3.11.11

Meu pai foi para a guerra

meu pai não deixava ninguém sair de casa. Se saía, tinha que levar celular, suprimentos e cordão de identificação. "Porque a guerra vem". A guerra sempre vinha. Um avião despejando bombas, veneno no abastecimento de água. Corjas que durante a noite invadiam nossa casa e estupravam a família, exércitos ninja, ianques famintos. De todos os lados a guerra vinha. "Mas, pai, você não vê que está tudo bem?". Eu tinha feito dezoito anos e ele me olhou com suspeita. Porque nunca se sabe onde está o inimigo.

Nos dezoito anos dele, foi levado pelo exército e o obrigaram a beber sangue de galinha para sobreviver na serra. Por isso ele estava gabaritado para nos proteger do que viesse. O que vinha era a gente mesmo, mas no futuro. Meu pai nas barricadas do futuro. Ou então o passado, fotos antigas que podiam ter sido manipuladas. Meu pai trancava a casa e revezávamos na vigília. Alguém sempre tinha que estar desperto, pois à noite vêm os lobos. Jesus disse: voltarei como um ladrão, não saberão a minha hora. E raios de luz desceriam dos céus, cegariam os infiéis. Meu pai, arrebatado, nunca mais precisaria beber sangue de galinha. Era perigosa a nossa vida. Também está escrito, no Apocalipse, que é o livro das revelações. Sobre a segunda vinda de Jesus:

E naqueles dias buscarão a morte. E não a encontrarão.

"Pai, dorme um pouco!"

Já eram trinta e cinco anos de espera. As notícias pela televisão eram recebidas com ansiosidade e igual desconfiança. Opositores do regime prenderam o presidente líbio. Torturaram-no até a morte. "Até a morte" é muito ou pouco tempo? Ainda não morri. Mas às vezes parece que a semana passa mais rápido. A chefe de governo dos Estados Unidos ri do fato. Em Cannes, um encontro de líderes mundiais sitia a cidade, impede o livre trânsito de pessoas, força à revista mulheres grávidas e crianças de oito anos. O mundo é um lugar seguro, igual a nossa casa. Mas e o tempo?

O tempo mata indiscriminadamente.

"É ele que vem", meu pai diz. Observa pela fresta do portão. Passam vizinhos com seus cãezinhos. Nossa casa está pichada com palavras que machucam muito. Queria eu tê-las pichado. Mas estou dentro. E estoura uma granada.

"Vamos!". Por trás do sofá, meu pai veste um capacete, improvisa um abrigo sob a mesa. Os delírios são constantes. Ou será que eu é que estou delirando? Quando olho da janela e vejo: o mundo não se move. (Explode.)

A Terra, no entanto, dá uma volta completa em pouco menos que vinte e quatro horas. Fico em dúvida: pra que lado? Caio. Meu pai me pergunta: "você está bem?!". Respondo que sim, só tive um ligeiro mal-estar, uma zonzeira. "Filhos da puta". Não, não foi ninguém, fui eu mesmo. "Proteja-se!". (Explode.)

Esta paz é uma desgraça. Ameaço vestir uma máscara e atacar meu pai de surpresa, as guardas baixas. Matá-lo e tomar seu sangue como se fosse o da galinha. Ai, galinhas, que inveja, são tão sem guerra. "Precisamos de mais suprimentos". Mas é só uma ideia. Saio arrastado pelo portão. Já na rua, sob o olhar malvado de alguma criança, me recomponho como homem sem medo e vou até o mercadinho da esquina. Sem ter o que temer.

"Eu quase nunca vejo vocês. Sem querer ser indiscreto: você trabalha no quê?"

O dono do mercado me entregaria à polícia, e às minhas latas de atum. "Sou escultor". "Ah...". Ele parece não saber o que fazer com a informação. "Como assim? Faz esculturas?". Imagina o busto de alguém muito importante sendo talhado pelos meus dedos. Um homem sério e de bronze, modelo a ser seguido. Mas não consegue definir o rosto. De qualquer modo, está admirado. "Mas você não faz escultura de político, né? São todos uns ladrões". Digo que não porque ainda não me obrigaram. Entrego-lhe um pacote de salsichas. "E você mora sozinho?".

Desejo-lhe boa tarde e volto para casa curioso de como seria se eu fosse escultor. Há que manter o máximo sigilo. Fico triste por não saber mexer em bronze, pedra, terra ou madeira. Comprei uma caixa de fósforos. Tacaria fogo no meu pai, quando ele estivesse distraído. É só uma ideia.

Atravesso as barricadas da minha sala, da minha cabeça. Isso aqui está uma bagunça, isso sim. "Pai?", pergunto pela casa. Mas a casa não responde. Guardo a comida atrás do móvel da televisão, abro o pacote de salsichas e mastigo a ponta de uma, pensativo. Às vezes fico muito sozinho.

Pai?

Mal percebo que alguém entrou em casa. Estava dormindo, essa hora em que nos descuidamos do mundo dos vivos. Tive sonhos agitados e esquecidos. Uma luz ora azul ora vermelha tinge as paredes da sala e homens bravos gritam em português coisas que eu quase não compreendo. Se alguém fizesse meu busto, seria um amontoado de folhas secas, ou de restos de papel, cascas de fruta jogadas pelo vizinho. A vala comum dos dias guarda monstruosidades e dela brotam plantas comestíveis que alimentam toda a população. Uma viatura me espera. E porque eu nunca servi ao exército, e porque eu sou órfão, e porque ainda não chegou a guerra. É que me absolvo. E vou.

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