer pum na aula porque ninguém mais queria sentar perto dele

agora ele vai no banheiro de vinte em vinte minutos, todo pimpão!

liberdade do cu dos outros é um refresco...

cama

a gente traz quinze cobertores e também traz o calor

acabamos nisso: de se revirar à noite, chutar a coberta pra longe, acordar gripado.

casados, se é quente não dormimos de conchinha. você que é mais melindroso logo pensa
"ele não me ama" e se abana / embaixo.

ou também um futon escondido
dentro da gente.

eu era criança e tinha medo de monstros que podem nos puxar os calcanhares. até hoje tenho.

na mesa do almoço, as moças discutem que ronco de mulher é diferente. eu não opino, só conheço os homens e mesmo eles muito pouco. de todo modo, gosto deles
quando dormem, dos barulhos.

cama é um começo de casa.

vou ser como o rio que passa

a internet de casa não funcionou, então vim pra uma videolocadora que tem internet e que passa bob esponja no último volume, então eu ponho os fones de ouvido fado no último volume porque condiz mais com o meu temperamento saturnino, então parece que eu faço jus à delicadeza, então eu anoto os números de telefone, os endereços, amanhã saio daqui, deixo o val kilmer a jodie foster o michael keaton todos pra trás do brasil colonial

é uma cidade construída com trabalho escravo e isso me choca. por consequência, acabo descobrindo que trabalho assalariado não me choca tanto assim.

outras anotações: não tomei cachaça; aqui a cerveja é de garrafão; os mineiros bonitos e morenos; tem que andar devagar, queria ver aqui a pauliceia!; mais igreja do que homem; vila rica; beijo bob esponja.

23.7.10

ouro preto

diz que uma personagem da cidade
que todos dizem ser cheia de loucos
eu ainda não vi muitos loucos
um ou outro sendo retirado do bar
devem fazer a limpa se é estação de turistas
mas dizem que uma personagem da cidade
se autointitula
Marília de Dirceu
e sai com roupas de época
de noite pelas ruas
um casal gaúcho que estuda teologia
deu gritos e saiu correndo pensando tratar-se
de uma assombração

22.7.10

ouro preto

grande tesouro escondido na gente: isso que o outro reflete em você. aqui só tem ladeira e cristo morto, ensanguentado, as crianças e os casais de namorados sorrindo no brasil colonial, o escravismo

patrimônio da humanidade seria terraplanar tudo isso

fico bravo com esse tesouro, causo climão na mesa de bar, o papo de intelectuais, sou bastante intransigente com consciência de classe quando bebo cerveja.

mas vou transformar isso aqui num diário de viagens:

vejo os e-mails com certa frequência, não dou conta de trabalhar o que deveria; em vez disso, faço tatuagens e roço no merchand da galeria de artes. sou um rapaz metropolitano com tesão de interior. fim.

19.7.10

matinal

sonhei com africanos fazendo uma guerra ritual, de metralhadoras e cocar. uma sapatão mostrava emocionada as fotos dizendo

Como contar com palavras? Eu tirei as fotos porque não sei dizer esses rostos; elas são um jeito de eu apresentar essas pessoas pros meus filhos. Assim essas pessoas maravilhosas não vão morrer.

eu via as pessoas sorridentes na estrada da áfrica ou do suriname e entendia o que a sapatão queria dizer. estava em missão que um rico proprietário me havia dado: encontrar um homem numa praia e dizer: você não se arrepende?! chegando lá o homem desconversou e disse que foi tudo um mal-entendido: ele não havia roubado as fotos de ninguém. aquelas que lhe deram a fama na juventude eram suas, mesmo, e não do rico proprietário. fomos à praia em cinco ou sete pessoas e eu já não estava nem aí com o rico proprietário ou com o famoso fotógrafo ladrão, me engracei com alguém que pode ter sido qualquer pessoa, porque o sonho se esfumaça, e meu pau estava duro, é comum pelas manhãs, os homens sabem.

18.7.10

a lua dessa vez

pego uma estrada
paramaribo road
pra uma palavra desconhecida

o ônibus nas curvas é que nem você comigo

um conhecido quase morreu numa dessas
de veículo tombado na serra

o pai do beto quebrou o pescoço
e a mãe do beto saiu chorando na rua
domingo de manhã
foi morte súbita

por isso é bom que a gente não tenha
rodas nem asas

meu ônibus atravessa a noite
como um túnel com elma chips

o que estou fazendo agora é me agarrar às palavras que eu conheço
porque tenho muito medo de encontrar no gps
as que eu quero com você

e na estrada uma volta das férias
com sanduíches esmagados e boias de patinho
furadas, o globocop noticia
o congestionamento que a gente causou

nisso de ter medo das palavras
eu posso ficar escrevendo até dormir
torço pra ter pesadelos que me expurguem
dessa vez a lua no quarto
crescente não me deixa
sonhar coisas ruins

mas a escrita que conta
só acontece distraída

vou deixar esse texto mesmo assim

16.7.10

tentei fazer um samba

tentei fazer um samba que soasse de bolero
porque espero serenata tua
mas ah, meu samba veio diferente,
rebolando de contente e sozinho
largou Ravel e foi pra rua

tentei fazer um samba que soasse como tango
te amo tanto, chamei pra dança
mas ah, meu samba veio igual criança
sem peso e rebolando a pança
e deu olé nessa finesse sua

e cada samba que eu faço aparece de um jeito
algum sem ritmo, algum desengonçado
e eu desafino pra chegar ligeiro
com bloco e tudo
do seu lado
mas você nem quer saber de dançar comigo
põe defeito, fecha o bico, vai pra longe e não vem mais
e eu te espero bem no meio
do salão, te pedindo por favor, meu amor,
olha pra trás.

agora eu tento um samba livre na avenida
levo a garrafa e mostro a vida nesse ritmo maior
mas se você vier sambando pro meu lado
não danço rumba nem chachado
largo o argentino e o delegado
e com você
eu danço só

bolero

eu fico aqui me embalando em celofane
exposto e barulhento
porque não posso deixar de dizer
língua e dedos ocupados em você

mas se como um damasco
seco nem às paredes confesso
teu nome, sobrenome
e a parte do teu corpo em que desejo
comê-lo

a metáfora é o lençol de cetim
que você levou de mim

as palavras descobertas
o que me resta, o teu enredo
pra espantar o frio é que elas cantam
esse segredo de festim

14.7.10

térreo

a barriga faz barulhos
que até deus duvida

um papagaio inconveniente
você o leva a conhecer o imperador
o papagaio diz viva a comuna
e voa pra longe da panela

o rei está morto. vida longa ao rei.

isso se diz depois
os dois pelados do lado um do outro
sem cetro

a barriga começa a dizer
"mas afinal isto é só um corpo"

ainda que todos olhem assustados
isto é só um corpo
cheio de falhas, por que me abandonaste
cheio de folhas

no próximo travesseiro não direi nada
deixarei que a indigestão diga por mim:
amor, dedo, longe, látex,
quero, não quero, volta, que sim.

12.7.10

falésia falls

monstros marinhos no abismo
depois que o mundo faz a curva

meu avô
conta que os japoneses é que estão certos:
quando nasce filho, eles choram
quando o filho morre, batem palma
e mesmo que isso não esteja no evangelho
a gente nunca sabe o que vai ser o que aparece
mas o que já foi, bem

minha vó sentada concorda
mas nenhum deles bateu palma quando
o meu pai morreu

eu abracei meu vô e ele disse "tá tudo atrapaiado"
e a minha avó não saiu do lado do caixão
e todo dia 27 vai ao cemitério
pra pedir

maldito o pai que enterra o próprio filho

eu não imagino

o máximo que chego perto
é conceber prateleiras de supermercado
desabando na avenida
e os produtos coloridos sendo atropelados à noite
luz dos carros

daqui de baixo, trepado no apartamento do prédio
ter medo do futuro, do passado
não pular da janela
escrever um diário

11.7.10

falésia

Boa noite

Cantada de domingo, mendigo na rua: deixa eu chupar esse pintão, eu gosto mole mesmo. É um moço bonito, imagino que deva apanhar bastante sendo assim tão direto. Mas também, por outro lado, quanta alegria inesperada essa ousadia pode dar. Declinei o convite. Depois pensei que devia ter falado "eu tenho micropênis" e ver até onde vai essa vontade.

preto

essa é pra registrar, por enquanto, o futuro da nação

que em 76 ou 77 meu vô foi assaltado e levaram o táxi dele. depois o português chegou e disse: albino foi você que foi assaltado?, e meu vô disse que sim. "Então vamos lá no meu restaurante que o delegado está lá e quer falar com você". Pegamos o preto, o delegado disse. E meu vô foi até a delegacia.

Na delegacia, trouxeram o preto e perguntaram: foi esse aqui que você assaltou? E o menino, que tinha uns dezesseis anos, disse: foi. Meu vô disse que levaram o menino pra sala do lado e desceram o cacete nele, deram choque no pênis, a pessoa confessa até o que não fez.

Todo camburão tem um pouco de navio negreiro etc.

Isso aconteceu numa cidadezinha do interior de São Paulo. Eu não sabia que choque elétrico era tão comum. Hoje acho que não dão mais eletrochoques no pênis, porque não deve mais poder, principalmente em meninos de dezesseis anos. Mesmo pretos.

Uns meses depois chamaram meu vô no tribunal pra recontar a história, mas o pretinho não estava lá.
Vivia na maravilhosa China um bicho tubarão, bruto e cruel, que mordia tudo, e virava tudo em carvão. Pra acalmar a fera, os chinês fazia todo dia uma oferenda com sete gato maracajá que ele mordia antes do pôr do sol. No ímpeto de por fim a tal ciclo de barbaridades chegou Jamacy, uma entidade da floresta da tijuca. Ela corria pelos matos e avoava pelos morro. E Jamacy virou uma onça dourada, de jeito macio, de gosto delicioso e começou a brigar com o tubarão, por 1001 noites. No final, a gloriosa Jamacy e o furioso tubarão já estavam tão machucados que ninguém sabia mais quem era um, quem era outro. E assim, eles viraram uma coisa só: a mulata do balacochê!

os grandes palcos

tem também que o corpo da gente
nenhum cristão admite
é esse magma fervente encolhido
no meio do gozo

alastrado

e eu tenho sentido as placas tectônicas
se ajustando ao seu lado, em choque

geologia do nosso amor: de pangeia
à polinésia

vou pegar uma caneta pra traçar
com caligrafia chinesa (que é espiritual
e munheca mole) as rotas de fuga do que
chamam de sexo: nossos corpos
sem divisão política, overview
das aves que migram
e pousam em bandos, fazem filhotes
e os comem / amor de mãe é
o estômago.

deste chão a gente não passa, você diz,
e cava mais um buraco. nosso mapa
de relevo, leve, mutável.

10.7.10

no man is an

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.



(José Saramago, Provavelmente Alegria)

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Correspondência completa

A caixa do correio está vazia. E, se ela volta, de novo está vazia. Mas não nesta manhã: acorda com certeza, avisa a si mesma que deve descer as escadas do jardim, o mato chega-lhe às canelas, e quando alcança o portão já se passaram vinte minutos de lento caminhar, os dedos tremem na portinhola agarram o envelope leem a catarata, papel, mas não: de novo está vazia. virá um filho, um dos maridos, a morte mesma pode vir: na forma de um carteiro que chega ao seu portão, confere ausência de remetente na bolsa e declina da casa, desinteressado. Ela caminha de volta pelo jardim, pela porta, a bexiga solta esparrama urina até o lavabo, ela troca de calcinha e de saiote e come um pão com margarina que enche o estômago feito terra no vaso.

À tarde, fica quieta, sozinha. Parece uma batata brotada.

Mas ó: o melodrama é todo teu. Porque de repente ela ouve um barulho lá fora, olha rápido pela janela a tempo de ver as calças azuis do carteiro escapando pelo canto da rua. E se eu te disser que mais quinze minutos de passo apressado e ela está lá, além do jardim, abre a caixa de correio e vê admirada: está vazia. Não, é mentira. A gente que se agrade com o vazio o quanto quiser. A dela agora sim, porque cheias estão suas mãos: um envelope pequeno que ela abre com dificuldade de quem não quer rasgar. Precioso é o que a gente recebe dos outros, fique velha e não se esqueça. De ter alegria quando apertar os olhos sentada no sofá e cheirando à urina reconhecer duas palavras estrangeiras, tua língua, teu amor,

"Minha querida,"

primeiro andar

tenho cinco anos e atravesso o jardim
com as mãos segurando um mapa de ar
caçador de tesouros a haver
minha primeira ambição: ser detetive
a criança com traços autistas
o amigo na escola era o eric
da outra turma
gordinho usava óculos e tinha
numa das lentes
um tapa-olho do cebolinha!

eu ficava sem graça de pedir pra brincar de pirata.

eu tinha um tesão rasteiro, distraído
pelos meninos no caminho
trepava a árvore mais baixa
e gostava de vê-los.
nos dias sem aula,
levava os amigos da rua pra trás do sofá
e brincava de sequestro
bondage for kids
tapava a boca com a mão
e o bruno lambia a minha palma
eu soltava de nojo
depois recolocava

se eu tivesse menos medo
se depois eu não tivesse

um dia eu acariciava as canelas do tiago
e ele disse que não ia mais brincar, aquilo muito chato.

a única vez que fiquei de castigo
foi por abraçar por trás a taís
no intervalo da professora:
a inspetora na classe bem na hora
e as meninas deduraram a minha tara -
fui posto no corredor escuro, à espera,
o pré-primário.