30.12.11

sonho

uma palavra importante
que a gente via numa caneca
bebia de manhã, quando acordava
no líquido lembrava de quem fosse
depois esquecia no que engole
o afeto obscurecido pelo esôfago
e esse mundo de palavras complicadas
que se fere no ácido gástrico
do dia que é o nosso estômago

o fim deste caminho
é a prova última de carinho

a gente acorda com cheiro de lençol
se embrulha umas nas outras
a fim de manter o sono na
pele, o repouso, mas não tem
jeito, a gente acorda
e o que pode fazer é ir pra cozinha
tomar café - um nome novo

29.12.11

a visita

tem que deixar a casa arrumada pra receber a visita.

faz café. café ainda não. faz uma torta.

acho que eu vou sair e comprar uma torta. aí faço o café.

vem a visita, olá, querida, tudo bem, que saudaaaade.

senta a visita, dá de comer pra visita.

o filho na sala abre a bolsa da visita e tira cem reais.

eu nunca vi tanto dinheiro, a nota azulzinha.

azul, minha cor preferida.

a cor do céu.

põe o açúcar. não posso por causa da afta. açúcar e frutas cítricas.

é uma mulher tão bonita. ninguém adivinha que tem afta.

sífilis, hiv também não adivinha. esquizofrenia também não adivinha.

a nossa vida é tão bonita!

então espera. disse que ia chegar às quatro. que horas são? ah, sim: são quatro.

ninguém responde porque eu estou sozinha.

eu sou a minha mãe. mas minha mãe não é ela. e eu espero uma visita.

aperta as mãos uma na outra. parece que vai cair.

haha, é engraçado, eu sempre tenho essa sensação.

"da cadeira, você diz?"

ela ri hahaha não, pior que não

não sei. só assim: cair.

bom, se considerarmos

que o universo é um vácuo em movimento

sem norte, sem sul, sem centro

estamos sempre em queda

(detesto quando ela começa "se considerarmos")

(mas é verdade!)

aperta as mãos com mais força.

quatro e meia.

a gente faz isso: põe a toalha na mesa mais bonita,

prepara delícias e fica esperando deus.

deus deve ter se esquecido. ou bateu o carro no caminho.

não coma toda a torta! é pra visita!

vou pro meu quarto chutando o vento.

naquele tempo não tinha internet. mas mesmo que tivesse.

a vida é o tédio esperando o tédio.

aí alguma coisa acontece!

aí tédio tédio tédio...

se eu vivesse sempre na sibéria, talvez não conhecesse

essa sensação de abafado meio de tarde

azucrinantemente quente

e claro.

ainda não são cinco.

já sei: vou fazer algo enquanto isso.

pego papel e quero escrever um lindo cartão de fim de ano.

BOAS FESTAS, MEUS AMIGOS! MUITO AMOR, PAZ E PROSPERIDADE!

a criança vaga pela casa que nem um fantasma.

meu filho está morto e ninguém vem me ver.

"Para de andar um pouco! Você me desconcentra!"

Ela retoma. (Morta estou eu)

Aí você não é mais a sua mãe nem você mesmo: você é a visita.

Que atrasa e que não vem.

As pessoas ficam se perguntando "mas onde estará...?"

dependendo da sua credibilidade, quem te espera se preocupa

"que será que aconteceu...?"

ai, tomara que esteja tudo bem.

MEUS QUERIDOS AMIGOS,

UM 2012 CHEIO DE PAZ, AMOR E PROSPERIDADE

E TOMARA QUE ESTEJA TUDO BEM!!!!!!

:)

- o tempo fecha.

é verão, vêm essas chuvas de fim de tarde.

eu não sou mais a visita, porque eu não vim.

assim como o céu não é mais azul.

um cinza-chumbo se precipita antes da noite.

e antes de ontem, e antes de antes de ontem,

até o princípio do fim dos tempos esse chumbo comemora

a cada ocasião, perto dos trópicos, o fim de uma espera

pela visita.

(querido céu, não caia em mim)

e logo VENTOS, DE NOVO UMA TORMENTA

fechamos a janela porque é isso que fazemos

- a janela fecha.

nos escondemos no centro da nossa sobrevivência

ameaçada por uma coisa tão banal

"agora eu posso comer torta?"

você mata o seu filho enforcado

num descontrole da lógica.

(chove, chove, chove)

"Pode, sim. Vamos comer"

quantas tardes eu a gente ainda

vai se sentar aqui para comer

depois delícia, e digestão,

depois vem o depois, e depois vem mais depois.

faz um café com leite.

"tá tudo muito gostoso"

é muito frustrante quando a visita não vem

pôxa você prepara tudo com tanto carinho

depois tem que comer tudo sozinho

e antes veio o antes, e depois virá o depois,

e no meio disso - pode ser que venha -

pode ser que venha, que não venha,

campainha

28.12.11

aprendi este
ano que além
dos dois já
sabidos movimentos
rotação
translação
a terra faz
outros, um
cônico por
exemplo e outro
se assemelha a um tremelique
tudo por conta das várias forças gravitacionais
e leis newtonianas
se mete a relatividade, vixe
a gente começa a
tropicar na rua tanto que não
se aguenta

há um movimento chamado
roleta russa que é assim:
a terra roda e atira.

em menos de
cinco minutos imaginei
minha afta um câncer
bucal e todas as
consequências disso
num futuro próximo.

bem, o movimento
roleta russa é mais ou menos
isso, só que em escala concreta.

na maior parte das vezes
não tem bala na agulha, por isso
a gente não percebe. mas o movimento
existe e foi comprovado cientificamente,
pela física.

15.12.11

avô

meu avô se sentava na porta numa cadeira na frente da porta da casa, abria uma cadeira de praia

a gente é do interior paulista, onde não tem praia, mas os adolescentes usam roupas de surf.

meu avô abria a cadeira que foi presente e sentava.

ano passado eu viajei pelo interior do uruguai lá os bancos na frente das casas às vezes são tão necessários que estão embutidos nas paredes das casas.

assim: tijolos = parede, banco na parede, feito de tijolo.

começaram a morrer os vizinhos.

meu avô morava numa rua sem saída.

morria o vizinho de baixo, depois morria o vizinho de cima,

"morreram", no pretérito perfeito

e outros muitos vizinhos

meu avô sorrindo dizia

"estão me cercando..."

13.12.11

curso prático

tenho me dedicado

a não morrer

e nem percebo

é assim:

não tomo friagem

me alimento direito

limpo a casa

sabe as bactérias

são distraídas assassinas

e eu um sobrevivente distraído

quando lavo uma faca

não a meto na barriga

haraquiri não, oh não

ensaboo direitinho

enxaguo e guardo

pra que a faca não me corte

eu não me cortarei

hoje um carro quase me atropelou

mas eu corri

oi mãe, oi pai

não precisam se preocupar

eu vejo carros e corro

que mais tenho pra dividir?

escovo os dentes, corto as unhas

penso em dinheiro o tempo todo

mas só porque eu não tenho

e, você sabe, no nosso sistema econômico

fica complicado

como coisas com agrotóxicos, é verdade

acabo de ler um artigo

sobre como o flúor dá câncer

e bebo água com flúor

respiro fumaça, não faço check-up

o dia em que tiver dinheiro vou me cuidar

ainda mais

agora faço o que posso

(meu pai morreu de câncer)

quando estou triste, por exemplo,

busco meios de estar feliz

até o momento tive sucesso

não com a felicidade, exatamente

mas com isso de estar vivo

(os anos passam, as horas se arrastam)

em poucas outras coisas

na vida posso dizer que tive

um grau de sucesso igual

a isto de que agora me dei conta

12.12.11

era uma vez um negócio

aí começou a cair uma gotinha em cima desse negócio

assim: ping, ping, ping...

e o negócio virou outro negócio

virou você.

um dia você falou "cansei dessa gotinha"

e foi embora

(ping, ping, ping...)

a gotinha, sozinha,

continuava gotinhando

mas não tinha mais no que gotinhar

por isso o ping-ping caía na eternidade

e na eternidade não atingia nada nem ninguém

você já estava longe, porque tirou um diploma e começou a trabalhar

quando você ficou mais velho, a sua mãe e o seu pai morreram

mas antes disso você foi se transformando:

virou aquele primeiro negócio outra vez

a diferença é que estava longe e trabalhando

aí era uma vez um dia em que você não serviu pra mais nada

quando a gente fica muito triste, a gente fala assim

"ai eu quero me jogar dum pé de alface!!! D: "

e dá risada

foi o que você fez.

aí você voltou pra gotinha, porque vocẽ lembrou que tinha a gotinha.

a gotinha, coitada, continuava pingando na eternidade

mas a eternidade não enche nunca!

é um saco sem fundo a eternidade. muito chata.

aí você foi lá e ficou de novo embaixo da gotinha.

é que a gotinha é do reino mineral, por isso não tem sentimentos.

mas, se tivesse, talvez ela ficasse feliz

porque você é mais legal que a eternidade.

pelo menos você se molha.

e agora era em você que gotinhava

outra vez: ping, ping, ping...

e você virou, de novo, aquele

outro negócio, que você já tinha virado,

antes de você ser esse negócio que você

é

alegria

o jaspion era um
guerreiro intergaláctico
tinha duas
companheiras uma era a
mími, extraterrestre gorduchinha
que só falava mímimímimími
a outra era uma moça bonita
e biônica que às vezes precisava
de algum reparo

juntos eles lutavam contra o
satangos que era as forças do mal
eu dizia o nome sussurrando porque
era pecado dizer "satan-".

lembro dum episódio
faziam feitiço maléfico e o
jaspion via tudo de ponta-cabeça

ele achou que não ia poder lutar mais contra o mal

aí ele descobriu que se
plantasse bananeira via tudo no
normal e treinou lutar assim e
venceu a luta contra o mal e
tudo deu certo no fim

*

gostava também de ver os
changeman que eram cinco e
coloridos

na rua eu era sempre o change-dragon
queria namorar o change-pegasus
escondido imitava a change-mermaid

os inimigos do changeman eram o ghiodai
que era um monstro de bengala com um olho grande na boca
e do olho saía um raio vermelho
quando os changeman matavam um monstro
o ghiodai aparecia e fazia o monstro
viver de novo e multiplicar o tamanho

aí os changeman formavam um robô gigante

outra inimiga dos changeman - a minha
preferida - era uma mulher muito muito linda
mas que tinha voz de homem muito grave
por isso ficava junto com os monstros
e lutava pelas forças do mal

a vaca só vê vantagens

a carne destes pampas é tão boa
porque desde o período colonial sabe-se
as vacas andam pouco, quase não se mexem
o pasto abunda onde o pasto cresce
a carne macia se diferencia de outras
terras onde a fibra é necessária
montanhas que estão cheias de cabras

eu gosto de ler sobre animais desaparecidos
sobre espécies, digo
mas também gosto de ler sobre as vacas
pra mim, as vacas são animais igualmente desaparecidos
têm quatro estômagos na folha informativa
e exploradores entediados buscam seus vestígios
em açougues, que aqui se chamam carnicerías

carniça ou fóssil, nenhuma vaca é minha amiga
mesmo assim sei algo sobre elas e também
sobre técnicas de abate, por exemplo que
entram num corredor apertado e que
não vendo atrás nem dos lados ficam menos
angustiadas, o cérebro (!) libera menos
adrenalina e a carne fica muito mais macia

não sei se a angústia e a fibra
deixam a gente incomestível
imagino

5.12.11

a infância da política

minha mãe me repreendeu que eu não podia chamar o fernando henrique cardoso de ignorante na redação da escola porque ele era uma pessoa muito estudada. ela disse que eu devia dizer: néscio.

*

minha avó passava roupa em casa toda quinta, eu tinha quatro anos e a amava mais que tudo, bom, não exatamente mais que tudo, amor se mede? lembro de dizer pra minha vó que eu se votasse ia de lula. ela disse que o lula não, porque era da bandeira vermelha, da foice e do martelo. a foice era pra cortar a garganta da gente; o martelo era pra bater na cabeça da gente. o vermelho, imagine-se, é todo o sangue decorrente do que acima foi exposto. fiquei quieto, convencido da minha escolha pelo barbudo. adoro homem de barba. vovó disse que bom mesmo era o collor, muito lindo, homem reto, as cores verde e amarelo.

*

minha mãe e eu (imagino que seja sempre assim com todas as relações que as pessoas têm com suas mães, não concebo uma família mais acolhedora que a minha) sempre tivemos discussões rancorosas, desrespeitosas, agressivas e cheias de farpas, mas cobertas com a margarina do amor. essa que engordura e faz mal, mas que deixa escapadiço e até tragável - no nosso caso, até mesmo compulsivo - o pão duro que eu tenho pra comer.

numa dessas, eu dizia a mamãe que não achava certo que tivesse gente com dois carros no mundo e gente sem nenhum carro. que eu achava que todo mundo tinha que ter as mesmas coisas. minha mãe tentava me convencer do contrário com argumentos lógicos e gentis. acho que falamos até de cristo. como eu me mostrasse irrevogável, ela disse nervosa "você está dizendo a mesma coisa que o fidel castro. você quer ser que nem o fidel castro?!" e completou com meia dúzia de broncas a cuba. já que ser como o fidel castro era muito ruim, eu disse que não, de jeito nenhum. não mudei de opinião, mas parei de argumentar.

*

meu pai tinha um quadro do che guevara na parede com a famosa frase "hay que endurecer...". eu, como qualquer pessoa no mundo, ou mais ou menos isso, tenho no meu pai um paradigma de tesão. homens de barba, ideologias de esquerda, endurecimentos. sin perder la ternura. já mais mocinho, mas ainda nos cueiros, vi meu pai desenhando suásticas com certo orgulho e afronta no papel vegetal da mesa do restaurante. acho que já era um aviso pra minha inevitável boiolice. eu, que não me lembro de um dia ter tido afeto por ele, depois fui ler marquês de sade. hoje eu entendo menos o mundo, e mais o meu pai.

*

que também tinha uma flâmula de cuba pendurada no puxador do armário. mas estava desbotada e não era tão bonita quanto o quadro do che. um dia estávamos na mesa de jantar, o quadro do che já era história e eu queria ser adolescente e achava que pra isso precisava de um pôster.

(pra minha mãe) "sabe aquele quadro do che guevara que tinha na parede? posso ficar com ele?"
(minha mãe) "pra que você quer?"
"pra pôr no meu quarto"
"pra quê?"
"..."
"pede pro seu pai"
meu pai estava na mesma mesa, mas a gente quase não se falava.
(pro meu pai) "... posso?"
(ele) "pode o quê?"
"o quadro... do che guevara... ficar com ele..."
(ele) "pra que você quer?"
(meu deus!) "pra pendurar na parede do meu quarto"
"por quê?"
"ah, sei lá! eu quero. posso ou não posso?"
"não."
"..."

"por quê?"
"você sabe quem foi o che guevara?"
"não. quem foi?"
"quando você souber eu te empresto."

*

às vezes minha avó, nas tardes de quinta, saía pra conversar com a tia helena ou então ir no mercado sabe lá. eu se ficava sozinho assistia televisão. tinha a televisão e um relógio grande de pêndulo na parede. no sbt sempre passava a chamada prum filme chamado "gritos do silêncio", e apareciam crianças vietnamitas, no meio da selva, chorando, e era guerra. eu associava isso ao zumbido que sempre tive nos ouvidos. se tudo pusesse silêncio, além do tique-taque eu ouvia muito alto um grito AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA agudo e contínuo (não tem nada de zumbido). era isso o grito do silêncio.

*

uma das pessoas que eu mais amava era a clementina, faxineira lá de casa. um dia minha mãe falou "dá um beijo na tia clementina porque ela tá indo embora" e eu dei um beijo morrendo de nojo, porque ela era preta. depois fiquei chorando no meu quarto, não estava certo sentir nojo e amor pela mesmo pessoa. falei pra mim mesmo "não vou mais sentir nojo, então". e deu certo.

29.11.11

e eis que levantando em armas seu algoz contra, vitimado em bico de sinuca e degolou o que o matava, e logo o povo livre e outra ordem e das ordens eis a ordem, novo líder

e eis que novos mortas e as trevas se abateram, a noite é dentro a noite e a cada dia é nova, a morta já não estava outras mortas e eis que fez-se noite para sempre

que outro algoz ao mesmo manda mesma guerra velha dança pisa as ervas

para que seu inimigo não mais florisse
semeou sal nas terras da família
e até hoje muitos séculos
nada cresce, eis que o mato
não resiste

e sopra o vento

a história é a história de como nos ferimos
e montanhas descem pó se faz do ferro
brota do amor a morte erro
eis a miséria, mãe de todo acontecimento

28.11.11

a aparição da virgem

tinha uma janela lá em cima no céu
mas ninguém viu

o que todo mundo viu foi a virgem
descoberta mãe
de deus no sanitário do interior
do brasil

a igreja aos
gritos e o papa condenava
mas fiéis juravam só
cheirar e cura
câncer aids
cura a corrupção nos poderes
públicos, na alegria pela
miséria, cura essa falta
de amor a virgem em forma
de merda

ave maria mãe de
deus

rogai por nós
cagadores

a tv de
domingo fazia
procissão à privada e
a dona do
banheiro concedia entrevistas
orgulhosa "fui eu quero
dizer foi deus quem
fiz a mão
moldando as
minhas entranhas"

ave maria mãe de
deus

bendita sois
entre as entranhas

o que todo mundo viu
foi uma água amarronzada
e a natural decomposição da santa
já que não se dava descarga

ave maria mãe de
deus

a dona da privada ficou
triste e nunca mais fez
cocô do mesmo jeito

as vizinhas ficaram
tristes por que a virgem
não sai do meu reto?

vou fazer uma procissão
tem piedade do bolo fecal

ave maria mãe de
deus

bendito o fruto do nosso
ventre

este texto podia ser sobre uma janela no
céu

mas as venezianas não estão
abertas

rogai por nós, sonhadores,
agora e na hora da nossa merda

22.11.11

polo

o degelo deixou o
mundo órfão do urso-polar

era uma vez um bicho que era branco
lineu viu e disse "urso", mas lá
naquela classificação latina dele

e polar, pois antes tínhamos inventado
a geografia

era uma vez a gente, que olhava o que chamava
de urso e se achava diferente

aí veio o degelo

deus, que não está pra brincadeira, apertou
o botão da geladeira e o planeta começou a
se escorrer

eu mesmo estou aqui escorrendo. de outros tipos de
degelo. penso no urso-polar e lembro dum livro didático
que dizia que para se camuflar no branco
polo o urso cobre o focinho escuro com as patas e pronto,
ninguém o vê

também que se o urso for
trasladado pra um lugar de calor vai morrer
de muito calor

no hemisfério sul estamos começando veraneio e os
pinguins e lobos-marinhos vão nadar em águas
mornas, alguns aparecerão mortos
na bahia, por força de correntes

outro dia vi uma foto de um urso-polar
comendo seu próprio filhote e não são canibais
tamanha a sua fome

é que vivemos tempos de muita escassez
diversos tipos de escassez

o homem é o urso do homem

21.11.11

Novas estratégias militares para tempos de assombro

a nova guerra mundial aconteceu do seguinte modo: o país B, atacado com festejos após tensões com o país A, resolve revidar, não diretamente, mas atacando o aliado de seu inimigo, que chamaremos país C. O país C, por sua vez, também dono de armas e bombas e gente mandada a morrer, ataca o país D, que mantinha relações diplomáticas com seu inimigo e manifestava, de vez em quando, descontentamento com as políticas do país A. Surpreso com a retaliação arbitrária que o acometeu, o país D mobiliza suas tropas e, para garantir a segurança nacional, decreta estado de sítio, ocupa os pequenos países E e F, seus vizinhos amigos dos países A e C, e ataca, para demonstrar seu poder bélico, o país G, limítrofe com o país H, que por sua vez é forte aliado do país A.

Não se pense, erroneamente, que a ordem das letras implica uma ordem geográfica, padrões de distância ou extensão territorial, nada disso. A ordem só serve para garantir que o nosso raciocínio consiga, de mãos lavadas, entender o exemplo. Também há que advertir que no mundo há mais países do que o alfabeto romano poderia imaginar. E há as pessoas, que não são computadas em letras e já chegam a cifras incontáveis, apesar das políticas públicas de contenção do crescimento populacional promovidas pelos países em guerra.

João Cabral de Melo Neto escreveu um poema muito bonito sobre o nascimento do dia. A primeira estrofe diz assim:

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.


Sabe-se que, enquanto os governantes declamavam a guerra, empresários do setor alimentício, justificados pela fome - que, assim como o PIB mundial, crescia silenciosa e apressadamente -, inventaram uma nova técnica de aproveitamento das granjas que consistia em triturar galinhas inteiras, suas penas e cristas, e disso derivar uma sopa aguada e nutritiva, com cor e cheiro de merda, que era vendida a preços justos após as cidades serem saqueadas.

Os galos, portanto, não mais existiam, por isso não cantavam. A manhã, contudo, continuava nascendo, o que demonstrava per se a inutilidade da poesia.

Não tão inútil se pensarmos que a estratégia de guerra acima demonstrada se parece muito ao esquema de amanhecer escrito por João Cabral. Um país lança um grito a outro / que apenas o apanha e a / outro lança em grito o / grito e muitos / gritos etc., até que o mundo todo esteja em guerra. A poesia, concluímos, é muito boa para profetizar e dar ideias, mas só a ação que deriva dela é que é útil. Também não diz verdades incontestáveis, pois a experiência comprova que um país, sozinho, sim pode tecer a guerra. O que ocorre é que todos juntos, digo, se todos nos juntarmos em favor do único objetivo que realmente temos em comum, a história será mais rápida e eficaz.

Cada um de nós é um galo. Cada um de nós é uma galinha.

20.11.11

A República das águas

um dique, fossa, foi-se construindo em volta do lugar, era a minha casa dentro de um aquário. Eu não tinha casa. Me dá impressão saber que o maior peixe do mundo, o tubarão-baleia, alimenta-se quase que exclusivamente de sêmen e ovas de outros peixes, que nadam em cardume espiralar e soltam gozo pra que a corrente faça os filhos, siga a raça, e sobre a minha cabeça vejo arraias bichos bravos militares de alto-mar, esta água ebulição, represa, prisão, a gente da cidade vizinha vem pescar aqui, desvio dos arpões,

se eu estivesse dentro de você, ó tanque, mas em prados e savanas igualmente. A presa não escapa pela tangente.


Construíram às portas do país uma barragem para o mar. As ondas acumulavam-se em força e criaram um ódio profundo da gente. Não tardou mais que alguns séculos (as águas são o tempo) e o sal rompeu os muros, corroídos, o mar feito manada exército inimigo tomou nossas terras seguras e secas. Neste momento estamos mortos, trancados no rancoroso ventre das águas.

O helicóptero que sobrevoa esta desgraça busca lugar de pouso.

"O tempo está bom hoje, não, comandante?"
"Está sim, senhor governador."

Os soldados que guardam a vida dos tripulantes metralham a água abaixo, um pouco por diversão, um pouco por costume, também mera revanche, e caso haja algum sobrevivente, e também por incontida indiferença aos peixes.

"Ah, acho que encontramos um lugar!"
"Ah... [o governador boceja]"

O helicóptero pousa na única ilha do mundo. "É pequena, mas deve dar". Uns macaquinhos curiosos chegam perto e logo são abatidos, dos couros fazem cachecóis e a carne comem tostada na fogueira. "Não estava nada mal". De pé na ilha vê-se o entorno, águas calmas tentam subir pelas praias. De pé, vê-se toda a ilha, que tem a forma de um pássaro gordo, mais bem de uma galinha.

"Dormiu bem, senhor governador?"

O governador e sua senhora arrumam os cabelos. Têm cara de gente satisfeita e desgostosa. A mulher vai para o fio d'água que brota do centro e lava o rosto, os pés, e as orelhas. Olha para os lados envergonhada, todos desviam o rosto, e ela lava os sovacos e os seios, por debaixo do sutiã.

"É melhor começar as obras logo", diz o governador, "Não temos porque perder tempo."

O tempo, sabe-se, evapora. E os soldados tiram do helicóptero sacos de cimento, começam as barragens. À noite, revezam-se na mulher que levam prisioneira e que, para que não se mate, é mantida sempre sob a vigília de uma pistola. Satisfeitos com a vida, quarenta dias depois já têm pronta a muralha da ilha.

Deixadas de fora, as ondas arranham e retrocedem estrategicamente. Os peixes se preparam.



*


"Eu acho" diz a primeira-dama "que nós não devíamos pintar os muros". O governador só tinha sugerido porque a mente do homem fica apática com o ócio e sugere coisas ao acaso. O pescoço dele formiga de sono. A primeira-dama olha com certa tristeza para a mulher acorrentada que varre o chão com uma pistola apontada pra cabeça. A primeira-dama suspira, também apática, pensando que seria transtorno pôr cor nos muros, imagine o cheiro de qualquer tinta preso naquela terra sem brisa, e ter de olhar as mesmas cores para sempre. "Mas, se você quiser, eu não me oponho" diz ao marido.

O marido dorme o leve sono dos justos, sem roncar. A primeira-dama suspira quando percebe, e volta a encarar os entornos cinzentos de sua nova casa. Procura na mente algum catálogo de cores, retângulos imóveis coloridos, ela era muito boa pra visualizar essas coisas. Antes da cheia (como os da ilha chamam esta desgraça) em rodas e festas até diziam que esse era o seu talento, e ela nem dava muita bola, mas é sempre gostoso ter um talento. Visualizar as coisas.

"Eu acho", ela pensa, como se estivesse falando com o marido, era seu costume, e recompõe-se pra ser mais ela mesma ao dizer, em pensamento, o que diz:

"Eu acho", pausa breve, "que bege é uma cor linda."

18.11.11

material bruto

exército dos estados unidos testa míssil cinco vezes mais rápido que a velocidade do som, capaz de atingir qualquer país do mundo em menos de uma hora.
tiraram da boneca russa o dentro do dentro do dentro. e lá no fim uma boneca oca. a criança abre e

a) se decepciona. pois tanto atraso de surpresa seguro devia te levar a algo mais generoso, uma joia um caramelo. quantas vezes na vida eu vou chegar ao fim e descobrir que mais valia o gozo do começo - boneca enorme e cheia, chacoalho de mistério.

b) diz "ah!" em tom de revelação, sabedoria. abre o fim e um vácuo te libera: boneca incompleta. põe de lado as cascas isso não me interessa. no caminho para a rua (vai pôr os pés na rua) vê a mãe de costas na cozinha. revelação: a gente também vai se deixar. se abrir e se descobrir nada. que importância têm estas cascas? porque há vazio, eu brinco.

c) percebe colada às parede da última boneca uma última e ínfima boneca. (acho que estou usando palavras muito rebuscadas. é que ainda não cheguei na ínfima boneca). o ínfimo é simples, sem detalhes de pintura, cílios, mas vai ficando mais difícil. de você abrir. a criança cresce e se especializa em bonecas russas, porque desde então vem encontrando uma cada vez menor dentro da primeira que abriu, há muito tempo, era o seu tamanho. não teve tempo de ter filhos. suas unhas, grandes e finas de auxílio, às vezes se cortava o rosto num descuido. e foi trabalhar só pra ter dinheiro pra comprar as ferramentas para abrir mais as bonecas. milímetros, centésimos de milímetro. a última boneca era um átomo. depois dela havia outra. a última boneca era deus. mas depois desta também havia outra. uma vida humana não chega a tanto.

(a minha, pelo menos)

(ou vai chegar?)

estudo das prioridades: acho nojento quem dá migalha pra pombo, promove as doenças na população. mas fui comer bolacha no parque e achei que seria injusto jogar as migalhas no lixo, onde não iam alimentar ninguém. os microrganismos são ninguém? na hora nem lembrei deles. joguei no chão e vieram dezenas de pombos. alguns se bicaram e fizeram briga sangrenta. um mais metido se pôs no meio das migalhas, pisava nelas e bicava quem chegasse perto. comeu quase tudo e foi embora quando quis. pardaizinhos olhavam de longe e mal se atreviam.

os pombos são bem ferozes.

agora estou juntando migalhas e mal posso esperar para ir de novo à praça.

estudo das prioridades: comer.

16.11.11

o que os europeus fizeram com a américa é uma prévia do que vamos fazer com outros planetas. já se fala em terrificar vênus ou marte.

14.11.11

o ataque

há uma grande probabilidade
de que as árvores voltem
e nos ataquem

governantes em cúpula
reúnem-se e decidem
um plano secreto estratégico
pro caso do acosso

o regime
precisa de quem
o escreva e assim
garanta coesão
discursiva às suas
ações

tragado pelo salário,
para não passar mais fome,
mando meu currículo,
sou aceito e instruído
do que devo escrever

digito com medo,
pensando que deveria ter escolhido outro emprego,
vendedor de livros, por exemplo

mas já fui vendedor de livros
e também não estava satisfeito

isso foi antes do ataque
agora só tenho medo

as árvores
que tinham deixado o planeta após um diagnóstico
reaparecem camufladas na noite

quando acordamos, uma manhã
estão de novo plantadas
nas ruas, nas florestas, nos inesperados

só essa presença gigante das árvores
já nos faz caminhar atentos, esperando o perigo,

também nos faz respirar aliviados

11.11.11

the rancor, the rancor

uma mulher nos estados unidos tem
a perna que cresce mais que tudo chega
a trinta quilos só de perna. amputaram-na
e ela continua crescendo. a mulher aparece
sorrindo nas fotos do jornal, não condiz
com a terrível enfermidade que é uma perna que cresce
e que não para, mesmo depois de amputada

*

um bebê desnutrido na somália sobreviveu e
passa bem, as pessoas contentes compartilham
por facebook "ainda bem" e comemoram. cerca de
50% das crianças latino-americanas são pobres diz
estudo da unesco, quantas crianças morrem ou deixam
de morrer todo dia no mundo por desnutrição é uma coisa
que o facebook não dá conta de explicar.

*

eu e a giovana ficamos analisando a situação
política do brasil e previmos que tudo se assemelha a
1963, donde concluímos que o golpe está próximo. depois
pensamos que não parece tanto assim 1963
donde concluímos que pode ser pior, até, um
recrudescimento do estado totalitário sem necessidade
de uma ditadura explícita, pensamos no méxico,
pensamos na colômbia. voltei pra casa, passei mal
e não consegui mais trabalhar. acho que é um sintoma
e (talvez) um prenúncio medonho dos novos tempos
que eu tenha internet de banda larga e não tenha
comida na geladeira.

9.11.11

Teoria do Mundo

O mundo acaba a cada
vez: que alguém morre ou se
estraçalha uma bala de
fuzil num corpo
inerme, ou a conta não
é paga e te expulsam ou
te prendem. O mundo acaba
várias vezes.

Se uma árvore cai no
meio da floresta e ninguém
ouve faz barulho? Ela é menos
árvore?

Depois, esquilos saltam
do tronco o mundo renasce:
na matéria decomposta, nos novos
rumos da carne. Em quem encontra
a árvore morta e
chora, diz "Ai
esta árvore".

Ai esta Terra. Que
gira e deixa a gente
tonto. Chacoalha de si
tantos tipos de árvores.

Às vezes,
chacoalha também
algum tipo de monstro.

A gente gira junto.
Não podemos fazer de outro modo.
De girar e girar, de repente é que
a gente se encontra. E o mundo,
que tinha acabado,
reabre suas comportas.

A manhã, meu bem, é uma volta.

7.11.11

criança

meu pai contava com
orgulho a infância pobre quem
não tinha o que
queria, brinquedos
rústicos (meu pai
antes que rústico era
meio cru, mesmo) se
orgulhava da dureza

minha mãe dizia
depois, de canto, que
não era bem
assim, vê, seu pai
tinha até algum dinheiro
e nostálgica lembrava
a infância dela mesma
era quase uma pobreza
guaraná só de domingo
mas a gente era tão unido

(eu, criança, odiava
ser criança. ficava pensando
"ai quando eu crescer". até que pensei
que se eu só adiasse a
satisfação ela nunca chegaria, sempre no "ai quando".
aí eu falei "tá bom".
hoje raramente tenho saudade.
vejo que eu não gostava mesmo.
mas vai saber daqui a alguns anos.
fim do parênteses)

minha avó é a única que passou fome.
fala da fome sem saudade, sem sentimento.
diz "era muito ruim". meus outros avós
também contam pouca vantagem. parece
que a vida melhora e a gente fica mais besta.
eu mesmo não paro de reclamar. nunca nada está bom.
a gente fica equilibrando a vida. ela por si só
desequilibra e cai do barranco.

(eu, criança, via muito
a xuxa. acho que foi isso que me deixou tão triste.
a mesa de café da manhã da xuxa. ela
escolhia a criança mais pobrinha e dizia
generosa "você pode escolher O QUE quiser"
assim, no singular.
a criança ia lá e escolhia a fatia de melão.
um doce aguado, um verde sonso
o do melão. a criança, decerto, sentia vergonha.
de pegar algo mais xuxa.
pegava o melão, que era ela mesma.

eu, se eu pudesse, eu matava a xuxa afogada.
se isso fosse trazer justiça pro planeta.

mas coitada da xuxa.
coitada da gente.)

quero muito ter um filho.
só não sei se fico vivo até lá.

6.11.11

o messias

tenho vontade de
ir nas escolas e dar
palestras como fosse
um doce proibido
nos intervalos dos vigias
dizer às crianças que mais
vale um cachorro vivo

e terrorista, caramelo,
semear um chão de discórdia,
essas crianças crescerão para
deixar seus postos de
trabalho, deixar as bibliotecas,
certificar-se de que os
cães são tratados todos como gente
e que a gente é tratada toda como cão
somos iguais, somos irmãos

ser escritor é uma bobagem tão grande quanto ser qualquer coisa.
o bernardo fala de orientes onde
ser é intransitivo.

também sou professor. por piada
cármica sou brasileiro. fico surpreso de ser
filho da minha mãe. a lista segue.

mas eu não acompanho a lista. já
falei: vou pras escolas (preso à minha classe
e a alguns planos) de transformar todas as pessoas
bem alimentadas do planeta em
miseráveis

pode parecer egoísta da minha parte, querer que todo mundo seja miserável como eu. mas é bem o contrário. quando ninguém tinha nada pra comer, jesus multiplicou os pães e os peixes e cada um recebeu uma quantia igual, pequena o bastante para não se fartar, grande o bastante para ser suficiente. se jesus vier agora, nesse tempo de bonança econômica (ainda para a europa e para uns demais desavisados), vai repartir a miséria. a cada um, a sua parte. pequena o bastante para não se fartar, mas grande o bastante para ser suficiente.

5.11.11

bélgica

todo dia no brasil desmata-se ou
deixa-se (mais raramente) de desmatar uma
área do tamanho da bélgica e da holanda
eu conheço (por acaso) alguns belgas
não acho que nenhum deles tenha morado na
floresta amazônica

quando ouço essas notícias me
estarreço: como é que pode caber tanta
europa por aqui?

este ano passei de raspão na
europa. não quero parecer mal agradecido,
mas não achei lá grande coisa

pra amazônia nunca fui. morro de medo
da floresta. gosto de ler e aguento
comprar veneno contra as baratas, se for
o caso

natureza domesticada, as baratas ao menos
não me comem (que nem jiboia
onça jaguatirica comeria)

(às vezes fico muito cansado de ter
que estar em algum lugar. hoje
por exemplo estava na marcha do
orgulho gay e pensei "pra que tanto
corpo meu deus" pensei "que cu santo
deus que cu!")

também fico pensando que a bélgica
inteira já foi desmatada e que o nosso
destino é afogar índios o máximo que possa

eles nos rogam pragas, o continente
todo um maldito cemitério, na colômbia descobriu-se
que funcionários de cartório davam-lhes nomes
(aos índios) como ford ou volkswagen
pra zoá-los

me estarrece (mais que a bélgica) que haja quem
não se estarreça com essas coisas

de todo modo, termino o dia me sentindo muito
sozinho

chego da marcha gay, só tenho uma dúzia de bolachas pra comer.
tenho essas bolachas e o sentimento do mundo.
que me servem?

mas como
minha mãe foi uma das que me ensinaram que
há sempre gente passando pior, por isso não podemos
reclamar, então eu penso (sei) que tem muita
gente que tem muito
menos que isso - nem as bolachas, outras nem
o sentimento do mundo, minha vida
é uma desgraça, e eu lá posso
reclamar?

sei que tinha vontade de escrever a grande
épica do nosso tempo, contar pro futuro
a nossa história, e pro presente esta derrota e
as saídas.

talvez porque não veja saídas.
talvez porque só tenha bolachas
e um companheiro de quarto com o pé
machucado, não pode sair pra trabalhar.

eu trabalho, vou na marcha, ainda tenho
casa, já disse que tenho bolachas, me
distraio com esses imediatos, tusso
porque engasgo, e perco (nem percebo)
o sentimento do mundo.

abóboda celeste,
magmas vulcânicos,
oceanos incontestes:

perdoai.

quantas bélgicas caberão na minha
ideia e se tais bélgicas caberão neste
planeta, fica a dúvida.

líderes líbios são linchados,
guerrilheiros colombianos são caçados,
minha avó esquizofrênica passa bem por quanto tempo?

hierarquias, minhas famílias,
atlas geográficos escritos em papel virgem,
mortas árvores o mercado editorial,
a microsoft, o câncer que matou o dono da
apple, a big apple, isaac
newton, já não
posso ver a todos

fico atento: percebo
que não morro agora
o aleph. hoje de manhã acordei
muito cedo. tenho as costas doloridas.
nas minhas costas acaba a poesia.

então paro. e findo tudo. olho
em volta não há bélgica. os belgas nem são
meus amigos. só gente que eu conheço
(por acaso)

um deles escreveu que
apenas um execrável imbecil sem
nenhum motivo pra orgulhar-se se
apega à terra em que por acaso
nasceu

era, obviamente, uma
crítica ao patriotismo

com a qual eu concordo, e assimilo
de igual modo esse acaso todo: cordilheiras,
cemitérios vivos, gente alheia

os olho e quero dizer:
"já não me apego"

- ó massa informe chamada mundo
nós somos vós
(nós somos vós)

3.11.11

Meu pai foi para a guerra

meu pai não deixava ninguém sair de casa. Se saía, tinha que levar celular, suprimentos e cordão de identificação. "Porque a guerra vem". A guerra sempre vinha. Um avião despejando bombas, veneno no abastecimento de água. Corjas que durante a noite invadiam nossa casa e estupravam a família, exércitos ninja, ianques famintos. De todos os lados a guerra vinha. "Mas, pai, você não vê que está tudo bem?". Eu tinha feito dezoito anos e ele me olhou com suspeita. Porque nunca se sabe onde está o inimigo.

Nos dezoito anos dele, foi levado pelo exército e o obrigaram a beber sangue de galinha para sobreviver na serra. Por isso ele estava gabaritado para nos proteger do que viesse. O que vinha era a gente mesmo, mas no futuro. Meu pai nas barricadas do futuro. Ou então o passado, fotos antigas que podiam ter sido manipuladas. Meu pai trancava a casa e revezávamos na vigília. Alguém sempre tinha que estar desperto, pois à noite vêm os lobos. Jesus disse: voltarei como um ladrão, não saberão a minha hora. E raios de luz desceriam dos céus, cegariam os infiéis. Meu pai, arrebatado, nunca mais precisaria beber sangue de galinha. Era perigosa a nossa vida. Também está escrito, no Apocalipse, que é o livro das revelações. Sobre a segunda vinda de Jesus:

E naqueles dias buscarão a morte. E não a encontrarão.

"Pai, dorme um pouco!"

Já eram trinta e cinco anos de espera. As notícias pela televisão eram recebidas com ansiosidade e igual desconfiança. Opositores do regime prenderam o presidente líbio. Torturaram-no até a morte. "Até a morte" é muito ou pouco tempo? Ainda não morri. Mas às vezes parece que a semana passa mais rápido. A chefe de governo dos Estados Unidos ri do fato. Em Cannes, um encontro de líderes mundiais sitia a cidade, impede o livre trânsito de pessoas, força à revista mulheres grávidas e crianças de oito anos. O mundo é um lugar seguro, igual a nossa casa. Mas e o tempo?

O tempo mata indiscriminadamente.

"É ele que vem", meu pai diz. Observa pela fresta do portão. Passam vizinhos com seus cãezinhos. Nossa casa está pichada com palavras que machucam muito. Queria eu tê-las pichado. Mas estou dentro. E estoura uma granada.

"Vamos!". Por trás do sofá, meu pai veste um capacete, improvisa um abrigo sob a mesa. Os delírios são constantes. Ou será que eu é que estou delirando? Quando olho da janela e vejo: o mundo não se move. (Explode.)

A Terra, no entanto, dá uma volta completa em pouco menos que vinte e quatro horas. Fico em dúvida: pra que lado? Caio. Meu pai me pergunta: "você está bem?!". Respondo que sim, só tive um ligeiro mal-estar, uma zonzeira. "Filhos da puta". Não, não foi ninguém, fui eu mesmo. "Proteja-se!". (Explode.)

Esta paz é uma desgraça. Ameaço vestir uma máscara e atacar meu pai de surpresa, as guardas baixas. Matá-lo e tomar seu sangue como se fosse o da galinha. Ai, galinhas, que inveja, são tão sem guerra. "Precisamos de mais suprimentos". Mas é só uma ideia. Saio arrastado pelo portão. Já na rua, sob o olhar malvado de alguma criança, me recomponho como homem sem medo e vou até o mercadinho da esquina. Sem ter o que temer.

"Eu quase nunca vejo vocês. Sem querer ser indiscreto: você trabalha no quê?"

O dono do mercado me entregaria à polícia, e às minhas latas de atum. "Sou escultor". "Ah...". Ele parece não saber o que fazer com a informação. "Como assim? Faz esculturas?". Imagina o busto de alguém muito importante sendo talhado pelos meus dedos. Um homem sério e de bronze, modelo a ser seguido. Mas não consegue definir o rosto. De qualquer modo, está admirado. "Mas você não faz escultura de político, né? São todos uns ladrões". Digo que não porque ainda não me obrigaram. Entrego-lhe um pacote de salsichas. "E você mora sozinho?".

Desejo-lhe boa tarde e volto para casa curioso de como seria se eu fosse escultor. Há que manter o máximo sigilo. Fico triste por não saber mexer em bronze, pedra, terra ou madeira. Comprei uma caixa de fósforos. Tacaria fogo no meu pai, quando ele estivesse distraído. É só uma ideia.

Atravesso as barricadas da minha sala, da minha cabeça. Isso aqui está uma bagunça, isso sim. "Pai?", pergunto pela casa. Mas a casa não responde. Guardo a comida atrás do móvel da televisão, abro o pacote de salsichas e mastigo a ponta de uma, pensativo. Às vezes fico muito sozinho.

Pai?

Mal percebo que alguém entrou em casa. Estava dormindo, essa hora em que nos descuidamos do mundo dos vivos. Tive sonhos agitados e esquecidos. Uma luz ora azul ora vermelha tinge as paredes da sala e homens bravos gritam em português coisas que eu quase não compreendo. Se alguém fizesse meu busto, seria um amontoado de folhas secas, ou de restos de papel, cascas de fruta jogadas pelo vizinho. A vala comum dos dias guarda monstruosidades e dela brotam plantas comestíveis que alimentam toda a população. Uma viatura me espera. E porque eu nunca servi ao exército, e porque eu sou órfão, e porque ainda não chegou a guerra. É que me absolvo. E vou.

1.11.11

desde a realidade
as cartas chegam
trazem promessas de futuro
e condutas del buen vivir
sacerdotisa sobre a mesa
correspondente que não chega

*

desde a realidade
as cartas chegam
bolsas de correspondência
furtadas do trem
pagador, encontraram-nas
anos luz depois no
covil dos ladrões
que choravam feito crianças sem mãe
lendo as saudades dos outros

*

desde a realidade
que cartas chegam?
os presídios entupidos na margem
da autopista. gente que não sabe escrever,
eu alfabetizado e mal posso, vão
encontrar uma síndrome
viral no mundo
desenvolvido: e apenas as pessoas forte
poderão dizer

*

desde a realidade
a greve dos correios
uma mesa armada desarma o futuro
não traz notícia dos bombardeios

*

30.10.11

longitude

viajamos, neste dia, para a distante e finda hungria
o mundo roda de acordo com a posição de cada um
há sete mil anos povos nômades na mongólia criaram o grifo
de susto ao ver fósseis que não tinham outro motivo
ficam expostos no deserto, depois tornam-se hunos
e de tanto tropeço acaba-se vindo à argentina
esta selvageria mais europeia do que a europa
todos temos um núcleo que nos une
inúteis povos ao largo mundo
corações e pele e a mesma classificação binomial de lineu
os japoneses de variados traços, a vida africana
de todos os tempos

29.10.11

questão de método

fogo de palha / e no impulso / depois o carrinho perdia / a fricção explosão / morria caído da mesa / eu e meu mano brincava de luta / hoje mal nos falamos / eu tinha muito impulso e fui pra longe / agora caí da mesa

28.10.11

o escritor fracassado, desventuras

vemos o futuro / começa a falar de si mesmo na terceira pessoa / assim consegue / este é um experimento de transfundamentação das vontades basais da essência que foge / curiosos assistem ao globo da morte / laboratório dos ratinhos um zoológico / outro dia houve um búfalo / pontadas no fundo da barriga acesa / a alma escura pior que a barriga / dá uma volta em chamas / se extingue o fim ato / até antes / nos meus afazeres cotidianos, volto minha vida de homem, meus sapatos / o mundo faz as vezes de gravata / sufoca o mundo / já não sabia o que era e então volta a si / cansado demais pra dizer "me" / a terceira pessoa é uma nave / ets que me abduzam / não vejo o futuro / futuro, não o vejo

27.10.11

entrevistas que gostaríamos de ver

ninguém: é possível escrever fora do mercado? escritor fracassado: ontem eu tentei pegar a essência das coisas e não consegui, não consigo escrever, o escritor entra no mercado, compra uma lata de atum, se tanto, os adjetivos não cabem no orçamento, ninguém: a atual conjuntura do mercado editorial brasileiro não existe espaço para a experimentação escritor fracassado: toda arte é de vanguarda o dinheiro é sujo aprendi a não ter família a menos para a culpa a isso sirva, qual era a pergunta? ninguém: conte-nos a respeito do seu último livro escritor fracassado: não houve livro porque livro é um acontecimento táctil, mas o computador é táctil, eu deixei de ser, vim morrer num país outro e não morri, estou sem páginas ninguém: quais são suas principais influências escritor fracassado o sucesso, a tristeza, a sobrevivência, a alegria é a prova dos nove, o futuro, o não sei, o ninguém conte-nos a respeito dos seus futuros projetos escritor fracassado eu falo de meu túmulo / não tenho projeto, ontem tentei pegar a essência das coisas e não consegui, preciso almoçar, não caibo no meu orçamento ninguém e o que é a escrita pra você eu só quero que me amem, não se preocupe em entender, isto, senhora, é um quadro, não uma mulher, comprei um caderno, não tenho dinheiro pro atum, (mas as coisas não têm essência?), o entretenimento, ler histórias é um jeito de deixar de existir, the horror, the horror, os verdadeiros lugares não estão no mapa / qual era a pergunta? ninguém:

ai que saudades dos dinossauros

pense bem
há muitos milhões de anos
um bichos gigantes meio lagartos
sangue quente e sobrevivência
sem cartões de crédito nem piedade cristã
sem a história da china
os chineses são o povo mais antigo do planeta
talvez tenham vindo de outro planeta
ou quando este evoluiu aqui ficaram
de civilizações pós-dinossauros
todavia os dinossauros
recentemente atlântida
suas pirêmides de kripton
a perfeição destruída
por algo exógeno
igual os dinossauros

nostalgia da infância é uma bobagem
ou a infância é o fóssil de nós mesmos
a gente adulto nomeia e petrifica
esse bicho grande e desconhecido que fomos

cientistas encontraram
numa cova a noruega
fósseis amontoados sem
distinção de morte
causada ou que os arrastassem
pra aí os amigos em
luto família

era (após inúmeras
investigações) a primeira
vala de suicidas
encontrada o mezosoico

a vida nunca foi fácil

a gente se assombra
com o afeto e as angústias
de quem não é a gente

e com os dinossauros foi assim

fim

23.10.11

aprendizado pela fruta

aconteceu exatamente
agora o sol entrando
escorpião fui comer
uma maçã tão dura e
doce mas no centro
estava podre abocanhei
antes das bordas

antes pensava "hum que delícia de maçã" e "há tempos não como tão doce" e "há tempos não sinto minhas gengivas" e "dura assim faz bem pra mastigação"

depois, não bastasse todo o simbolismo manjado
vi que dava pra comer quase tudo
e deixar o centro podre para o lixo

(escondo de mim: deixei alguma carne doce intacta
com medo de morder demais e acabar pegando o gosto ruim
à beira dente)
não obstante / a iminente crise energética / dormiu com a luz acesa / na alma

era um bruxuleantezinho / nada que fizesse um vizinho reclamar / muito menos equipes de televisão / que no caso de grande claridade pelos prédios da noite passariam com suas câmeras filmando registrando / o descaso da cidadania

a alma parece apagada / pois dentro dela há uma estepe / larga na noite da mongólia / perdida nela há uma cabana

dentro da cabana, um quarto escuro / e sob os cobertores, o celular aceso. é o suficiente para que a menina não durma. porque ela está conectada com o mundo.

o mundo é um lugar demais de atraente. por isso que a alma conserva o facebook, mesmo quando a gente dorme. porque o mundo necessita de nós para ser atraente para alguém.

invariavelmente, chegou a guerra. há mais de um século o brasil conserva paz com seus vizinhos. recentemente, o ex-presidente uruguaio declarou que há cerca de dez anos cogitou uma guerra com a argentina, para a qual chegou a pedir ajuda dos estados unidos. muito embora se me dessem um mapa livre de fronteira eu não tivesse a menor ideia de onde fica a líbia (mas veria os desertos, as cordilheiras e as fossas abissais do pacífico), o que ocorre na líbia me preocupa um pouquinho.

hordas de selvagens e helicópteros devastam as vazias estepes da mongólia, bombardeiam os celulares e deletam os perfis do facebook.

mas a alma, por sorte / e persistência / não é uma estepe. ela é um bichinho, pode ser uma chinchila. que hiberna na toca. a toca não é o corpo. a toca é a alma da alma. e o corpo é a mongólia.

os nomes te dão uma outra insônia. há algo que nunca dorme.

22.10.11

autobiografia

para quem não vivesse mais que aquilo. Seria fácil: era outono e contemplar. Depois a saída à rua, ter problemas no banco, resolvê-los. Logo viria primavera, ou antes inverno?, encontros com a morte, apaixonar-se, dias insossos. Ser contratadx, ser demitidx, ser contratadx de novo. Um dia / não: pois seria uma vida sem "um dia". Era agora e daqui a pouco. Olha, nos meus planos ninguém toca. Não, mesmo que fosse mais mansx. Olha em volta, faz um esforço. Vai pro espelho. Ali encontra olhos / que suspeitos esses olhos! Seria tão mais fácil! Acordar, dormir. A coisa tão própria nela mesma que qualquer palavra daria conta. Não quero o fácil. (Esconde-se atrás da porta com um machado. Espera que o espelho venha. Vocês são muito cruéis. Quinze crianças (eu contei!) passam pulando xingando o nada e sendo indiferentes pra única coisa que está aqui. Com isso dizem: que eu sou nada. nem posso contra esse atestado. as crianças / querem querem me matar. Não morro de ter muitas vidas. Querida mãe, minha mãe chega contra a carta, por isso não escrevo. Quem, quem, quem, quem. (Outro dia quis que meu nome fosse quem. Depois um nome caiu. Deus acendeu as luzes da casa de uma vez, foi para me assustar. Como Deus não existe, as luzes permaneceram apagadas. Estão brincando comigo0.) Um homem entra no meu quintal à noite e se prostra debaixo da janela. Fica imitando sons de grilo. Cri-cri, cri-cri, cri-cri. Depois que o pedro morreu, eu morri e continuei vivx. Ninguém nunca acredita. Cri-cri. Pelo amor de deus, eu não tenho paz. Uma história pra contar. fui na fábrica e disseram segunda venha. mas se não souber trabalhar ai. fui. depois a creche não tinha gente. vou te contar: não lembro de ter engravidado. oi? é, logo à direita. depois passa as noites com medo da morte. Querida morte, quero lhe pedir com humildade que venha. Não tem festim. Se você vier e me perguntar, direi que não. Saiba que será um sim. Todo o meu corpo é sim. E a minha alma é quem. Por isso não temos escolha. Me escolha. Por dentro daqui me olham. Guardo as coisas pelo corpo. Redes de televisão anunciam que encontraram centenas de objeto após a cirurgia. Depois eu tive um neto. Meu neto sou eu mesmo. Não posso mais parir. Um exército correu atrás de mim. Meu neto me salvou assim: não existindo. Ah que emoção, viu, vou te contar: não existimos e tudo dá mais certo. A vida fácil que soubesse. Comer o corpo, beber a palavra do Senhor. Lâmpada para os meus pés, Luz para o meu caminho. Pai, mas ilumina a minha cabeça! Pai, e o peito, pai? Mamilos tesos, desça pelos caminhos e ilumina os meios. Eu sou a noite e a noite se arrasta para longe o chão se move, dia, dia a terra grita e a luz me silencia. Pai. Todos os cachorros. Deixaram a cidade. Pularam no rio da Prata. Amanhecemos inundados de cadáveres. Por dentro daqui me olham. Depois veio a família e soube tudo. Depois todos se acertaram: espanaram a casa, repartiram a mesa de centro, os móveis usados, meus bichos de pelúcia jogaram no lixo. Desculpe o clichê. A vida é um clichê. Pai, pai. Por quê? O anjo desce e me tira da palavra a boca a vida. Diz não diga mais vida e eu digo (...) não posso dizer. Querido anjo, s'il vous plait, porque na escola me ensinaram francês, só assim o anjo vem. E depois... e depois... Tive lutas estafantes. Deu tudo certo, não te disse?

O vulcão escapa além fronteira.
A terra é lava. O céu é cordilheira

20.10.11

todos buscan lo mismo

igual o
amor que tua
mãe te


eu que
tenho
mãe sei

até
vc querer
negar

ser tanto
assim amadx
por alguém

todos
buscan lo
mismo
pero no
todos
lo encuentran

um ú
tero cativo
da vontade

ou falta
que sufoca
marcha lenta

meu deus!

iba
a escribir
tengo
un cuerpo pero
pensé
soy
un cuerpo me
corregí y
ahora
no sé
si
tengo o
soy o
si

autopaleontólogo

o fim da adolescência / e a fuga do futuro que me esperava / me deram, entre outras condições de vida / a insegurança econômica e uma língua estrangeira / de repente conheço muitas pessoas de bogotá / e não tenho perto de mim minha própria avó / que está viva, todxs estamos

também / aí já pode ser um defeito de fabricação / uma iminência de fatalidade / da qual estaria bom, para fins recreativos / e de saúde / fazer a genealogia / como quem escava para encontrar / uma ossada certa e desconhecida

(comprei flores feias e mal-cheirosas / que não só morreram no primeiro dia / como podiam ter sido gastas em leite / ou em balas, ou batatas / não me arrependo de ter gastado o dinheiro assim / embora veja agora-as sobre a mesa / e quase mortas não tenha coragem / de jogar fora)

(a cozinha volta a estar cheia de baratas / e amanhã compraremos veneno / eu próprio, se vejo, em raiva esmago, / sou mais forte)

(mas não quero / não quero / viver num mundo em que morram flores / e baratas / como se nada)

18.10.11

a desgraça da vida

nem tudo é tão mal que não
possa piorar

especialistas anunciaram que as
árvores também estavam
desenvolvendo uma espécie de
esquizofrenia

na frente de
casa sempre houve uma
que dava ao mesmo
tempo laranjas e
limões minha mãe chamava
híbrida

que nada,
descobriu-se

e suas folhas que caíam
e suas raízes incrivelmente
concêntricas, biólogos políticos
e médicos disseram: as árvores estão
esquizofrênicas

eu / que passei o dia
fazendo currículo em língua
estrangeira / leio a notícia um pouco
desconfiado

meu estado clínico
é a classe média
e a crítica materialista

cansadas de serem forçadas a tomar
remédios e têmporas queimadas de
eletrochoques, as árvores nos deixam
com nossos medicamentos e um dia se vão
para muito longe

há um mundo triste
sem as árvores

essa fuga prova que os
biólogos médicos políticos estavam
certos

a desgraça da vida é estarmos certos

15.10.11

noticiário

depois de muitos combates
uma professora de matemática do sul da frança
ateou fogo no próprio corpo
em represália aos alunos que a atazanavam

vejo o noticiário tomando
mate e tento entender os movimentos que o planeta
faz. a desgraça da vida
em certo sentido são os noticiários

pois que há mais informação numa
edição de domingo do new york times do que
a que uma pessoa recebia durante um ano inteiro
na irlanda no século dezesseis, assim
eu li certa vez

esse excesso causa um embotamento
quero dizer se você se depara o tempo todo com
crimes insolúveis que ocorrem a todo momento
sem dizer da crueldade tipo a estudante
no piauí que morreu e a polícia alega
suicídio enquanto todos sabem tratar-se de queima
de arquivo

depois de muitos combates, o anjo
pra não ser vencido
fez com que o homem dormisse um sono injusto
servisse de colchão um banco duro

tão logo o homem
acordasse reiniciaria aquele duro
combate de vozes contra a
igreja na praça os transeuntes

o anjo, então, com a
misericórdia do senhor
manda outros homens quando é
noite e ateiam
fogo ao combatente
escuro, agora um ponto
luminoso no nosso
esquecimento

ó pai todo
poderoso amém

e o homem não foi para o céu
foi colocado numa vala comum

aqui há um ditado que
diz el árbol
no te deja ver al
bosque talvez haja
também el bosque
no te deja ver al
árbol

***

POEMA DA PURIFICAÇÃO

Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.

As águas ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.

Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.

(Drummond)

13.10.11

acordei pensando em geopolítica

acho que o
japão após as
bombas ficou em
tal estado
catatônico
que não pôde
retomar uma unidade que não se embasasse no
medo

proibido de ter um
próprio exército e armas de
defesa e subordinado às
regras políticas e econômicas
estadunidenses - país que
até hoje conserva bases
lá como em toda
parte - os japoneses
figuram ao menos no meu
imaginário como um povo
de suicídio raivoso e
resignado

yukio
mishima, que admiro como
escritor e como personagem,
tentou um golpe de estado que
restituísse ao país um ethos
pré-colonial. vaiado pelas
tropas confortadas pela estabilidade
momentânea, mishima se suicidou
com um rito ancestral.

não penso com isso que
haja uma saída para os
problemas do planeta, digo,
a própria espécie humana
o que faz é racionalizar a destruição
inerente à toda sobrevida,
o deus dos mortos vivo em cada
semente, e essa racionalização só o que logra
é nos tornar mais eficazes, cruéis com o que
destruímos, e sofredores por essa mesma capacidade,
é o que me parece.

mas acordei pensando nisso
do japão por encontrar aí alguma
analogia com uma dificuldade muito
minha, imagino também seja de
todxs, que é a de ter atenção para as
coisas que realmente importam, sem
ter que se importar, a todo
momento, com a gênese da inominável
bomba

12.10.11

se escrever sal
vasse eu não em
primeiro lugar esta
ria aqui

mas é que na
da salva?
nem jesus.

um telefone acorda
a casa madrugada porque
a guarda do município encontrou
vovó vagando no passado
senil de juventude pelas
ruas

no dia seguinte a gente acorda sabendo
pela consciência histórica e anos de instrução
escolar que há mais de quinhentos
anos chegavam os europeus ao continente
por causa deles é que hoje
eu amo quem eu amo
sobrenomes latinos, asiáticos, germânicos
mas a custo de quê? a custo de tanto.

logo tenho que começar a trabalhar.
uma mulher falou feliz "DINHEIRO
É BOM!" e a lia respondeu "dinheiro
é bom no sistema capitalista", a mulher
não ficou nem ofendida, tal o nosso rabo
no sistema capitalista

penso que se vivêssemos em
outras tradições minha
avozinha vagaria na flor-
esta que abraça a nossa
vila. ou queimaríamos
ela em vez das florestas
acusada bruxa do inútil
esquecimento. se minha
avó soubesse ler eu dedicava
tudo o que escrevo a ela.

o tempo está acabando.

perdi a conta dos dias
em que acordei sozinho na
casa precisando
trabalhar e não o fiz.
em vez disso preferi
vagar sem rumo
pelo pouco que me
resta de palavras só
à distância cooptadas pelo
capital. é uma espécie de
loucura, embora tímida, da qual
não tenho abrido mão, menos
agora com minha vó tão longe.
se é a única coisa que a gente
pode viver junto, por que
não?

(ando bem sem metafísica.
por isso não consigo escrever.
e desatento pela enxaqueca e pelo
sistema bancário.)

10.10.11

tristeza

a tristeza esse
gatuno que
assalta a comitiva
real
deixa o
clero sem as
calças
ata todos
a uma
árvore
logo
no
covil
enterra
o
resultado

emite-se
um decreto que
se encontre essa
tristeza não
descansem ó meus
súditos se não
acharem tal
raposa

procurada
morta em
cinco
continentes
kgb
pide
interpol
a tristeza logra
sempre escapar

e assalta
quando menos se espera
o mesmo rei
o mesmo xá
o mesmo czar

o império britânico
solta suas pólvoras contra
um bilhão de indianos

a tristeza vai lá e afunda o barco britânico

vem uma contraofensiva da rainha
e o império afunda as ilhas malvinas

a tristeza dá risada,
levanta a saia da rainha...

ninguém pode prever
jesus disse que como tal ia voltar
no meio da noite, ninguém o esperasse

ilmo. sr. jesus,
eu não te espero.

a tristeza deixará bíblias esquecidas no sofá
eu vou renegar a civilização ocidental
mas não há guerrilha de emboscada contra a infância protestante

você toma um sorvete numa tarde quente
e súbito lembra que vive em pecado
o sorvete fica mais doce e delicado
mas dentro do estômago os ácidos cantam hinos
que ninguém mais ouve

que indigestos esses louvores

a tristeza admite
que o apocalipse é jogo duro
e é carnaval o ano inteiro

devo estar ruim das minhas ideias
tomei muito sol do brasil na cabeça
não sei se no bloco pula a tristeza
fantasiada de alegria, ou se pula a alegria
fantasiada de tristeza

ou se as duas são irmãs gêmeas
que me dão boa noite cinderela
depois de gozarem me deixam dormido
roubam meu ouro e me amarram
à margem da passarela
eu quase morri
todo dia
porque penso muito nisso
mas nunca passei
situação extrema
que me desse motivo

talvez seja um jeito de compensação universal
uma úlcera ninada na minha vida mansa
nenhuma coincidência se a caminho do aeroporto
a autopista cruza um tal rio chamado matanza

ou um demiurgo me prepara
na lembrança do futuro
pro que nunca escreverei

minha família vinda em estepes
desde o paleolítico para este continente
estilhaços de uma coisa una
que por forças inescrutáveis se
juntam

eu, estilhaço
também, vago
movimento

até me juntar um dia
(exatamente agora)
àquilo a que eu vinha

5.10.11

love

após o acidente nuclear em fukushima, foram feitos estudos e já se tem: um ovo amarelo no qual os japoneses podem entrar, um por vez, e que os leva flutuando no oceano até paragens novas e não radiativas

cabe em cada arca suprimento e uma revista, um livro desde que não muito grosso, ou talvez vários, a depender, as arcas não são grandes, mas pros meses que te esperam uma epopeia tem gente que prefere, ler "os lusíadas" enquanto não se afoga, nem imagino traduzido pro japonês

a terra deixou náufragos e à deriva
128 milhões de japoneses
boiando em ovos amarelos
pelos oceanos dos cinco continentes

no havaí uma menina
encontra uma dessas cápsulas

em cada praia do mundo,
Deus, todo-poderoso,
dá de presente às crianças comportadas
um japonês para brincar

meu amigo japonês
de fala grave e entrecortada
conta histórias navegadas
numa língua que eu não entendo

esboçamos, em todo lado,
caracteres intraduzíveis
eu desenho um coração na areia
mas esse japonês, sei lá por que, não entende o desenho do coração

olho pra areia mais uma vez e vejo que não desenhei coração algum
equivocado com um galho e a melhor das intenções
fiz só rabiscos, o que na minha vista parecia um coração

vou ao hospital e descubro que tenho uma rara doença neurológica
que afeta a coordenação do que produzo com o que vejo do que produzo
é tipo uma esquizofrenia aplicada aos traços
eu era um cartunista muito famoso no país
fiz sucesso com uma série de tiras sobre meu amigo japonês
agora entro em depressão, não consigo mais desenhar
o japonês me faz sushis, é seu jeito de fazer carinho
como os sushis e depois que não morro de depressão nem de intoxicação alimentar pego no pincel e inicio uma série de pinturas abstratas
que para mim não são nada abstratas
a crítica ignora
(eu ainda não sei disso, mas vou ter muito sucesso póstumo)
começo a trabalhar numa banca de jornais
o japonês arranjou emprego carregando peixes no mercado
ainda não fala um "a" da nossa língua
e eu, estranhamente, não consigo falar um "a" em japonês

certas desconfianças a respeito disso
(não sei se estou ficando louco, mas penso em alienígenas)
de todo modo, o que acontece é que decido começar uma nova série de pinturas
dedicadas ao meu amigo incomunicável

desenho corações e mais corações
ninguém no mundo reconhece nenhum deles
penso em intitular a série com o nome da minha doença
mas desisto, acho deprê, e chamo ela de
"love"

descubro que sou um paquistanês que vive na irlanda
(esta casa já tinha espelhos antes?
cada coisa que a gente descobre por acaso...)

acordo um dia e vejo tudo amarelo
sinto um baque, ouço um zíper
uma menina me achou na praia no havaí
sou um japonês naufragado, meu deus!
(qual o deus dos japoneses?)

ops, voltei da história.
não era um sonho, mas também não era verdade.
onde eu estava?
ah, é:
aqui.

o aprendizado pelo passarinho

um passarinho na antena

pega sinais de todo planeta

assobia o hino nacional

depois narra um jogo de futebol

um passarinho distraído na antena

nem sabe quem canta o seu tema

saber não tem a ver com distração

seja você sabiá, avestruz ou andorinhão

um passarinho concentrado na antena

sabe os sons de todo o planeta

e tenta cantar todas as notas válidas

fica com nó nas cordas vocálicas

um passarinho pousado na antena

descansa do voo, esconde suas penas

recolhidas junto ao peito de passarinho

elas aquecem seu mudo coraçãozinho

depois por cãibra, calafrio ou comida

sai voando de novo na vida

um passarinho distante na antena

(eu escrevo, para que não me esqueça)

um dia cai pra sempre do ar

e, enquanto não cai, tem sorte ou azar

engole minhocas e caga nos carros

tem vermes e pulgas e outros bichos bizarros

e canta bastante - alto, bonito -

o canto da espécie - por isso eterno e finito -

o passarinho permanece na antena

e as coisas permanecem na mesma

mas / de repente ele voa, vai embora

só resta a antena, relevo no azul

o metal e o concreto que demoram

e um poema de passarinho, escrito em azul

4.10.11

diário. direção

parece que o impacto ambiental de um cadáver
se decompondo sob a terra é muito maior do que
no caso de cremarem-se os restos do ente
querido, talvez indesejado, o fato é
que todos temos nossas tripas e depois

comecei esse raciocínio achando que ia
concluí-lo embora sem bem saber por
onde. me veio um desejo de falar da morte.
mas também tenho um desejo de falar de
flores, e de falar das escadas que tem
aqui em casa.

mas o que ia dizer, enfim, do impacto
ambiental que as formas de sepultamento cristãs
e de outras culturas corroboram
devolver à terra os corpos que pregam saíram
dela, é que as cinzas são bem mais higiênicas
e há rins, mucosas, deus, toda essa delicadeza
virando verme ou luz acesa.

[espirro. frio na cidade]

[esta inconsequência não vai levar a nenhuma parte]

28.9.11

coleta o movimento

as árvores passadas pelo
vento te ofertam essa
busca, você brusca
queda de uma folha ao
alto, tragada pelo
vento

coleta o mar que encolhe
as pistas de outras
ilhas, raízes
flutuantes com roedores em
exílio

coleta
então as
vozes, e abarca o que o
bar cobre: um silêncio igual
ao teu, só que esquecido
pela pressa

e enquanto rasteja e voa e
a onda te traz e te leva,
exerce teu único instinto -
e coleta

histórias que eu tenho preguiça de escrever

uma campainha que nunca deixa de tocar

os talentos obscuros

deus deu para cada um um talento. O problema é que às vezes ele não é tão evidente. Em italiano eu escutei uma vez uma expressão, pollice nera, o dedo negro, diz-se da pessoa que toca as plantas e elas morrem, não pode criar.

...

Andava com uma nuvem negra sobre a cabeça. E onde chegava fazia sombra. Fotos da maternidade mostram o vapor denso saindo da vagina, esse prenúncio do bebê assustaria cientistas, caso único no mundo. Logo a criança enrugada e mal destino. Ou nem tanto? Tentou fugir de casa muitas vezes, o pai ralhava sem sossego, a nuvem sujava as paredes e ficava na frente da televisão. Nunca teve sucesso em se esconder justamente /. Começou a trabalhar na praia da cidade onde morava, temporadas de verão. Protegia banhistas do sol intenso do Nordeste.

Um dia, inadvertida, a nuvem choveu. E tardou meses nessa água, que estava tão acumulada. Os noticiários faziam fila pra filmar a esquisitice. Choveu choveu choveu. Conseguiu um patrocínio de uma empresa que vendia capas de chuva. Com isso, podia se alimentar bem e pagar outras miudezas, um sorvete que tomava ensopadx, remendando a alegria.

Acordou uma manhã sem nada em cima. Nem água nem negrume. O sol, que só conhecia por reflexo, magoou-lhe a vista quase com um buraco na retina. E viveu assim pra sempre, até morrer.

...

...

Não é que não soubesse nenhum idioma. Não se trata de uma deficiência cerebral nem nada do gênero. Como dizer? Que elx não dizia. Aprendia palavras avulsas, às vezes conectava uma à outra e até sabia dizer, mas todas as línguas lhe eram estrangeiras. Todas? As que teimaram que aprendesse. "Alguma vai sair", o pediatra garantiu aos pais angustiados. Aos doze anos, sabia falar "mamãe" em português, chinês, russo, catalão, quechua... E qual o problema? Sempre com dificuldade. Sempre tendo que lembrar, antes, como se dizia. E à mãe lhe doía não ser chamada diretamente do coração da sua cria. Me faço entender? Não tinha língua materna.

...

...

Sentia cheiro de cocô nas coisas. E cada vez era como se fosse a primeira vez. Um estranhamento. E não era dessas pessoas que gostam do cheiro de cocô. Não. Não gostava. Peregrinou de médico em médico buscando uma cirurgia que lhe cortasse o olfato, mas ninguém quis assinar os papéis porque era arriscado. Ninguém queria arriscar.

Ganhou esse talento um dia, no começo da primavera. Ia andando pela rua, tropeçou, caiu e bateu o nariz.

Havia uma raça de gente que não tinha nariz. Esta é outra história. Mas não vou contar agora, pra não fugir do tema.

...

...

Caía. Esse era seu talento, cair. Depois se levantava. Eis outro jeito de contar a história: esse era seu talento. Levantar-se.

26.9.11

o projeto inglório

serraram metais, recicláveis. Com a água mofada disseram que nunca seria possível. Mas os homens da ciência, protegidos pelos ossos, deram ao fim nome um construto: árvore. Criamos a vida em células vegetais a partir de matéria inerte.

***

acreditaram entender as engrenagens. "Você solda aqui", pro aprendiz, "depois eu te ensino a drenar". Meu coração tinha se desintegrado na ação dos pequenos bichos, foi sempre só um músculo, e muitos anos depois. Usam um fêmur pra se defender. "E não só a nós", professor, bestial, "mas a nossa cultura". Nas pontas um verde autófago. Escreve com o pedaço de carvão: "A U T Ó F A G O". Numa língua que nunca mais será a portuguesa. Não sei que mais dizer dessa gente.

***

Os outros, sem árvore, vêm querem o conhecimento. Medrosas hienas. A gente expõe seus crânios conservados em jarros de vidro nos muros do Instituto. Eles temem e planejam.

***

Temos que registrar (um diz) sem palavras alvoroçadas. "Alvoroço" já causa comoção. Os demais se entreolham. "Entreolham" causa começão. Veem diminuídos a árvore, sábia no seu silêncio, metálica e viva. Nós nunca chegaremos (outro pondera, mas não diz) ao fundo coração dos homens. Há homens e mulheres. Nenhum deles se encontra nesta língua em que eu escrevo. "Eu" causa (já repito) comoção.

Urge inventar um silêncio que diga. Ou toda a história das civilizações se repete. Soldam-lhe os braços junto ao corpo, fazem as folhas brotarem na copa. Não sobra registro das pirâmides. Fazem-se um bosque deles mesmos. A planta: nossa última fronteira.

***

Estéril menos o teu rosto. Ser assim pessoal e taquigráfico não importa. Olhos molhados e fundos, escuros, as pessoas se calaram porque não sabiam te dizer, e agora falam e falam e falam. Entrava num trem sem anúncio de direção, país cortado por trilhos, dormentes.

***

O tempo enfim chegou também pra aquelas cabeças conservadas rumo ao medo. É deserto e deserta o que se adianta. Tudo, TUDO afeta. Extermínio das raças futuras. Que este dia seja bom.

22.9.11

a alma da galinha

na rússia, um homem de 21 anos conheceu outro de 32 por um site de relacionamentos homossexuais, chamou-o para sua casa, matou-o talvez com veneno, então fatiou seu corpo e fabricou hambúrgueres, salsichas e croquetes da carne, com os quais se alimentou por uma semana.

Prezada senhora,

vimos informar por meio desta que seu filho, ao tentar manter relações homossexuais com outro homem, foi morto e seu corpo foi usado para a confecção de hambúrgueres, salsichas e croquetes, com os quais o outro homossexual se alimentou por uma semana. Lamentamos sua perda e lhe pedimos que venha à delegacia assim que possível para que possamos dar o devido andamento ao caso.

Sem mais,

Cordialmente,

Polícia Russa.

ontem, coincidentemente, eu comprei um frango inteiro e destrocei-o pensando que aquele era um animal morto e que me daria comida por aproximadamente uma semana. cortei o peito em quatro filés grossos, guardei moelas e demais miúdos num saquinho, separei as coxas, as asas, com o que restou ontem mesmo fiz uma canja que foi muito elogiada. quebrava os ossos e metia os dedos na carne do bicho pensando se deveria agradecer à alma da galinha / ou talvez eu devesse apenas dizer: te respeito muito. comi sem qualquer sentimento cristão além da voracidade e do senso de justiça. ao fim, pensei que eu e a galinha somos inconciliáveis e que a única consequência metafísica desse meu ato pode ser acumular carma ruim.

reencarnaremos mil vezes frango, insones nos campos de concentração que são as granjas, inflados de hormônios, e alimentaremos pessoas que não apreciam carne humana.

21.9.11

se eu morrer atingido por satélite

a nasa anuncia que perdeu controle de um grande satélite
que desfacelado em 26 enormes pedaços cairá
em partes da terra com chances remotas de atingir seres humanos
que trabalhem ou sejam parentes dos engenheiros da nasa

vai ter piada se cair na minha cabeça, após sair
do curso de astrologia, atravessando a calle estados
unidos

***

chegamos ao tempo em que sofrem as órbitas
colapsos da previsão de funcionamento, engenheiros
falhos como astrólogos

os planetas, mal dimensionados, também caem
seus diâmetros que não conhecíamos senão por lendas
da astronomia dos norte-americanos
se despedaçam e atingem
troços de vênus resfriados no mar e os
estranhos sinais em anéis do planeta
saturno alocados nas florestas de pinheiros
do canadá

o próprio planeta terra
explode ao entrar na atmosfera
sete bilhões de pessoas
dispersam no espaço igual
quinquilhões de peixes, trilhões de
macacos

na infância
protestante em que eu lia
o apocalipse prometido o
sofrimento "buscareis
a morte e não a encontrareis" eu
não imaginava tantos fins
possíveis para um mundo que
insiste em não acabar

minha pressa é
como a do satélite
cada hora de movimento
são milhares de quilômetros do
nosso

mas minha pressa é ao
contrário

20.9.11

apesar das evidentes qualidades do trabalho

já começo a receber as respostas - negativas - das editoras para o livro que escrevi. a expectativa - ainda que desconfiada - quando se frustra dá uma tristeza. olho em volta. meu companheiro de casa me deu um resto de tabule pra comer. como também bolachas e margarina. e há um resto de café frio no bule, não vou requentar.

hoje recebi meus primeiros pesos argentinos por um trabalho feito aqui, desde que cheguei. foi algo como vinte reais, pagos por uma hora de aula. gastei metade disso num almoço agradável com o meu aluno. voltei para casa, fiz café.

...

de verdade: não sei o que pensar sobre isso. me fere e me acalenta o ego, por um lado, que não me queiram; por outro, que eu não agrade ao que não me agrada. parece, ao fim e ao cabo, uma troca justa, com quantos macacos se faz um galho. conseguir um emprego e ser bem quisto por lá também me deixa arisco. fiquei triste quando passei no vestibular porque essas coisas não me dão uma alegria pura - como, por exemplo, ver um gato sobre a mesa. que um gato me queira, me alegro. mas o resto também existe. ou posso viver só de gatos?

...

outro de quem lembrei ontem, mas não pus no texto, kawabata se matou já velho, tendo recebido um nobel. o dinheiro dinamitado dos suecos, a culpa ao mundo. aquele ano seria um japonês e mishima era - senão o preferido - ao menos o mais evidente. mishima se matou, também, mas de outro modo. kawabata acho que foi com veneno, não me lembro.

...

olho para a página cheia de anotações, meu exercício intelectual de viver. amanhã irei à repartição burocrática para legalizar minha residência no país. tenho que preparar aulas, também, e buscar ganhar mais e mais dinheiro, para pagar as contas, para continuar escrevendo.

o tempo é um saco sem fundo.

19.9.11

e procuro uma síntese nas demoras

a cada rancor ou afeto lembrado, ela logo agarrava um bloco de papel qualquer, sempre tinha algum consigo, e vários espalhados pela casa, e escrevia em vertigem de vontade: "Fulanx, blablablablablabla...". Se era ódio, dizia todas as razões. Se era carinho, afagava com palavras lindas, prometia seu corpo inteiro em troca. Ao final da carta, um pouco antes de escrever com todas as letras, ou com uma só, o seu nome, já havia voltado àquele ponto anterior à lembrança. Um ponto em que estamos quase sempre sem perceber. Em que, se você para de olhar ao redor e tenta ver dentro de si, só encontra dois quartos vazios, cinza, com uma luz frouxa e neutra entrando da janela.

Mas eu preciso parar com essa mania. Então se precavê: leva sempre igualmente envelope e o caderno de endereços. Mal termina, mete a carta dentro, fecha. Leva selos. Sela. Escreve o nome da pessoa e pensa, como se soubesse, querendo saber, que aquela carta vai chegar. Pelas mãos de muitos funcionários dos Correios, que sairão da greve à força, as precárias condições trabalhistas existem para que eu escreva e seja lida e então lembrada, e talvez até retribuída em louvor ou em raiva.

Ninguém existe sozinho. A reportagem uma vez encontrou um soldado do Japão que ficou muitas décadas escondido numa floresta pensando que ainda havia guerra. A última notícia que ele tinha visto era das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Quando lhe contaram que havia paz, ele quis que ninguém nunca o tivesse descoberto naquele esconderijo e que a guerra tivesse continuado e que aquelas pessoas morressem junto com as bombas. A guerra não é justa. A paz tampouco. E na floresta pelo menos ele podia viver feito um fantasma, apartado dos mortos que perambulam por aí.

Ela, também, de certo modo é um fantasma. Depois, nunca lembra de sair com as cartas, e mesmo às vezes não as quer enviar por medo ou por vergonha. Então acumula centenas de "Queridx,"'s pelos cômodos, embaixo da cama, uns põe em baú e outros deixa à vista como uma chantagem, pra que num corredor o encontro lhe diga: "você tem que ir até o final.

Agora / você tem que ir até o final. O futuro me cobra uma atitude. A dimensão prática da vida não pode ser descartada, não se pode fingir que não existe. Um dia chega a imprensa e devasta a sua floresta. Seus únicos parentes vivos são primos distantes e indiferentes. Sua família vivia em Hiroshima e Nagasaki e você não declarou guerra a ninguém. Mas é uma desgraça que a gente esteja vivo. O melhor mesmo é tirar o melhor proveito disso. E, quando for preciso, se esconder.

Ela é uma pessoa muito sozinha, você deve imaginar. Isso eu não sei. Vive sozinha, talvez. No sentido de que não mora com mais ninguém. Sua idade? Também não sei. Não é verossímil que seja jovem, certo? Uma solteirona, certo? Não existem mais solteironas hoje. E ninguém mais escreve cartas, hoje. Às vezes eu escrevo como se estivesse nos anos 1950 ou algo assim. Tem a ver com as referências literárias, claro. Mas - também, também - com que a pausa necessária não tem tempo. E da minha vida eu já estou farto. Ela é todo o resto que não for o que eu escrevo. Então não vou ficar andando em volta, feito cachorro atrás do próprio rabo.

Minha vida é isto aqui.

O que sei é que Mishima, numa grande inquietação com a quietude do Japão, tentou dar um golpe de estado, fracassou e, previsto um fracasso, suicidou-se e teve a cabeça decepada num ritual samurai.

A espada dela é uma caneta. Enviar estas cartas seria meu próprio haraquiri. Todos veriam que estou viva e que faço as mais diversas ideias a respeito de cada um. Mas se saio pro trabalho, e estou viva, ninguém vê nada?

***

O senhor Asuka, num descuido das autoridades, mesclou-se à cidade como antes camuflado na floresta, esguio escorreu até uma linha de trem e seguiu-a, quanto pôde, até estar tranquilo fora de alcance dos nomes e carimbos que o queriam. Foi dar num campo aberto, depois numa colina, por fim num bosque ladeado por vilas. Era o fim da floração das cerejeiras e o chão estava coberto de cores que se iam, mais um pouco transformadas em matéria morta e fértil. O senhor Asuka acomodou-se muito cansado embaixo de uma árvore e olhou para cima, para a copa nua que agora o protegia.

Mas o entorno me tira as forças. Já não tinha idade para fazer dessas. Quando o governo o encontrou, deu-lhe a idade que teria se desde o princípio tivesse conhecido que o período era de paz. Na selva, conservava o ímpeto de quem se entrincheira. Mas agora era um velho e não tinha uniforme.

O entorno me tira as forças. É uma ilusão pesada a que vivemos. Uma coluna de ar sobre a nossa cabeça se chama "atmosfera" e pesa. Vocês não aprenderam? A vida é guerra.

O velho, cada vez mais velho, de cansaço se desliga do passado e volta para o presente em que por muito tempo esteve. Preciso voltar e ver de novo aqueles dois quartos vazios. E ao olhar para eles o senhor Asuka vê / ele vê o inevitável: que florescem cerejeiras. O teu quarto, meu bem, é um jardim.

18.9.11

risca na própria pele o aleatório

o amor estava em volta dele. Feito um mar difuso, aéreo, sem fundo, correntes que levavam à sua borda o amor distante e concentravam-no à beira-pele em detrito. Poderia ser a história de Narciso tornado água: eu sou um lago que traga.

***

andam usando demais a palavra "amor", virou mate lavado e ela não sente o gosto. Mas tem um avassalo no dentro, uma vontade de morrer, viver, que precisa de palavra. É uma tatuadora e o estúdio é uma sobreloja, pequeno, do centro da cidade. Todo dia desenha estrela. Ninguém brilha, você sabe. Essa gente não entende! Risca na própria pele o aleatório: "coisa", escreve, e logo "verbo". Garrafa, verme, bucha, atento, vômito. Volta ao próprio corpo entre uma estrela e outra. Difícil que dispersando assim ela consiga alguma síntese. Acende o cigarro, olha o bico do peito, e pensa.

***

Resignada, Sara delega Raabe para que tenha um filho de Abraão. O menino cresce forte, mas um dia chegam anjos do Senhor e dizem a Sara que ela terá um filho, ela mesma. Estéril e já de idade avançada. Sara ri e os anjos a repreendem: por acaso Deus Nosso Senhor não pode tudo? Envergonhada, Sara sabe: por acaso Ele pode, sim. E fica grávida.

Depois, com o ciúme próprio das mulheres, embora o ciúme não seja particularmente próprio das mulheres, mas aqui nos chama a Bíblia a dizer que as mulheres são impuras e traiçoeiras e eu reitero o contexto apenas para evidenciá-lo, e também para garantir a primogenitura de seu filho Isaque, Sara expulsa Raabe e a envia para o deserto, com a graça de Deus, onde ela morreria de fome e sede junto a seu filho se a graça de Deus não fosse ela também traiçoeira e impura e não fizesse brotar, daquele seco monstro, um fio de água - e a continuação da espécie.

***

aleatório

havia uma viagem agendada

pegava outro gato e guardava

numa caixa grande feita pra isso, posta no mais fundo da construção

os bichos começavam a comer-se uns aos outros

eu agendo a viagem, guardo os gatos e me vou

*

os escorpiões, se passam fome, têm filhos pra comê-los

já uma barata chega a tal êxtase de sobrevivência que come-se a si mesma

faz assim:

come terra madeira repolho o que tiver

em não tendo come os filhos

em não tendo come as asas

(a minha cozinha está cheia de baratas

e eu acho que elas têm mais direito de estar ali do que eu)

*

li hoje uma entrevista que me fez pensar

se eu não deveria assumir o papel de escritor como uma função social de fato e de direito

e buscar deliberadamente uma renovação da tradição ou algo assim

o segundo suspiro desse pensamento me trouxe uma velha preguiça

olhei minhas asas: não tenho vocação pra ser barata

(hoje, por exemplo, trabalhei como um adulto)

*

ou: tenho vocação, mas depende da barata.

queria conseguir escrever uma história bem bonita.

queria inventar uma personagem agora. vou tentar:

era uma vez. a blusa estava pendurada no cabide. eu passei pelado do lado de fora daquela porta. tinha o cheiro dele no meu corpo e na blusa, mas nunca nos encontramos. um dia a blusa foi emprestada para um amigo dele que eu nunca conheceria. depois esse amigo devolveu a blusa. passaram-se anos. eu vim morar em buenos aires e quando me perguntam "por quê" é sempre terrível, porque não sei dizer. tenho uma cozinha cheia de baratas e hoje trabalhei como um adulto. mas aí eu comecei a escrever uma história qualquer e apareci como personagem. era o que faltava pra que o feitiço fosse quebrado: deixei a vida para entrar na história. "claro", pensei, "é óbvio que eu não tenho corpo", só tenho linhas e caracteres. e uma verossimilhança falha, meu verdadeiro talento. e era noite e eu deixei de existir exatamente no próximo ponto final, que vem: agora.

16.9.11

ontem estudamos o signo de escorpião

algumas espécies de águia, quando chegam aos quarenta anos de idade, têm a opção de viver por mais trinta anos
mais ou menos
caso se escondam numa caverna e aí
arranquem à força o próprio
bico, as garras e as penas,
esfregando-se nas pedras e
deixadas em pelo (carne e sangue)
a natureza faz crescer outra vez
torna novo o indispensável
e é aí que a águia começa a viver
de novo outra vida

*

também se diz que algumas
águias são os únicos pássaros que se matam

pois ficam muitos anos com o mesmo companheiro
de amor / e uma vez morto seu
amor elas voam até o mais alto.
lá chegando, em volta o céu, recolhem
as asas ao peito

e caem
em queda
na sua escolha
seu sofrimento

12.9.11

cachorro

a besta fera dos afetos

e inocente se olha perto: olhos aquosos de quem não tem mal. mas no cano não treme a decisão. a maldade fica nos nossos intestinos, nutre o resto do corpo, chega aos dedos do gatilho e ao cachorro. abana o rabo. tiro. o homem sai do bosque, entra no carro, o motorista fecha a porta, abre. guarda o revólver no gabinete e olha as fotos do rotweiller. sete anos e uma mordida. aos animais às vezes escapa a melhor maneira de demonstrar carinho. os outros cães uivam, saudade ignorante nos fundos da mansão. aquele, o preferido, foi deixado insepulto, feito os bichos sem / "afeto", repito. e guardo as fotos, magoado.
o corpo entrega um tempo

passasse a cidade inteira entre as minhas pernas. percebo que não tenho pernas para tanto.

fabrico outro corpo. me agiganto, seriado japonês. o obelisco da cidade, imaginem. fico cada vez maior.

se meu desejo seguisse, seria um monstro o país posto em perigo. aviões da OTAN vêm socorrer a população. nem te conto o que faria com os aviões da OTAN.

*

o desejo não tem idade, corpo ou método. Transita na calçada desmemoriado. Porque o destino é bom, e eu sou o destino, e quero ver o bicho pegar, entro com o desejo no primeiro cinema pornô que aparece.

Lá o desejo são todos os outros. Homens sem rosto sem borracha eles se roçam é quase aleatório. O desejo, por ser aleatório, escorre e pega no carpete.

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Agora o desejo é um barco. Que passa o rio da Prata / e não atraca. Inabitado entra no oceano. Os piratas, em terra, destroem a civilização de séculos. Pouco a pouco despem-se e voltam à orgia selvagem / de milênios.

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(perdi o contorno. quero escrever o personagem, mas meu corpo não deixa.)

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Era uma vez: o desejo. E tudo o que vemos em volta veio depois. Mas as folhas caem das árvores, o desejo é móvel, vai dos galhos ao chão que puxa e quer adubo. As árvores morrem e caem e isso é desejo do mole, do líquido que empapa a terra e era a árvore. O desejo chama todas as direções.

E também é um pássaro leve, esquivo na floresta.

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9.9.11

visceral

diz que o intestino delgado tem neurônios. Os chineses o chamam, desde muito antes dos neurônios, "o segundo cérebro".

rodeios

das imagens que não me saem da cabeça, e que eu não sei o que fazer com elas além de pensar em escrevê-las, porque me parece urgente que todo mundo saiba a respeito e aja de alguma forma (nem que seja escrevendo outra coisa, nem que seja preocupando-se com isso também)

eu era criança, talvez uns seis anos? e vi no jornal da televisão que num rodeio no interior de são paulo um homem branco e barrigudo de chapéu levou até o meio da arena um menino negro, magro, de uns oito anos. o menino estava nu e, posto de pé no chão, envergonhado cobria as vergonhas com as mãos, a vergonha não podia ser coberta, e chorava. e teve que ficar parado e exposto por intermináveis segundos, até que pôde sair correndo, a plateia se ovacionava a si mesma.