Mostrando postagens com marcador estorinha. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador estorinha. Mostrar todas as postagens

28.9.11

histórias que eu tenho preguiça de escrever

uma campainha que nunca deixa de tocar

os talentos obscuros

deus deu para cada um um talento. O problema é que às vezes ele não é tão evidente. Em italiano eu escutei uma vez uma expressão, pollice nera, o dedo negro, diz-se da pessoa que toca as plantas e elas morrem, não pode criar.

...

Andava com uma nuvem negra sobre a cabeça. E onde chegava fazia sombra. Fotos da maternidade mostram o vapor denso saindo da vagina, esse prenúncio do bebê assustaria cientistas, caso único no mundo. Logo a criança enrugada e mal destino. Ou nem tanto? Tentou fugir de casa muitas vezes, o pai ralhava sem sossego, a nuvem sujava as paredes e ficava na frente da televisão. Nunca teve sucesso em se esconder justamente /. Começou a trabalhar na praia da cidade onde morava, temporadas de verão. Protegia banhistas do sol intenso do Nordeste.

Um dia, inadvertida, a nuvem choveu. E tardou meses nessa água, que estava tão acumulada. Os noticiários faziam fila pra filmar a esquisitice. Choveu choveu choveu. Conseguiu um patrocínio de uma empresa que vendia capas de chuva. Com isso, podia se alimentar bem e pagar outras miudezas, um sorvete que tomava ensopadx, remendando a alegria.

Acordou uma manhã sem nada em cima. Nem água nem negrume. O sol, que só conhecia por reflexo, magoou-lhe a vista quase com um buraco na retina. E viveu assim pra sempre, até morrer.

...

...

Não é que não soubesse nenhum idioma. Não se trata de uma deficiência cerebral nem nada do gênero. Como dizer? Que elx não dizia. Aprendia palavras avulsas, às vezes conectava uma à outra e até sabia dizer, mas todas as línguas lhe eram estrangeiras. Todas? As que teimaram que aprendesse. "Alguma vai sair", o pediatra garantiu aos pais angustiados. Aos doze anos, sabia falar "mamãe" em português, chinês, russo, catalão, quechua... E qual o problema? Sempre com dificuldade. Sempre tendo que lembrar, antes, como se dizia. E à mãe lhe doía não ser chamada diretamente do coração da sua cria. Me faço entender? Não tinha língua materna.

...

...

Sentia cheiro de cocô nas coisas. E cada vez era como se fosse a primeira vez. Um estranhamento. E não era dessas pessoas que gostam do cheiro de cocô. Não. Não gostava. Peregrinou de médico em médico buscando uma cirurgia que lhe cortasse o olfato, mas ninguém quis assinar os papéis porque era arriscado. Ninguém queria arriscar.

Ganhou esse talento um dia, no começo da primavera. Ia andando pela rua, tropeçou, caiu e bateu o nariz.

Havia uma raça de gente que não tinha nariz. Esta é outra história. Mas não vou contar agora, pra não fugir do tema.

...

...

Caía. Esse era seu talento, cair. Depois se levantava. Eis outro jeito de contar a história: esse era seu talento. Levantar-se.

7.8.10

sonho

é um desengano. Mas também um grande privilégio: que a cada minuto morre de fome uma pessoa no mundo e você, aí, essa bela barriga. Vou contar a história da barriga.

Que os mandarins eram grandes glutões, os europeus quando os viram ficaram extasiados: homens cultos, tocando a viola e enormes mais que porcos. Outra história da barriga: os castrati, que eram bem comuns não só na China, mas em muitos países da Europa: a família cedia o menino ourinho do coro ao rei; então, antes da puberdade, cortavam-lhe os ovos ou algo parecido e o menino não desenvolvia pelos e músculos, do contrário ficava meio viadão aos olhos de todos, de mamas grandes e voz fina. Dizem que era um ótimo subterfúgio para as damas da corte, que podiam tê-los como amantes sem que ninguém desconfiasse, eunucos pintudos endurecidos que mais pareciam moças delicadas. E um dos efeitos da castração era a gordura, também a calvície. Dizem que não eram belos os castrati, rouxinóis com aparência de hipopótamos, mas quem vê beleza não põe a mesa.



Um homem esguio, magro de ombros finos, sempre muito seguro de sua magreza, começa um dia a desenvolver o grande medo, uma tenebrosa pança. Que cresce até que o hábito de encolhê-la não sirva para nada além de espremer o diafragma e provocar falta de ar. Não que antes ele fosse particularmente atraente, mas é que agora.

Pausa. Essa é uma história injusta. Vou pra outra.

Grande, forte, cavalo. E coroado dos lados pela massa fofa de certezas: os machos culotes. Esse é um outro personagem. Quantas mãos já agarraram isso feito rédeas / pra não cair do seu galope.

Link.

3.11.09

métodos humanitários de abate

Quereria, até, se matar. Porque o nariz caíra, o olho furara, quem suporta tanto assim um câncer necrose da vida fim da superfície do corpo. Lá dentro o poço do peito / no escuro, insondável, pouco importa o coração. Só que a filha vinha e amor no rádio, Jesus à toda altura pra que a mamãe não se sinta tão sozinha: dá-lhe banho, limpa escaras, miojo com salsicha amassados de vez em quando um legume fresco, algo mais caro, morrer um troço ingrato. A velha, travada de reumatismo, é levada em colo até o chuveiro. Motivos pelos quais vivemos. Sobre as coxas da filha, enquanto tudo dói, molhada e morna ela ouve o louvor longe e nem percebe / que não canta junto. Desafinada, é dela a voz da filha. E eu gosto tanto de cantar.

24.9.09

Foi ver

caminho angustiado porque as pernas não se abrem, chinelinhas de pano as mãos seguram a camisola. Senão ela cai.

Foi ver no escuro do mundo: os lixeiros, fantasmas assustadores levam o imundo das ruas. Ela lá parada à porta aberta de madeira, um degrau dá pra calçada. Chorume borrifado. Eles usam uniformes azuis, limpos e à luz do sol devem ser bonitos. Um se agacha e pega a sacolinha - cheia! - de supermercado / aos pés dela.

Boa noite.

Boa noite, senhora.

São bons meninos, os lixeiros. Olham pra ela e acenam. Estão na boca do caminhão que sobe a rua como se ela estivesse despencando num poço. "Tchau", ela diz. Entra, gira a chave e empurra o trinco. Era só o lixeiro, que alívio. Nem ladrões, nem assassinos. Também não seus filhos. Na quarta-feira eles vão passar de novo? Quem sabe o que poderá acontecer?