6.8.10

marajoara

As paredes não escorreram, ficou tudo seco. Eu queria dizer: um quarto cheio de água. Mas nem goteira. Os jornais anunciam os perigos da falta de chuva: caso você sa CASO VOCÊ SAIA de casa / guarde seu pescoço, não faça movimentos brutos, hidrate-se muito. Dunas de sal. Estou tendo problemas com a prosa, confissão de diário n.1. Depois das cartas, tudo o que eu escrevo parece cheio de sal e açúcar, atrito de engolir.

O corpo vai rolando ladeira abaixo, ensaboado sem lugar pra segurar, enquanto a cabeça quica na outra direção. Coisa de gente cabeçuda. O narval, que é peixe-espada?, tem um dente muito sensível e longitudinal que, segundo o dentista do National Geographic, serve para que o bicho verifique as correntes marítimas e os níveis de salinidade e a existência de amor nas profundezas. De vez em quando precisa vir à tona: é quando são mortos pelo marfim.

E os marujos da antiguidade pensavam: eis, ali, unicórnios.

Queria que os problemas com a prosa fossem como carrapatos que te coçam, mas não o bastante pra que você búfalo marajoara deixe de ser: um grande corpo. Vou lá e me descubro um carrapato. Vou lá de novo e me descubro um ser humano que olha os búfalos e os carrapatos e não se entende com seu corpo. A prosa é o menor dos problemas.

Esses movimentos que a gente faz, de saída e de chegada, cansei de compará-los à respiração do mundo sístole diástole do coração de quem eu amo. Chega de eterno retorno, por enquanto. Volto pra um texto antigo:

OS CIGANOS QUE SEQUESTRAVAM

ou eram índios. o menino. no final, minha vó sempre dizia: o menino então voltava para os pais, depois que bons homens armados o resgatavam das trevas sem cristo. quando eu for minha avó, eu vou me contar da seguinte forma:

que o menino aprendeu a dançar como os ciganos e a cantar como os índios, cresceu mais um tiquinho, ninguém o encontrou. e um dia apanhou por causa de qualquer bobagem que aqueles tontos queriam. aqui não fico mais: sequestrou-se. no caminho, encontrou um rio e achou melhor segui-lo, pra não se perder. mas depois pensou que seria fácil também que outros seguissem o mesmo rio e o surpreendessem quando ele estivesse se banhando ou bebendo água ou dormindo flutuando. foi pra selva. e eu só posso contar até aqui, porque também eu perdi o menino de vista. fim.


*

eu sempre paro quando encontro cama no corpo de alguém. Então chegam as formigas, chega a fúria dos cupins, chega a peste e tudo isso me força a sair, povos nômades da terra, tudo o que eu tenho são meus pés e a cachola. Embora, embora.

Refugiados, clandestinos, sequestrados, perdidos: essa a história da nossa gente, canaã que eu não sei. Preciso escrever sobre isso.

Confissão de diário n.2, tardia: a escrita é a morada que me falta.

Um comentário: