20.11.11

A República das águas

um dique, fossa, foi-se construindo em volta do lugar, era a minha casa dentro de um aquário. Eu não tinha casa. Me dá impressão saber que o maior peixe do mundo, o tubarão-baleia, alimenta-se quase que exclusivamente de sêmen e ovas de outros peixes, que nadam em cardume espiralar e soltam gozo pra que a corrente faça os filhos, siga a raça, e sobre a minha cabeça vejo arraias bichos bravos militares de alto-mar, esta água ebulição, represa, prisão, a gente da cidade vizinha vem pescar aqui, desvio dos arpões,

se eu estivesse dentro de você, ó tanque, mas em prados e savanas igualmente. A presa não escapa pela tangente.


Construíram às portas do país uma barragem para o mar. As ondas acumulavam-se em força e criaram um ódio profundo da gente. Não tardou mais que alguns séculos (as águas são o tempo) e o sal rompeu os muros, corroídos, o mar feito manada exército inimigo tomou nossas terras seguras e secas. Neste momento estamos mortos, trancados no rancoroso ventre das águas.

O helicóptero que sobrevoa esta desgraça busca lugar de pouso.

"O tempo está bom hoje, não, comandante?"
"Está sim, senhor governador."

Os soldados que guardam a vida dos tripulantes metralham a água abaixo, um pouco por diversão, um pouco por costume, também mera revanche, e caso haja algum sobrevivente, e também por incontida indiferença aos peixes.

"Ah, acho que encontramos um lugar!"
"Ah... [o governador boceja]"

O helicóptero pousa na única ilha do mundo. "É pequena, mas deve dar". Uns macaquinhos curiosos chegam perto e logo são abatidos, dos couros fazem cachecóis e a carne comem tostada na fogueira. "Não estava nada mal". De pé na ilha vê-se o entorno, águas calmas tentam subir pelas praias. De pé, vê-se toda a ilha, que tem a forma de um pássaro gordo, mais bem de uma galinha.

"Dormiu bem, senhor governador?"

O governador e sua senhora arrumam os cabelos. Têm cara de gente satisfeita e desgostosa. A mulher vai para o fio d'água que brota do centro e lava o rosto, os pés, e as orelhas. Olha para os lados envergonhada, todos desviam o rosto, e ela lava os sovacos e os seios, por debaixo do sutiã.

"É melhor começar as obras logo", diz o governador, "Não temos porque perder tempo."

O tempo, sabe-se, evapora. E os soldados tiram do helicóptero sacos de cimento, começam as barragens. À noite, revezam-se na mulher que levam prisioneira e que, para que não se mate, é mantida sempre sob a vigília de uma pistola. Satisfeitos com a vida, quarenta dias depois já têm pronta a muralha da ilha.

Deixadas de fora, as ondas arranham e retrocedem estrategicamente. Os peixes se preparam.



*


"Eu acho" diz a primeira-dama "que nós não devíamos pintar os muros". O governador só tinha sugerido porque a mente do homem fica apática com o ócio e sugere coisas ao acaso. O pescoço dele formiga de sono. A primeira-dama olha com certa tristeza para a mulher acorrentada que varre o chão com uma pistola apontada pra cabeça. A primeira-dama suspira, também apática, pensando que seria transtorno pôr cor nos muros, imagine o cheiro de qualquer tinta preso naquela terra sem brisa, e ter de olhar as mesmas cores para sempre. "Mas, se você quiser, eu não me oponho" diz ao marido.

O marido dorme o leve sono dos justos, sem roncar. A primeira-dama suspira quando percebe, e volta a encarar os entornos cinzentos de sua nova casa. Procura na mente algum catálogo de cores, retângulos imóveis coloridos, ela era muito boa pra visualizar essas coisas. Antes da cheia (como os da ilha chamam esta desgraça) em rodas e festas até diziam que esse era o seu talento, e ela nem dava muita bola, mas é sempre gostoso ter um talento. Visualizar as coisas.

"Eu acho", ela pensa, como se estivesse falando com o marido, era seu costume, e recompõe-se pra ser mais ela mesma ao dizer, em pensamento, o que diz:

"Eu acho", pausa breve, "que bege é uma cor linda."

Um comentário:

  1. "O tempo, sabe-se, evapora." tem que haver outro destino pra chamar de nosso.

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