19.9.11

e procuro uma síntese nas demoras

a cada rancor ou afeto lembrado, ela logo agarrava um bloco de papel qualquer, sempre tinha algum consigo, e vários espalhados pela casa, e escrevia em vertigem de vontade: "Fulanx, blablablablablabla...". Se era ódio, dizia todas as razões. Se era carinho, afagava com palavras lindas, prometia seu corpo inteiro em troca. Ao final da carta, um pouco antes de escrever com todas as letras, ou com uma só, o seu nome, já havia voltado àquele ponto anterior à lembrança. Um ponto em que estamos quase sempre sem perceber. Em que, se você para de olhar ao redor e tenta ver dentro de si, só encontra dois quartos vazios, cinza, com uma luz frouxa e neutra entrando da janela.

Mas eu preciso parar com essa mania. Então se precavê: leva sempre igualmente envelope e o caderno de endereços. Mal termina, mete a carta dentro, fecha. Leva selos. Sela. Escreve o nome da pessoa e pensa, como se soubesse, querendo saber, que aquela carta vai chegar. Pelas mãos de muitos funcionários dos Correios, que sairão da greve à força, as precárias condições trabalhistas existem para que eu escreva e seja lida e então lembrada, e talvez até retribuída em louvor ou em raiva.

Ninguém existe sozinho. A reportagem uma vez encontrou um soldado do Japão que ficou muitas décadas escondido numa floresta pensando que ainda havia guerra. A última notícia que ele tinha visto era das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Quando lhe contaram que havia paz, ele quis que ninguém nunca o tivesse descoberto naquele esconderijo e que a guerra tivesse continuado e que aquelas pessoas morressem junto com as bombas. A guerra não é justa. A paz tampouco. E na floresta pelo menos ele podia viver feito um fantasma, apartado dos mortos que perambulam por aí.

Ela, também, de certo modo é um fantasma. Depois, nunca lembra de sair com as cartas, e mesmo às vezes não as quer enviar por medo ou por vergonha. Então acumula centenas de "Queridx,"'s pelos cômodos, embaixo da cama, uns põe em baú e outros deixa à vista como uma chantagem, pra que num corredor o encontro lhe diga: "você tem que ir até o final.

Agora / você tem que ir até o final. O futuro me cobra uma atitude. A dimensão prática da vida não pode ser descartada, não se pode fingir que não existe. Um dia chega a imprensa e devasta a sua floresta. Seus únicos parentes vivos são primos distantes e indiferentes. Sua família vivia em Hiroshima e Nagasaki e você não declarou guerra a ninguém. Mas é uma desgraça que a gente esteja vivo. O melhor mesmo é tirar o melhor proveito disso. E, quando for preciso, se esconder.

Ela é uma pessoa muito sozinha, você deve imaginar. Isso eu não sei. Vive sozinha, talvez. No sentido de que não mora com mais ninguém. Sua idade? Também não sei. Não é verossímil que seja jovem, certo? Uma solteirona, certo? Não existem mais solteironas hoje. E ninguém mais escreve cartas, hoje. Às vezes eu escrevo como se estivesse nos anos 1950 ou algo assim. Tem a ver com as referências literárias, claro. Mas - também, também - com que a pausa necessária não tem tempo. E da minha vida eu já estou farto. Ela é todo o resto que não for o que eu escrevo. Então não vou ficar andando em volta, feito cachorro atrás do próprio rabo.

Minha vida é isto aqui.

O que sei é que Mishima, numa grande inquietação com a quietude do Japão, tentou dar um golpe de estado, fracassou e, previsto um fracasso, suicidou-se e teve a cabeça decepada num ritual samurai.

A espada dela é uma caneta. Enviar estas cartas seria meu próprio haraquiri. Todos veriam que estou viva e que faço as mais diversas ideias a respeito de cada um. Mas se saio pro trabalho, e estou viva, ninguém vê nada?

***

O senhor Asuka, num descuido das autoridades, mesclou-se à cidade como antes camuflado na floresta, esguio escorreu até uma linha de trem e seguiu-a, quanto pôde, até estar tranquilo fora de alcance dos nomes e carimbos que o queriam. Foi dar num campo aberto, depois numa colina, por fim num bosque ladeado por vilas. Era o fim da floração das cerejeiras e o chão estava coberto de cores que se iam, mais um pouco transformadas em matéria morta e fértil. O senhor Asuka acomodou-se muito cansado embaixo de uma árvore e olhou para cima, para a copa nua que agora o protegia.

Mas o entorno me tira as forças. Já não tinha idade para fazer dessas. Quando o governo o encontrou, deu-lhe a idade que teria se desde o princípio tivesse conhecido que o período era de paz. Na selva, conservava o ímpeto de quem se entrincheira. Mas agora era um velho e não tinha uniforme.

O entorno me tira as forças. É uma ilusão pesada a que vivemos. Uma coluna de ar sobre a nossa cabeça se chama "atmosfera" e pesa. Vocês não aprenderam? A vida é guerra.

O velho, cada vez mais velho, de cansaço se desliga do passado e volta para o presente em que por muito tempo esteve. Preciso voltar e ver de novo aqueles dois quartos vazios. E ao olhar para eles o senhor Asuka vê / ele vê o inevitável: que florescem cerejeiras. O teu quarto, meu bem, é um jardim.

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