31.8.10

diário

a viagem vai chegando
perto faço listas para
não esquecer as coisas
ir ao banco lavar
roupa por exemplo, a viagem
é uma trapaça no tempo
ou é ele que blefa
finge um colo pra
depois me esquecer e vir
a trote gritando a-ha
te peguei

30.8.10

o crime da mala

a mulher picotada escapa
um bolso furado
polícias sargentos a igreja
e todos os jornais vêm acudir
eu não posso te levar comigo
nem te despachar pra bahia
de todos os santos
te deixo na estante, com sobrevida
no que deveria ser a minha alegria
virou essa coisa empoeirada
tiro a poeira
você fica lá
espanado

depois de amanhã eu vou viajar
o avião vai cair e você nunca mais vai me ver
vai chorar lágrimas de sangue
tanto amor a gente tinha pra viver

é nada.
eu vou chegar lá longe.
você vai ficar agarrado no meu ombro
feito encosto
até eu arranjar outro.
esse outro não vai ter poeira: delícias
mucosas presentes de grego, deus
grego

lembrei agora dos poemas do kaváfis
com os meninos de esguelha
e os velhos perfeitos que cambaleiam

eu não posso te levar comigo
nem te despachar
nem com pinga

acho que preciso aprender a conviver
com você sem você
mas isso é viagem minha.
o tempo cura todas as feridas
só não faz milagres.
os pedacinhos de mulher
que te digam.

amor

sempre que eu arrumo papéis eu lembro de você.
isto é uma carta.
mas quando eu escrevo cartas eu não lembro de você.
etiquetas organizadas eu lembro de você.
e também coisas de qualquer um, tipo unhas quadradas.
pontas dos dedos eu lembro de você.
de qualquer um as pontas dos dedos.
lembrar pode ser uma questão de toque.
lembrar é definitivamente uma questão.
sempre que eu penso "presença" eu lembro de você.
a presença nunca é uma questão.
a não ser quando pensada.
presença pensada é uma ausência.
eu queria ter sido didático assim com a gente.
sempre que eu penso em não ser didático eu lembro de você.
e quando eu ponho pontos finais.
sempre que eu ponho pontos finais eu lembro de você.

unha

feito paredes / de
beliscar

parecia

nova imagem no espelho parecia
uma cara coberta de pano
camisa peito aberto você
ausente de um rosto e eu
incógnito atrás do que é
seu

com espátulas brocas cavar
o espelho tirar as
camadas que ficaram até
que chegue o que não vejo

a parede o quarto do vizinho
o fim do prédio o ar
livre se eu caísse continua
cavando essa espessura
pra encontrar

o que não está e mesmo
assim perdura

cadernos da ida

entro no site local pra saber a temperatura
que tipo de roupa levar a previsão
astrológica não iria me informar com tanta
precisão os perigos do frio dos preços da inflação

quando você sai de casa, quando vê as coisas
pela última vez, é como se já tivesse chegado
ao local

o destino começa no primeiro passo

esta vida é pra aprender a ficar e partir

o corpo da gente é um meio de
transporte

a partir daqui até a morte vou concebendo
axiomas do movimento
um vento sopra eles pra longe, desfaz em folhas
tanta verdade, nossa senhora do movimento
é uma árvore sem medo de perder
vou ser que nem ela. queria muito rezar e ter
uma companhia pra essas passagens. a solidão
também inexorável, primária me leva
pela mão que nem professora do jardim
da infância, tem modos didáticos e não
se envolve demais, apesar do carinho. tudo
isto é a história do apego. inevitavelmente
o futuro não chega, toca a gente
agarrá-lo sem presas.

sinto que desde sempre escrevemos
as rotas de migração, mas agora me
pergunto se é possível escapar do inverno
perseguindo o eterno verão?

busco um berço generoso
na rotação da Terra. bem que as respostas
poderiam chegar na manhã
de uma volta.

ENORME, MÓVEL,
ESCURO E DERRADEIRO

MEU AMOR É O MAMUTE
NA ERA DO GELO

29.8.10

istmo

figura um bosque aceso
a pessoa vai de costas
narrativas das imagens vagas

se eu sou precário, o texto /

um bosque aceso

*

História do gato: que nunca soube que era um gato. Nunca desconfiou de que fosse um gato. E no entanto miava no cio, era leve, e só voltava quando queria.

*

A força mantém a matéria. Primeira lei das órbitas.

*

decola

um céu todo teu. fim.

*

Devido a grande pane no acontecimento das coisas, todos os aviões do mundo foram impedidos de pousar, os que estavam em voo, pilotos inalcançáveis convictos e outros, no chão, ninguém mais decolava também. Os passageiros aéreos ficaram desesperados, ao que sucederam-se vários motins, barrinhas de cereais roubadas no dente, e quedas mortes porque é melhor morrer logo do que ficar aqui voando até morrer depois, seja de fome inanição ou solidão, qualquer passageiro diria isso em entrevista, uns de fato disseram pelas redes de comunicação invisível que existem no planeta, suas fotos sorridentes em jornais do tempo em que estavam na terra. Uma boa parte dos aviões, no entanto, seguiu voo. E foram abatidos por terroristas presidentes raios vendavais ou simplesmente aves nas turbinas, o desengano maior que é um encontro entre dois objetos livres em voo que se exterminam mutuamente.

Nós, aqui embaixo, assistíamos a tudo primeiro espantados, depois perplexos, depois vagamente perplexos, depois sem sombra de espanto. Os aviões em terra enferrujaram e cresceram as companhias de transportes fluviais. Menos pessoas viajavam, verdade, pois os caminhos ficaram longos e nem sempre se tem paciência para o mês no convés. Contudo, talvez pelo costume, o trânsito entre os continentes seguia volumoso, multidões se deslocando entre turismo trabalho e aquilo que eu não quero mais chamar de amor. Os navios partiam lotados rumo ao horizonte e muita gente esperava nos portos para embarcar. Até o dia em que os navios se esqueceram das margens, dos ritos, e nunca mais atracaram.

27.8.10

bonita

Nem a mãe consegue achar. Olha pro marido constrangida, vê que ele também não acha, mas quem irá admitir? Nem tem o que admitir. Estou levemente copiando a história do romance Cotovia, de Dezső Kosztolányi, e nem tinha reparado, desculpe. No livro, a Cotovia é uma solteirona que mora com os pais e que vai passear no campo. Aí eles ficam sozinhos em casa pela primeira vez desde que a filha nasceu e têm de admitir gradualmente: ela é feia. O romance é muito mais sutil. Vou mudar a estratégia e tirar o foco dos pais.

Nem a mãe consegue achar. Ela passa o batom, vinte anos a pele tão seca, os lábios puxados, ela parece um peixe. Ai de nós, um peixe feio. Se namorasse um rapaz camponês em alguma ancestralidade inocente, ele olharia pra ela com ternura e espanto, de pau duro, e diria: você tem olhos de bagre. Ela ficaria ofendida e elogiada e dengosa com carícias: e o seu mastruço é de lambari. Vamos convir que a beleza e as adequações do corpo são bastante relativas e constrangem qualquer um, quem é que está feliz consigo? Muito menos com os outros. Ela, coitada, calhou de exceder os limites da civilidade. Tem gente que grita na rua "filhote de cruz-credo!". Era legal ter uns campos de concentração pra gente que nem ela. Ou, numa ancestralidade tribal, teria sido enterrada viva assim que nascesse. A maldição da mulher-peixe.

Aqui eu perdi o estilo outra vez. Ninguém gosta de uma menina feia, ninguém vai gostar de um texto feio. Harmonia e reconhecimento. Somos todos uns nazistas.

Pois bem. A mãe olha resignada a menina que sai de batom, perfume, roupas boas e mesmo assim é um estrupício. Chegaram a ir no médico, mas não, senhora, a medicina ainda não identificou isso como uma síndromes, não senhora cromossomos DNA sim podemos fazer testes mas, entenda, não há um padrão, veja aqui: sua filha é perfeitamente normal para a medicina. Um cirurgião plástico, talvez, embora ele não vá resolver o cecê, o cabelo ruim, a corcundinha, talvez modelar um pouco os olhos, fazê-los assim de gazela, implantar cílios, talvez melhore.

A menina sai sem cura e encontra o homem que a espera de carro. As fotos na internet não davam a dimensão de que era tanto o estrago, ele se assusta um pouco, mas se controla. O homem é meu pai, por isso eu sei de tudo isso: ele põe a piça pra fora e galanteia: e aí, vamos assar essa perereca? Ela fica masturbando e eles vão falando sacanagem até chegarem num motel. No caminho ele pede: mama o gansão do papai aqui, porque assim a cara dela não fica visível pros outros motoristas. De boca cheia, encolhida num banco macio, a mucosa é o prazer universal. Vou parar aqui e brincar com a minha. Fim.

ar seco

é o tempo do fogo alastrado
eu gosto muito de um conto do Caio Fernando Abreu chamado "Holocausto": em volta de uma fogueira, o fim dos tempos, peste e solidão alimentando o fogo. É muito triste. Na escola a gente tinha que apresentar um conto e eu apresentei esse, causou uma certa comoção. A Andrea fala que a gente não sabe ser agradável. E também fala: "fazer o mal sem olhar a qual". Rimos muito. Eu sou bastante agradável, sim. Mas de repente o bicho escapa.

O BICHO ESCAPA

e ele é pequeno, a cidade não o vê. Uma mulher cheia de sacolas quase tropeça nele e dá um grito: AI! e depois CREDO! o bicho feinho olha pra ela. Meu pai dizia: ele assustou mais com você do que você com ele. O bichinho era o meu pai. A mulher das sacolas não sabia e deu outro grito: QUE NOJO! Um camelô foi acudir e PLOFT pisou no bichinho com a sandália havaiana. "Assustou, dona?". Ela agradece com nojo do camelô. Meu pai morreu. Fim.

Projeto de ONG: "Respirar por um mundo melhor". A nossa ação visa conscientizar as pessoas de que se todos conseguirmos prender a respiração por um minuto, ao mesmo tempo, seis bilhões de pessoas no globo, isso não vai servir de nada, mas vai ser bastante divertido de contar e talvez resulte imprevisíveis avanços da ciência.

O mundo é uma bosta e não melhora. Respiramos.


PARAMARIBO ROAD

carrinho de fricção
john travolta acende isqueiro explode a cidade
meu pai vai junto
é o tempo de maior secura em são paulo
10% de umidade do deserto do saara
massa amorfa marrom na janela
vou cruzar o rio da prata
lavar a borra feito ganges
o futuro ninguém sabe:
incêndios fumaças riachos
vou parar de usar metáforas meteorológicas
da geologia
e falar de gente
terremotos dos corpos
taí não consigo
faço o contrário:
pele dos continentes
ontem aprendi nova palavra
istmo
sendo uma faixa de terra a ligar duas maiores
e.g. istmo do Panamá, istmo de Suez
ou há istmos naturais, que não tenham resultado de
acordos comerciais? eu sou península.
vou escrever a epopeia de toda essa secura.
e morrer num desastre de avião. igual
Carlos Gardel.

25.8.10

anotações pra lua em peixes. são paulo

pendurado numa rede de balançar sobre a cidade

nós somos peixes que a lua pega numa noite

cardume à deriva grande barco do planeta

22.8.10

tour para o futuro. planeta diário

há milênios que se anda no mundo
uns atrás dos outros
trenzinho da alegria
e fileira de dominó da crueldade

eu criança ficava pensando intrigado muito constantemente como é que pode tanto pé fazendo atrito e ainda haver chão! a única coisa que se pode concluir é que: há chão bastante.

e mais, talvez: pois você escava e encontra outros pisos e mesmo tetos de cabeças cavalos enterrados viraram fósseis dinossauros nossos antepassados inúmero primatas. as conclusões me admiram cada vez mais: que não só o chão não se gasta, como só faz crescer!

chega um momento em que a terra atingiu a atmosfera
lá em cima os aviões passeiam de rodinhas, trens de pouso
sempre expostos, e jacarés caminham no que antes
eram os cumes dos andes, um grande pântano tornou-se

o destino do universo: chãos crescendo, a erosão era
ilusória, parecem bolos de fermento os planetas que se
juntam: vênus, terra, marte, mercúrio, júpiter, saturno, urano,
netuno, plutão

todos juntados em pedra
formam uma lua crescente
que gira tostada em torno do sol
bambolê

pensa nas coisas mais queridas
que se tornarão fóssil, fenda, ferida,
rocha perpétua no centro da vida

mochileiro das galáxias a gente
deveria ser mais generoso com esse
nada de tempo em que vivemos

objetivo de vida: ser generoso
slogan: porque a vida é agora

não quero viver um slogan

título da vida: não sei ser rótulo

agora imagino braços cruzando oceanos

a imaginação é o que a gente tem
os braços também

mendoza

Sonhei algo a ver com Mendoza, onde só estive de passagem uma vez num posto de fim de estrada, acho que no sonho tinha um homem que era de lá, quero pensar no homem com calor e partes umedecidas, ontem o Fabinho chamou a atenção pra garrafa e disse mendozino, por isso eu devo ter sonhado, acaba ficando do sonho só a palavra, realmente não lembro de mais nada

moby dick

"os verdadeiros lugares não estão no mapa"

21.8.10

nosso amor ridículo se enquadra na moldura dos séculos

nem tanto ao céu a queda de
um pássaro no asfalto comido pelo
tempo a terra cresce em plantas tudo
tomam esses matos ossos cemitérios gado
e bosta ressequida formando o chão
que a gente pisa abaixo dele galerias
de água suja e ratos e lençóis
freáticos meu amor é nesses que a gente
deveria se deitar para nascer sem
chuva ácida cisticercos água
parada correndo de volta pra o meu
aconchego se infiltra e abaixo pedras e
mais pedras e mais pedra até que
tanta pedra ela se funde e queima e vira
lava magma no centro a Terra é um grande
coração maior que tudo não vamos
nos ater a esses dramas miúdos nós
que somos queda e lava e oceano meu
amor sejamos tanto e tantas vezes
merecedores do planeta,
tectônico

extravirgem

a maior plantação de olivas da península
ibérica onde fazem até amor gosto de azeite
e mesmo as brigas brigadeiros sabonetes nós
vivemos um grande deus de frigideira que
óleo frita a nossa sorte e serve à
mesa você me quer com temperos ou ao
dente ou carne seca beba babe hoje
um jogo americano nos parques de nudistas
da alemanha enchem cestas pela manhã com
azeitonas lábios secos lubrifica o
avião comercial desliza os céus e unta
outra via um continente a
américa

os fósseis nossos

daqui a um trilhão de anos essa
tendinite achada com
melancolia numa escavação das raças
futuras. você também, de coração
acompanhado pelas relíquias sagradas de
plástico, chega junto dinossauro
da minha afeição grande réptil
do que não deu certo, astros
da televisão num caminho mamífero
de gordura se torna pedra, carícia
essa palavra osso entrada em
anos entardecer da nossa era,
me agarra o solo nos espera.
escolhe o novo que te completa
nem que seja velha a escolha
algures escrever a coisa azul
sobre o desejo da palavra algures
solta no nunca aparecer
é assim como a resposta do desejo

a resposta do desejo

meu amigo vira a esquina dizendo a vida é muito dura, agora ele tem tudo menos tempo de vivê-la, meu amigo diz "a vida desaparece nesse enquanto"

as minhas escolhas me trouxeram a este acaso
eu queria poder dizer ao meu amigo que afirmar é o motivo
mas o sim não me convence além do meu passo
que tem sido em falso, cadafalso
eu vi as melhores mentes da minha geração blablablá
eu ainda não tive uma geração
nós já estamos velhos pra sermos jovens
desconfio que é nisso que encontraremos o
de fato, a essência, a nossa síntese,
numa maturidade tardia, nós mais frescos que os mais frescos que virão
a gente fruta orvalho e vulcão
mas essa desconfiança não enche barriga,
enche meus dias,
eu e o meu amigo nos despedimos e eu vou embora
por que não?

19.8.10

divórcio

mas fica em casa sozinho. hoje é esse amor que não me acompanha: moreno, meio desajeitado e egoísta o bastante pra não lavar a louça. A história dos amores que não deram certo, que é a história de toda a humanidade. Ela fica em casa sozinha e não vai abrir a porta pra quem chega. Ninguém chega. Nem a porta do fogão do gás, pra se matar. Vou fazer uma lista de todas as pessoas que sentirão a minha falta se eu morrer AGORA: papel, lápis, sofá. Número 1: pensa, pensa, "minha mãe". Número 2: "meu gato". Olha para o gato, que não olha para ela, e amassa o papel cheia de pena. É uma desgraça essa vida. E ela sente, não é uma ideia, nem um pensamento, é uma premonição que não vai se concretizar: em matar o gato de fome, pois assim quem sabe ele a olhará com carinho. "Eu aqui sem comida, miau, minha dona deve estar triste, miau, eu sou um gato terrível e egoísta", liga a tevê.

Mas eu não vou falar da tevê, porque nesse momento ela não existe. Vou esperar um pouco, ela desliga a tevê e eu a pego de jeito: a cabeça no travesseiro. Quando a mãe morreu e ela se viu sozinha no apartamento, achou que era muito justo, e até esperado agora, que comprasse uma cama de casal, assim o fez. Nunca a dividiu com ninguém da sua espécie, não porque se guardasse para algum momento especial, mas simplesmente porque ninguém nunca pediu. A quem pedisse, ela daria o travesseiro. Mas tem gente que tem essa sorte no mundo: ninguém te quer. Tanto foi que, quando teve idade de se aposentar e entrar de graça no ônibus, deu a vasta cama solitária para o Exército da Salvação e comprou uma menor, estreita, que pareceria mais triste, sim, unicamente porque a tristeza estaria concentrada.

Agora eu preciso arranjar um porque para esse título, "divórcio".

Posso dizer assim: que ela pôs o gato pra fora. Que ele ficou arranhando a porta do apartamento, incomodou todos os vizinhos durante a noite, mas não houve apelo do síndico que a tirasse de sua resolução. Depois, como ela já tinha fama de solteirona e, pior, de velha, acharam que faziam um favor pra todo mundo se sumissem com o gato dali.

Não foi assim. Este é o momento em que ela se livra da cama de casal. Foi com pressa, pois ela nas decisões não tinha não-sei, era pá-pum. Na primeira noite, teve de dormir no sofá, pois não tinha se dado conta de que viria a noite seguinte e viria o sono e enfim onde é que se dorme? Uma mudança tão brusca e tão necessária independe de firulas, você dorme em qualquer lugar pra não ter que dividir mais uma noite que seja com / o vazio.

De manhã logo cedo foi a uma loja popular e comprou a que lhe pareceu a cama menor e mais silenciosa de todas. Entregaram no mesmo dia e ela pagou à vista. Depois disso ela ainda viveu vinte e três anos, alguns meses e uns dias.

a morte do autor

uma coisa que eu não admito é escrever sobre escrever.

mas abro exceções.

declaro pra quem quiser ouvir (a plateia é basicamente composta por mim mesmo, que quero muito ouvir isso, ser é um devir e tal) que não escrevo mais nunca mais nunca NUNCA mais a partir de agora.

uma obra natimorta.

entreguei meu presente pro mundo.

o céu seria mais azul.

e imagino uma situação: ele um filólogo fugido da guerra com a pobre mãezinha, ele grande erudito da língua morta que só a mãezinha fala, ele homem de letras de uma universidade bombardeada exilado no brasil VIVA O BRASIL acolhe os órfãos do mundo grande mãe / diferente da mãe dele, que é pequena e quase morre. antes que morra, ele começa a anotar as palavras: "mãe, como se diz cumbuca? mãe, o que é uma novena? mãe, tal sentimento qual seu nome?". a mãe responde, mas quem dirá que a memória dela tem valia? ele anota, tabula tudo em documentos no computador, haverá grande interesse por uma língua morta de uma civilização exilada da qual só sobraram uma velha caduca e um literato solteirão. é um tanto feio, também.

me angustia quando uma história não tem desfecho.

viagem

tão logo se abrem, os mapas não servem

18.8.10

resoluto. anotações para. gana de agora.

quantos dias para o dia chegar / ou um úmido de penas / voto na escritora que não quer ser escritora / a escrita é uma grande bobagem / quero ser vaca no pasto

objetivo de vida: a derrocada do sistema capitalista.

anuncio no blogue, pois é.

1) fazer a nossa geração.
2) terrorismo viral e gatuno.
3) beleza põe a mesa.
4) como nunca antes na história deste país / da grécia chegam notícias: os revoltosos exigem A ABOLIÇÃO DO ESTADO / nem as organizações criminais poderão nos salvar / o amor também não poderá / o amor é uma bobagem, é uma invenção burguesa e é uma delícia / a favor de todas as delícias

é hora de terraplanar o inconsciente.

anotações para um manifesto.

objetivo de vida: escrever manifestos.

estudante de húngaro

Paulo Rónai comenta as dificuldades de seu idioma materno, o húngaro, considerado uma das línguas mais complexas da Europa. “Levei muitos anos até perceber as complicações de seu mecanismo. À medida que aprendi outras línguas é que me espantava com a minha”, confessa. No seu primeiro contato, o estrangeiro se extasia com a simplicidade aparente do idioma: a ortografia é praticamente fonética (ao mesmo som corresponde sempre a mesma maneira de grafá-lo). Além disso, as palavras não têm gênero (masculino, feminino ou neutro), o que deixa todos os adjetivos com uma única forma, já que inexiste a necessidade de concordância. O quadro dos tempos verbais é quase miserável: só existe um passado e um presente, mais alguns tempos compostos. Cessa aí, contudo, essa singeleza enganadora. Há um feroz sistema de declinações, com quase o dobro das declinações do Latim. Além disso, diz ele, “A inexistência dos tempos verbais é também compensada, e rijamente, pela abundância de outra espécie de recursos. 0 húngaro, como o russo, pouco se preocupa com a correlação dos tempos de um período, mas é cioso de marcar nitidamente o aspecto de cada ação considerada separadamente. Ele não sente a diferença entre escrevi, escrevia, tenho escrito, escrevera, tinha escrito, ações que se confundem a seus olhos num vago passado “írtam“; mas quer saber as circunstâncias em que a ação foi realizada: se a pessoa escreveu sob ditado ou copiando, se em folha solta ou num livro, com ou sem intuito de guardar a anotação, se encheu a folha ou não, se o que escreveu era substancial ou acessório, se o tirou de uma ou de várias fontes…e, conforme o aspecto dominante, usará o passado “írtam” precedido de prefixo ou provérbio diferente (“leírtam, átírtam, beírtam, felírtam, teleírtam, odaírtam, kiírtam, összeírtam” …) ou, como diríamos nós, empregará outro verbo composto.

A riqueza de matizes destes e de outros prevérbios é espantosa: um deles (“ki-“), junto ao mesmo “írtam“, indicará ainda que o escritor deu tudo o que podia dar e está esgotado; outro (“el-“) que o assunto que tratou ia ser tratado por outro autor; um terceiro (“agyon-“),que morreu de tanto escrever.

“Os adolescentes húngaros não sabem o que são aspectos do verbo, porém os manejam com instintiva segurança; ao passo que o estrangeiro perde completamente o seu latim sem ter adquirido o húngaro dos outros. Tanto mais que os mesmos prevérbios associados a outros verbos indicam aspectos inteiramente diversos: assim, se “fel-“, seguido de escrever, indica que se escreve para guardar a anotação; de ler, que se lê em voz alta; de viver, que se come tudo o que se tem; de olhar, que se olha de baixo para cima; de chorar, que se explode num choro convulso; de citar, que se evoca um morto; de cobrir, que se descobre; de dar, que se remete uma coisa pelo correio, ou que se denuncia alguém, ou que se abandona uma partida; de tomar, que se apanha uma coisa no chão, ou se admite um empregado, ou se leva a sério uma observação; e, por cúmulo, às vezes não exprime nada disso, apenas o acabamento da ação.

“Se essa riqueza na expressão dos aspectos constitui fenômeno surpreendente para os latinos, não perturbará sobremaneira um alemão ou um russo, que conhecem na própria experiência lingüística o uso dos prevérbios, fonemazinhos perversos que, sem chegar a ser palavras, freqüentemente se soltam do verbo, às vezes até para substituí-lo de vez; mas germânicos e eslavos perdem todo o à-vontade ao tomarem conhecimento da existência de uma conjugação “transitiva” e outra “intransitiva” (denominação imperfeita, pois a segunda se usa também transitivamente, apenas com objeto indeterminado), e ficam perplexos ao descobrir que as formas verbais podem refletir a pessoa não só do sujeito, mas também do objeto direto – o que faz que nas frases “Eu amo uma mulher”, “Eu amo as mulheres louras” e “Eu te amo” se usem três formas diferentes do verbo “szeretni“(“amar”): “szeretek, szeretem, szeretlek“.


(daqui)

15.8.10

argumentação

solar a maré que nós machos guardamos, mas
se envolves os membros no meu tronco que
associações posso fazer - imagéticas, simbólicas -
o uivo de um lobo e veludo na tua

muito embora não sangremos estou certo de que
é um escuro quando vejo a lua
cheia, esse abandono da órbita que
retorna, e muda a fase na

(tua língua engole à cata
cisticercos casamentos cartões
de crédito roubados, mas

devolve fosse
seda, na saliva,
pro meu dentro)
(obsessonho)

14.8.10

um nome que te faça, e

a premissa que dás aos olhos pra mim fica
nas palavras lembro que sonhei uma vez com
castanhos e soube o dia em que chegar a eles
então será o amor, profético um sonho de
cores que nunca se realizou mas qual sorte
de sonho é de ser realizada? desde agora faço
profecia com os dedos que entram
no corpo que eu não conheço assim de novo
o sonho, feito de carne e doce, acolhido
neste espaço.
Cada um fora feliz alguma vez e ficara com a marca do desejo.

(CL, Felicidade clandestina)

sopro

vermelho involuntário oco pulsa
pensa em todos os chavões coração
dentro do peito aventa agora
a coragem outra, de não dizê-lo

13.8.10

A interpretação dos sonhos

E essa noite tive um sonho pornô bem chulo com uma assistente de proctologista, que era uma morena linda chamada Sorror.

boca de lobo

a boca dele tem cheiro de pé
se as nossas unhas tivessem paladar
acontece que o corpo inteiro
é um lugar de passagem, a gente
passa a mão nas partes, que é o todo
mais próximo do meio

no cinema, os dois chineses
não têm cheiro você sabe uma bobagem
chineses fedem todos sabem
queria ver você gostar do clark
gable que tinha um bafo tão
ruim nem o vento levava
pobre vivian leigh

e o proust com um cheiro
fez duas mil páginas de historinha

eu vou rimar dizendo "termino
nesta linha", mas daqui a coisa
se estende, sem estilo, por
todos os bueiros da cidade,
nenhum ralo é poupado,
o cheiro sobe os asilos e igrejas
a casa da sua mãe

o cheiro se espalha, mas
segue uma linha narrativa, ele
também, assim como o som, se você
pensa é tudo transmissão molecular,
então como pedir uma suspensão
da nossa linearidade se linha
molhasse ah se linha mo-

(aí eu penso uma hipótese
que foge do texto: o afeto
casado com o tempo)

12.8.10

veneno cor-de-rosa

Tia Rute

Ela era que nem ter férias, mas eu quase não me lembro. Fazia cosquinha na barriga e, imagino, tinha uma voz meio esganiçada, meio gaguejante, mas também muito terna e envolvente, habilidosa no ofício de agradar.

Chegou sem muito aviso prévio e ficou tempo o bastante para que eu estranhasse sua ausência, até que me avisaram "tia Rute foi embora" e eu amuei, cinco anos de idade, e achei um descaso um desrespeito UM ABANDONO que nem tchau ela tinha falado. Era a irmã da minha avó e eu sempre tive um tesão especial pelas velhinhas, frequentava a casa de todas as vovós da rua, mesmo as que não tinham netos, e às vezes elas eram minhas amigas mais do que as crianças. Passávamos as tardes conversando e colorindo e comendo bolachas.

Aí eu ficava esperando que a tia Rute voltasse. Lembro que durante muito tempo toda campainha era ela, cada pessoa que chegasse, mas nunca mais a vi.

Um dia me contaram, acho que minha mãe, que ela saiu de casa porque quis ir um dia de minissaia à igreja e meu avô não deixou. Eles brigaram, ela pegou as coisas dela e foi embora. Faz sentido porque eu nunca estava com os meus avós no domingo de manhã, então não vi nada disso.

Depois, acho que eu tinha uns onze anos quando a gente estava passando de carro por Itu e minha mãe soltou, através de uma praça escura, "acho que foi aqui em Itu que a tia Rute morreu". Falou isso como se fosse qualquer coisa, mas eu fiquei cho-ca-do e quis saber mais. Tia Rute tinha morrido?! "É, de aids". Porque a tia Rute era "stituta", na linguagem da minha mãe, assim como quase todas as irmãs da minha avó foram.

Faz coisa de um ano, talvez, eu e minha mãe olhávamos um bando de fotografias velhas e foi novamente ela que anunciou "aqui tia Rute". Uma moça de nem vinte anos, de vestido claro e rodado à moda do começo dos anos 1960. Ao lado dela, um rapagão bonito e bem apessoado, que minha mãe inocentemente disse não conhecer. Ele estava com uma camiseta colada ao corpo forte, grandão, um topete, a jaqueta segurada pela mão no ombro e, ao lado, um carro da época. Tudo muito típico. Assim como o sorriso da tia Rute, boca fechada sem timidez, gostosa no vestidinho bonito, ao lado do homem.

Mas a única lembrança que eu tenho dela, um pouquinho mais nítida, é de um dia, talvez domingo, estarmos no quintal conversando. Acho que as roupas eram de domingo. Ela se arrumava ao espelho e tirou de dentro dele um frasco de Biotônico Fontoura, bebeu em colher de sopa o líquido preto e me ofereceu. "Quer experimentar?". Era um frasco enorme, cheio daquela água escura e esquisita. Eu tinha muita vontade de provar, mas também tinha nojo. E não lembro se provei.

vênus em escorpião

tem uns morcegos rondando o quarto de dormir. Eu achava que eram ratos e ficava procurando nos batentes, nos pés das paredes aquela corrida cinza e assustada que me assusta. Mas aí me explicaram: são morcegos. E eu passei a procurar nas janelas o assassino sanguinário bandidinhos de luz vermelha morcegos. Mas aí me explicaram: eles são nossos amigos, comem insetos.

Como eu não gosto de insetos, me fecho em casa e agradeço aos morcegos

que ficam guinchando lá fora, em banquete.

Quando menos esperar, mando à merda esse papo de astrologia. Mas por enquanto ele me serve pra colocar em gavetas a desordem, depois desordenar e gavetas outra vez.

As gavetas vão se gastar e vira road movie outra vez.

Pensamento leve da madrugada:
el caminante é quem faz a caminhada.

e à luz da tarde, de salvo-conduto,
tem muito chá brotando nesses viadutos

8.8.10

proposta, manada, alegria

a tristeza é um boi de piranha
que a gente manda na frente
porque atrás vem gente
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

Italo Calvino, As cidades invisíveis

imagem

mar de manhã
sendo mar uma metáfora
pro meu amor e manhã
essa tarde clara
que engravida
a janela vazia

7.8.10

sonho

é um desengano. Mas também um grande privilégio: que a cada minuto morre de fome uma pessoa no mundo e você, aí, essa bela barriga. Vou contar a história da barriga.

Que os mandarins eram grandes glutões, os europeus quando os viram ficaram extasiados: homens cultos, tocando a viola e enormes mais que porcos. Outra história da barriga: os castrati, que eram bem comuns não só na China, mas em muitos países da Europa: a família cedia o menino ourinho do coro ao rei; então, antes da puberdade, cortavam-lhe os ovos ou algo parecido e o menino não desenvolvia pelos e músculos, do contrário ficava meio viadão aos olhos de todos, de mamas grandes e voz fina. Dizem que era um ótimo subterfúgio para as damas da corte, que podiam tê-los como amantes sem que ninguém desconfiasse, eunucos pintudos endurecidos que mais pareciam moças delicadas. E um dos efeitos da castração era a gordura, também a calvície. Dizem que não eram belos os castrati, rouxinóis com aparência de hipopótamos, mas quem vê beleza não põe a mesa.



Um homem esguio, magro de ombros finos, sempre muito seguro de sua magreza, começa um dia a desenvolver o grande medo, uma tenebrosa pança. Que cresce até que o hábito de encolhê-la não sirva para nada além de espremer o diafragma e provocar falta de ar. Não que antes ele fosse particularmente atraente, mas é que agora.

Pausa. Essa é uma história injusta. Vou pra outra.

Grande, forte, cavalo. E coroado dos lados pela massa fofa de certezas: os machos culotes. Esse é um outro personagem. Quantas mãos já agarraram isso feito rédeas / pra não cair do seu galope.

Link.

dinoçauro :(

http://www.nomorefriends.net

as rosas não falam

entre os dedos é uma história

dos cavalos que se extinguiram da natureza nos desertos da mongólia, o deserto de gobi um gigantesco paraíso de fósseis os paleontólogos e os cavalos de nome impronunciável.

"gobi" é palavra mongol que significa "deserto"

gosto da geografia por ela ser redundante

mas os cavalos: sumiram a forma selvagem nos anos 60 e foram reintroduzidos gradualmente

agora correm livres, são mais parrudos que os cavalos comuns

a júlia diz que a gente é que nem esses cavalos, mas vivemos na saudade ainda não restituídos no selvagem

cavalo-de-przewalski

você também deve ter seus momentos açúcar

6.8.10

soque-o, agarre-o e solte-o

só o coelho pra ricochetear

marajoara

As paredes não escorreram, ficou tudo seco. Eu queria dizer: um quarto cheio de água. Mas nem goteira. Os jornais anunciam os perigos da falta de chuva: caso você sa CASO VOCÊ SAIA de casa / guarde seu pescoço, não faça movimentos brutos, hidrate-se muito. Dunas de sal. Estou tendo problemas com a prosa, confissão de diário n.1. Depois das cartas, tudo o que eu escrevo parece cheio de sal e açúcar, atrito de engolir.

O corpo vai rolando ladeira abaixo, ensaboado sem lugar pra segurar, enquanto a cabeça quica na outra direção. Coisa de gente cabeçuda. O narval, que é peixe-espada?, tem um dente muito sensível e longitudinal que, segundo o dentista do National Geographic, serve para que o bicho verifique as correntes marítimas e os níveis de salinidade e a existência de amor nas profundezas. De vez em quando precisa vir à tona: é quando são mortos pelo marfim.

E os marujos da antiguidade pensavam: eis, ali, unicórnios.

Queria que os problemas com a prosa fossem como carrapatos que te coçam, mas não o bastante pra que você búfalo marajoara deixe de ser: um grande corpo. Vou lá e me descubro um carrapato. Vou lá de novo e me descubro um ser humano que olha os búfalos e os carrapatos e não se entende com seu corpo. A prosa é o menor dos problemas.

Esses movimentos que a gente faz, de saída e de chegada, cansei de compará-los à respiração do mundo sístole diástole do coração de quem eu amo. Chega de eterno retorno, por enquanto. Volto pra um texto antigo:

OS CIGANOS QUE SEQUESTRAVAM

ou eram índios. o menino. no final, minha vó sempre dizia: o menino então voltava para os pais, depois que bons homens armados o resgatavam das trevas sem cristo. quando eu for minha avó, eu vou me contar da seguinte forma:

que o menino aprendeu a dançar como os ciganos e a cantar como os índios, cresceu mais um tiquinho, ninguém o encontrou. e um dia apanhou por causa de qualquer bobagem que aqueles tontos queriam. aqui não fico mais: sequestrou-se. no caminho, encontrou um rio e achou melhor segui-lo, pra não se perder. mas depois pensou que seria fácil também que outros seguissem o mesmo rio e o surpreendessem quando ele estivesse se banhando ou bebendo água ou dormindo flutuando. foi pra selva. e eu só posso contar até aqui, porque também eu perdi o menino de vista. fim.


*

eu sempre paro quando encontro cama no corpo de alguém. Então chegam as formigas, chega a fúria dos cupins, chega a peste e tudo isso me força a sair, povos nômades da terra, tudo o que eu tenho são meus pés e a cachola. Embora, embora.

Refugiados, clandestinos, sequestrados, perdidos: essa a história da nossa gente, canaã que eu não sei. Preciso escrever sobre isso.

Confissão de diário n.2, tardia: a escrita é a morada que me falta.

aventura

a maior foi uma panela de pressão
que por um momento pareceu
fosse explodir

desde então adubou
essa cautela sem folhas
tronco seco de quem deseja
mais que tudo não morrer

pudesse cobria
as juntas do corpo
de gaze e algodão no
movimento dos ossos,
no meio dos dentes

fácil dizer que esta é a história
de um espírito miserável

mas vós que fazeis as cruzadas
da grande aventura do mundo
não deveis vos indignar

há tempo pra tudo

e
não havendo
ela é pequena na cozinha
fazendo feijão no banho-maria
cinco horas depois, pronto o almoço,
mastiga devagar
o medo de morder a língua
quem não tem?
de arrancar um naco de carne própria
depois a sangueira, aftas

a grande aventura
é o futuro

4.8.10

jundiaí

depois de tudo

o nome da cidade significa um peixe
de rio, sendo "jundiá" os índios chamavam
uma espécie de bagre e "í" os índios chamavam toda
água

ou só a que flui
como o rio

este país foi todo feito por rios

os bandeirantes entravam no continente
chacina e coisa e tal
aqui durante muito tempo foi o último pouso
pra lá do japi sendo mato grosso

japi é o nome da serra que cerca a cidade
e que até eu sair daqui me angustiava
porque eu olhava em volta e era um obstáculo ao horizonte
coisa que hoje ainda acho, mas ganhei outros horizontes
então posso viver

a gente vive é vendo ao longe.

menos quem é cego. quem é cego deve ter outras metáforas.

mas pra mim isso não é metáfora.

de todo modo, é bom sentir, quando a gente volta,
que a cidade natal é também um entreposto

deus me livre de ser um bandeirante

mas acho que eu já tenho alguns objetivos na vida:
o fim do capitalismo,
alegria,
mato grosso.

2.8.10

história do alfabeto chinês, contada na pele

então o monge português pediu ao monge chinês
- escreva o seu abecê - pois queria aprendê-lo
ao que o monge chinês escreveu
[sinal]
[sinal]
[sinal]

o monge português pediu
- escreva-o inteiro
ao que o outro respondeu
que inteiro o abecê tem mais de 5000 letras!
e por enquanto você só dá conta destas três

- então leia essas três pra eu aprendê-las
ao que o chinês leu

CÉU
TERRA
PESSOA

.

(eu comecei explicando
"com isso se escreve tudo"
e não me parece falso, mas agora me corrijo:
em termos didáticos
com isso se começa a escrever)

.

também no livro do Tao
encontramos:

o homem segue a terra
a terra segue o céu
o céu segue o curso
o curso segue a si

belo horizonte

cada poste promete trazer de volta a pessoa amada
em 48 horas ou três sextas-feiras

por via das dúvidas levo um flyer

e vou decorando os nomes dos bairros
como se fossem doces gostosos.

segundo capítulo

diz que de algum desses morros
dá pra ver o mar e a geóloga que
há muito tempo atrás
tudo estava embaixo d'água
por isso hoje temos cobre
e - desconfio - somos peixes

terceiro capítulo

um texto do waly salomão
sobre viagens e voltas
dizendo que viajar é ruim
pois se volta e vira tristeza

"voltar e ir", fico pensando
e perco a direção
toda bússola imantada
gira a toda direção

como alternativa a essa tristeza, só se pensar
que pros chineses, no avesso do que pra gente
- visto que a china fica de ponta-cabeça -
o futuro é significado pelas costas
e o passado vem à frente

o professor explica:
uma pessoa caísse no abismo
suas costas voltadas pra baixo
ou aqueles ônibus em que a gente senta
do jeito contrário