9.9.11

a mulher ausente

a varanda chove. nenhum dos garrafões está presente. os garrafões são meus filhos. eles eram cheios de leite, alguns de vinho. ontem à noite eu acordei assustada com a epidemia de dengue que se aproxima. há a hemorrágica. tenho muito medo de perder sangue pra dentro. pra fora, tenho igualmente muito medo, mas quando penso me dá também uma curiosidade de cimentos.

os tijolos estão todos dentro da parede.

(mas há tijolos aí.)

(será que eu tenho tijolos por dentro, também?)

caí da varanda. meu deus! (penso), a chuva era eu! mas que nada, ainda estou aqui. olho pra baixo e vejo o garrafão espatifado, leite em toda parte e o meu corpo ali no meio.

eu sou um exercício de construção de personagem. sem tijolos.

queria muito que a minha voz se despegasse de mim e eu pudesse estar quieta um tempo, sossegada. essa biografia que não larga! parece um cachorrinho agarrado à minha perna.

não tive filhos. esse bebê chorando no balcão não é meu. por que não para de chorar? derramo água em cima dele. ele se afoga um pouco, tosse e volta a chorar. matar o bebê é como matar a um rato, me dá nojo e aflição, tem ossos, se fosse só uma barata seria bem mais fácil, ou uma planta, deixa menos sujeira, se parece menos comigo. será que alguém quer esse bebê? vou pô-lo no lixo.

hoje passa o lixeiro. o garrafão é de vidro, o lixeiro leva o reciclável e salvamos o planeta. se o lixeiro achar que esse garrafão também é um bebê, talvez o leve para um açougue o dê de comer aos porcos. a reciclagem é muito importante. estou triste, mas consciente.

...

passei um café. não aguento mais ser escrita. é que, se eu pudesse, me contentaria com ser um garrafão de vidro. mas é irremediável, meu deus! quando a gente começa a ser escrita, não há volta. depois vem o fogo e queima. depois vem o esquecimento e esquece. aparece um vírus que te distorce e te apaga. mas até lá. até lá, meu deus! eu existo.

:-/

continuo tomando café. tenho muita coisa pra fazer. tenho que trabalhar. e ouço pingos de chuva. ainda bem que não ouço mais o bebê. vou pra cozinha pegar uma bolachinha e vejo uma baratinha. dou um pisãozinho na baratinha e mato elazinha. meu deus por que não me fizeste esta barata?!

(como é que uma personagem diz: "deus"?)

eu queria agradecer muito a você, que está aí, e a este quarto vazio, que está aqui. gostaria de agradecer também à galinha que morreu e cujo peito eu almocei hoje. me dá imensa alegria saber que o universo existe para me manter viva enquanto eu não estiver morta. gostaria de dizer igualmente que não aguento mais ter filhos, então façam minha barriga parar de crescer! pronto, de novo: são quíntuplos! tem até piada, parece anedota. haja saco preto pra jogar tanta coisa fora.

e o que mais queria eu dizer, mesmo...? ah, sim: não esqueçam de regar as plantas. vou ficar fora um mês. tudo o que é vivo precisa de cuidado, com as plantas não é diferente.

ela sai de casa e vai andando na rua. passa na frente de uma igreja. se ajoelha no banco do meio do átrio. é átrio que se chama? eu nunca fui católica. e sou bem ignorante, minto. aí ela se ajoelha nesse banco e seus olhos se enchem de lágrimas porque ela se imagina personagem de um filme italiano. eu sou a anna magnani. eu queria ser em preto e branco. eu queria ter um lenço na cabeça e ser uma prostituta gorda. aperta as mãos, imagina um rosário pendendo e comprimindo com dureza as dobras das palmas. e grita em pensamento, soltando um suspiro sôfrego e desesperançado:

m e u d e u s ! ! !

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