12.8.10

Tia Rute

Ela era que nem ter férias, mas eu quase não me lembro. Fazia cosquinha na barriga e, imagino, tinha uma voz meio esganiçada, meio gaguejante, mas também muito terna e envolvente, habilidosa no ofício de agradar.

Chegou sem muito aviso prévio e ficou tempo o bastante para que eu estranhasse sua ausência, até que me avisaram "tia Rute foi embora" e eu amuei, cinco anos de idade, e achei um descaso um desrespeito UM ABANDONO que nem tchau ela tinha falado. Era a irmã da minha avó e eu sempre tive um tesão especial pelas velhinhas, frequentava a casa de todas as vovós da rua, mesmo as que não tinham netos, e às vezes elas eram minhas amigas mais do que as crianças. Passávamos as tardes conversando e colorindo e comendo bolachas.

Aí eu ficava esperando que a tia Rute voltasse. Lembro que durante muito tempo toda campainha era ela, cada pessoa que chegasse, mas nunca mais a vi.

Um dia me contaram, acho que minha mãe, que ela saiu de casa porque quis ir um dia de minissaia à igreja e meu avô não deixou. Eles brigaram, ela pegou as coisas dela e foi embora. Faz sentido porque eu nunca estava com os meus avós no domingo de manhã, então não vi nada disso.

Depois, acho que eu tinha uns onze anos quando a gente estava passando de carro por Itu e minha mãe soltou, através de uma praça escura, "acho que foi aqui em Itu que a tia Rute morreu". Falou isso como se fosse qualquer coisa, mas eu fiquei cho-ca-do e quis saber mais. Tia Rute tinha morrido?! "É, de aids". Porque a tia Rute era "stituta", na linguagem da minha mãe, assim como quase todas as irmãs da minha avó foram.

Faz coisa de um ano, talvez, eu e minha mãe olhávamos um bando de fotografias velhas e foi novamente ela que anunciou "aqui tia Rute". Uma moça de nem vinte anos, de vestido claro e rodado à moda do começo dos anos 1960. Ao lado dela, um rapagão bonito e bem apessoado, que minha mãe inocentemente disse não conhecer. Ele estava com uma camiseta colada ao corpo forte, grandão, um topete, a jaqueta segurada pela mão no ombro e, ao lado, um carro da época. Tudo muito típico. Assim como o sorriso da tia Rute, boca fechada sem timidez, gostosa no vestidinho bonito, ao lado do homem.

Mas a única lembrança que eu tenho dela, um pouquinho mais nítida, é de um dia, talvez domingo, estarmos no quintal conversando. Acho que as roupas eram de domingo. Ela se arrumava ao espelho e tirou de dentro dele um frasco de Biotônico Fontoura, bebeu em colher de sopa o líquido preto e me ofereceu. "Quer experimentar?". Era um frasco enorme, cheio daquela água escura e esquisita. Eu tinha muita vontade de provar, mas também tinha nojo. E não lembro se provei.

2 comentários:

  1. desde manhã aqui aberto, agora li. é bonito, mesmo.

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  2. já ouvi dizer que a prostituta "é puta por todos" (acho que foi o Nelson). Mas ela redime também, a todos.

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