16.8.12

adeus

era uma vez uma galinha

que tinha prisão de ventre

no seu ventre havia um ovo

o que se prende apodrece

falta ar

tudo apodrece

mas o que está preso apodrece diferente

ninguém conseguiria comer o ovo, pra sempre preso

nem comer a galinha, fedida e estragada

"amor guardado vira câncer", alguém disse

mas não devemos atribuir juízo moral às doenças

e aquilo não era amor

era apenas um ovo, diz a galinha

*

há muito tempo não vejo animais

ontem matei uma formiga e vi uma pomba esmagada

quis fugir para o cerrado, mas tive medo de cobra

e fiquei por aqui, mesmo,

sem galinheiro, sem minhas vizinhas de infância

que criavam coelhos e pombas pro abate

*

hoje acordei me sentindo um ovo

prometido no cu de uma galinha inventada

há meses minha conta no banco míngua

e eu tentando escrever a história da humanidade

e algo útil que entretenha e edifique meus contemporâneos

leio as cartas íntimas de um escritor que gosto

e penso "não devo mais escrever em primeira pessoa"

o fim do capitalismo, a implosão do sol

uma vida eterna de paz e harmonia na presença de Deus

me boto altos objetivos enquanto trabalho

dez horas por dia na esperança de não atrasar

outra vez

o aluguel

*

se nada mais der certo

meu amor minguar e a conta no banco implodir

se o trabalho faltar e tudo o mais não nascer

no caso extremo de o mundo nunca acabar

e a ruína for um destino pessoal que nada tenha a ver

com vocês

espero que o meu diário deixado num endereço anônimo

da rede mundial de computadores

essa metáfora datada da mensagem na garrafa

mas uma carta de prisioneiro escondida atrás do vaso sanitário

neste mundo de gente solta e satisfeita, quem tem a chave

das nossas celas eu não sei

a solitária

mas eu espero que esta carta

se não comida pelos ratos, que comem tudo,

sirva de companhia, algum dia,

para quem também estiver preso, de mentirinha,

no cu escuro, apertado, sem saída

de uma galinha

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