5.12.11

a infância da política

minha mãe me repreendeu que eu não podia chamar o fernando henrique cardoso de ignorante na redação da escola porque ele era uma pessoa muito estudada. ela disse que eu devia dizer: néscio.

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minha avó passava roupa em casa toda quinta, eu tinha quatro anos e a amava mais que tudo, bom, não exatamente mais que tudo, amor se mede? lembro de dizer pra minha vó que eu se votasse ia de lula. ela disse que o lula não, porque era da bandeira vermelha, da foice e do martelo. a foice era pra cortar a garganta da gente; o martelo era pra bater na cabeça da gente. o vermelho, imagine-se, é todo o sangue decorrente do que acima foi exposto. fiquei quieto, convencido da minha escolha pelo barbudo. adoro homem de barba. vovó disse que bom mesmo era o collor, muito lindo, homem reto, as cores verde e amarelo.

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minha mãe e eu (imagino que seja sempre assim com todas as relações que as pessoas têm com suas mães, não concebo uma família mais acolhedora que a minha) sempre tivemos discussões rancorosas, desrespeitosas, agressivas e cheias de farpas, mas cobertas com a margarina do amor. essa que engordura e faz mal, mas que deixa escapadiço e até tragável - no nosso caso, até mesmo compulsivo - o pão duro que eu tenho pra comer.

numa dessas, eu dizia a mamãe que não achava certo que tivesse gente com dois carros no mundo e gente sem nenhum carro. que eu achava que todo mundo tinha que ter as mesmas coisas. minha mãe tentava me convencer do contrário com argumentos lógicos e gentis. acho que falamos até de cristo. como eu me mostrasse irrevogável, ela disse nervosa "você está dizendo a mesma coisa que o fidel castro. você quer ser que nem o fidel castro?!" e completou com meia dúzia de broncas a cuba. já que ser como o fidel castro era muito ruim, eu disse que não, de jeito nenhum. não mudei de opinião, mas parei de argumentar.

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meu pai tinha um quadro do che guevara na parede com a famosa frase "hay que endurecer...". eu, como qualquer pessoa no mundo, ou mais ou menos isso, tenho no meu pai um paradigma de tesão. homens de barba, ideologias de esquerda, endurecimentos. sin perder la ternura. já mais mocinho, mas ainda nos cueiros, vi meu pai desenhando suásticas com certo orgulho e afronta no papel vegetal da mesa do restaurante. acho que já era um aviso pra minha inevitável boiolice. eu, que não me lembro de um dia ter tido afeto por ele, depois fui ler marquês de sade. hoje eu entendo menos o mundo, e mais o meu pai.

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que também tinha uma flâmula de cuba pendurada no puxador do armário. mas estava desbotada e não era tão bonita quanto o quadro do che. um dia estávamos na mesa de jantar, o quadro do che já era história e eu queria ser adolescente e achava que pra isso precisava de um pôster.

(pra minha mãe) "sabe aquele quadro do che guevara que tinha na parede? posso ficar com ele?"
(minha mãe) "pra que você quer?"
"pra pôr no meu quarto"
"pra quê?"
"..."
"pede pro seu pai"
meu pai estava na mesma mesa, mas a gente quase não se falava.
(pro meu pai) "... posso?"
(ele) "pode o quê?"
"o quadro... do che guevara... ficar com ele..."
(ele) "pra que você quer?"
(meu deus!) "pra pendurar na parede do meu quarto"
"por quê?"
"ah, sei lá! eu quero. posso ou não posso?"
"não."
"..."

"por quê?"
"você sabe quem foi o che guevara?"
"não. quem foi?"
"quando você souber eu te empresto."

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às vezes minha avó, nas tardes de quinta, saía pra conversar com a tia helena ou então ir no mercado sabe lá. eu se ficava sozinho assistia televisão. tinha a televisão e um relógio grande de pêndulo na parede. no sbt sempre passava a chamada prum filme chamado "gritos do silêncio", e apareciam crianças vietnamitas, no meio da selva, chorando, e era guerra. eu associava isso ao zumbido que sempre tive nos ouvidos. se tudo pusesse silêncio, além do tique-taque eu ouvia muito alto um grito AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA agudo e contínuo (não tem nada de zumbido). era isso o grito do silêncio.

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uma das pessoas que eu mais amava era a clementina, faxineira lá de casa. um dia minha mãe falou "dá um beijo na tia clementina porque ela tá indo embora" e eu dei um beijo morrendo de nojo, porque ela era preta. depois fiquei chorando no meu quarto, não estava certo sentir nojo e amor pela mesmo pessoa. falei pra mim mesmo "não vou mais sentir nojo, então". e deu certo.

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