mas fica em casa sozinho. hoje é esse amor que não me acompanha: moreno, meio desajeitado e egoísta o bastante pra não lavar a louça. A história dos amores que não deram certo, que é a história de toda a humanidade. Ela fica em casa sozinha e não vai abrir a porta pra quem chega. Ninguém chega. Nem a porta do fogão do gás, pra se matar. Vou fazer uma lista de todas as pessoas que sentirão a minha falta se eu morrer AGORA: papel, lápis, sofá. Número 1: pensa, pensa, "minha mãe". Número 2: "meu gato". Olha para o gato, que não olha para ela, e amassa o papel cheia de pena. É uma desgraça essa vida. E ela sente, não é uma ideia, nem um pensamento, é uma premonição que não vai se concretizar: em matar o gato de fome, pois assim quem sabe ele a olhará com carinho. "Eu aqui sem comida, miau, minha dona deve estar triste, miau, eu sou um gato terrível e egoísta", liga a tevê.
Mas eu não vou falar da tevê, porque nesse momento ela não existe. Vou esperar um pouco, ela desliga a tevê e eu a pego de jeito: a cabeça no travesseiro. Quando a mãe morreu e ela se viu sozinha no apartamento, achou que era muito justo, e até esperado agora, que comprasse uma cama de casal, assim o fez. Nunca a dividiu com ninguém da sua espécie, não porque se guardasse para algum momento especial, mas simplesmente porque ninguém nunca pediu. A quem pedisse, ela daria o travesseiro. Mas tem gente que tem essa sorte no mundo: ninguém te quer. Tanto foi que, quando teve idade de se aposentar e entrar de graça no ônibus, deu a vasta cama solitária para o Exército da Salvação e comprou uma menor, estreita, que pareceria mais triste, sim, unicamente porque a tristeza estaria concentrada.
Agora eu preciso arranjar um porque para esse título, "divórcio".
Posso dizer assim: que ela pôs o gato pra fora. Que ele ficou arranhando a porta do apartamento, incomodou todos os vizinhos durante a noite, mas não houve apelo do síndico que a tirasse de sua resolução. Depois, como ela já tinha fama de solteirona e, pior, de velha, acharam que faziam um favor pra todo mundo se sumissem com o gato dali.
Não foi assim. Este é o momento em que ela se livra da cama de casal. Foi com pressa, pois ela nas decisões não tinha não-sei, era pá-pum. Na primeira noite, teve de dormir no sofá, pois não tinha se dado conta de que viria a noite seguinte e viria o sono e enfim onde é que se dorme? Uma mudança tão brusca e tão necessária independe de firulas, você dorme em qualquer lugar pra não ter que dividir mais uma noite que seja com / o vazio.
De manhã logo cedo foi a uma loja popular e comprou a que lhe pareceu a cama menor e mais silenciosa de todas. Entregaram no mesmo dia e ela pagou à vista. Depois disso ela ainda viveu vinte e três anos, alguns meses e uns dias.
19.8.10
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