30.10.11

longitude

viajamos, neste dia, para a distante e finda hungria
o mundo roda de acordo com a posição de cada um
há sete mil anos povos nômades na mongólia criaram o grifo
de susto ao ver fósseis que não tinham outro motivo
ficam expostos no deserto, depois tornam-se hunos
e de tanto tropeço acaba-se vindo à argentina
esta selvageria mais europeia do que a europa
todos temos um núcleo que nos une
inúteis povos ao largo mundo
corações e pele e a mesma classificação binomial de lineu
os japoneses de variados traços, a vida africana
de todos os tempos

29.10.11

questão de método

fogo de palha / e no impulso / depois o carrinho perdia / a fricção explosão / morria caído da mesa / eu e meu mano brincava de luta / hoje mal nos falamos / eu tinha muito impulso e fui pra longe / agora caí da mesa

28.10.11

o escritor fracassado, desventuras

vemos o futuro / começa a falar de si mesmo na terceira pessoa / assim consegue / este é um experimento de transfundamentação das vontades basais da essência que foge / curiosos assistem ao globo da morte / laboratório dos ratinhos um zoológico / outro dia houve um búfalo / pontadas no fundo da barriga acesa / a alma escura pior que a barriga / dá uma volta em chamas / se extingue o fim ato / até antes / nos meus afazeres cotidianos, volto minha vida de homem, meus sapatos / o mundo faz as vezes de gravata / sufoca o mundo / já não sabia o que era e então volta a si / cansado demais pra dizer "me" / a terceira pessoa é uma nave / ets que me abduzam / não vejo o futuro / futuro, não o vejo

27.10.11

entrevistas que gostaríamos de ver

ninguém: é possível escrever fora do mercado? escritor fracassado: ontem eu tentei pegar a essência das coisas e não consegui, não consigo escrever, o escritor entra no mercado, compra uma lata de atum, se tanto, os adjetivos não cabem no orçamento, ninguém: a atual conjuntura do mercado editorial brasileiro não existe espaço para a experimentação escritor fracassado: toda arte é de vanguarda o dinheiro é sujo aprendi a não ter família a menos para a culpa a isso sirva, qual era a pergunta? ninguém: conte-nos a respeito do seu último livro escritor fracassado: não houve livro porque livro é um acontecimento táctil, mas o computador é táctil, eu deixei de ser, vim morrer num país outro e não morri, estou sem páginas ninguém: quais são suas principais influências escritor fracassado o sucesso, a tristeza, a sobrevivência, a alegria é a prova dos nove, o futuro, o não sei, o ninguém conte-nos a respeito dos seus futuros projetos escritor fracassado eu falo de meu túmulo / não tenho projeto, ontem tentei pegar a essência das coisas e não consegui, preciso almoçar, não caibo no meu orçamento ninguém e o que é a escrita pra você eu só quero que me amem, não se preocupe em entender, isto, senhora, é um quadro, não uma mulher, comprei um caderno, não tenho dinheiro pro atum, (mas as coisas não têm essência?), o entretenimento, ler histórias é um jeito de deixar de existir, the horror, the horror, os verdadeiros lugares não estão no mapa / qual era a pergunta? ninguém:

ai que saudades dos dinossauros

pense bem
há muitos milhões de anos
um bichos gigantes meio lagartos
sangue quente e sobrevivência
sem cartões de crédito nem piedade cristã
sem a história da china
os chineses são o povo mais antigo do planeta
talvez tenham vindo de outro planeta
ou quando este evoluiu aqui ficaram
de civilizações pós-dinossauros
todavia os dinossauros
recentemente atlântida
suas pirêmides de kripton
a perfeição destruída
por algo exógeno
igual os dinossauros

nostalgia da infância é uma bobagem
ou a infância é o fóssil de nós mesmos
a gente adulto nomeia e petrifica
esse bicho grande e desconhecido que fomos

cientistas encontraram
numa cova a noruega
fósseis amontoados sem
distinção de morte
causada ou que os arrastassem
pra aí os amigos em
luto família

era (após inúmeras
investigações) a primeira
vala de suicidas
encontrada o mezosoico

a vida nunca foi fácil

a gente se assombra
com o afeto e as angústias
de quem não é a gente

e com os dinossauros foi assim

fim

23.10.11

aprendizado pela fruta

aconteceu exatamente
agora o sol entrando
escorpião fui comer
uma maçã tão dura e
doce mas no centro
estava podre abocanhei
antes das bordas

antes pensava "hum que delícia de maçã" e "há tempos não como tão doce" e "há tempos não sinto minhas gengivas" e "dura assim faz bem pra mastigação"

depois, não bastasse todo o simbolismo manjado
vi que dava pra comer quase tudo
e deixar o centro podre para o lixo

(escondo de mim: deixei alguma carne doce intacta
com medo de morder demais e acabar pegando o gosto ruim
à beira dente)
não obstante / a iminente crise energética / dormiu com a luz acesa / na alma

era um bruxuleantezinho / nada que fizesse um vizinho reclamar / muito menos equipes de televisão / que no caso de grande claridade pelos prédios da noite passariam com suas câmeras filmando registrando / o descaso da cidadania

a alma parece apagada / pois dentro dela há uma estepe / larga na noite da mongólia / perdida nela há uma cabana

dentro da cabana, um quarto escuro / e sob os cobertores, o celular aceso. é o suficiente para que a menina não durma. porque ela está conectada com o mundo.

o mundo é um lugar demais de atraente. por isso que a alma conserva o facebook, mesmo quando a gente dorme. porque o mundo necessita de nós para ser atraente para alguém.

invariavelmente, chegou a guerra. há mais de um século o brasil conserva paz com seus vizinhos. recentemente, o ex-presidente uruguaio declarou que há cerca de dez anos cogitou uma guerra com a argentina, para a qual chegou a pedir ajuda dos estados unidos. muito embora se me dessem um mapa livre de fronteira eu não tivesse a menor ideia de onde fica a líbia (mas veria os desertos, as cordilheiras e as fossas abissais do pacífico), o que ocorre na líbia me preocupa um pouquinho.

hordas de selvagens e helicópteros devastam as vazias estepes da mongólia, bombardeiam os celulares e deletam os perfis do facebook.

mas a alma, por sorte / e persistência / não é uma estepe. ela é um bichinho, pode ser uma chinchila. que hiberna na toca. a toca não é o corpo. a toca é a alma da alma. e o corpo é a mongólia.

os nomes te dão uma outra insônia. há algo que nunca dorme.

22.10.11

autobiografia

para quem não vivesse mais que aquilo. Seria fácil: era outono e contemplar. Depois a saída à rua, ter problemas no banco, resolvê-los. Logo viria primavera, ou antes inverno?, encontros com a morte, apaixonar-se, dias insossos. Ser contratadx, ser demitidx, ser contratadx de novo. Um dia / não: pois seria uma vida sem "um dia". Era agora e daqui a pouco. Olha, nos meus planos ninguém toca. Não, mesmo que fosse mais mansx. Olha em volta, faz um esforço. Vai pro espelho. Ali encontra olhos / que suspeitos esses olhos! Seria tão mais fácil! Acordar, dormir. A coisa tão própria nela mesma que qualquer palavra daria conta. Não quero o fácil. (Esconde-se atrás da porta com um machado. Espera que o espelho venha. Vocês são muito cruéis. Quinze crianças (eu contei!) passam pulando xingando o nada e sendo indiferentes pra única coisa que está aqui. Com isso dizem: que eu sou nada. nem posso contra esse atestado. as crianças / querem querem me matar. Não morro de ter muitas vidas. Querida mãe, minha mãe chega contra a carta, por isso não escrevo. Quem, quem, quem, quem. (Outro dia quis que meu nome fosse quem. Depois um nome caiu. Deus acendeu as luzes da casa de uma vez, foi para me assustar. Como Deus não existe, as luzes permaneceram apagadas. Estão brincando comigo0.) Um homem entra no meu quintal à noite e se prostra debaixo da janela. Fica imitando sons de grilo. Cri-cri, cri-cri, cri-cri. Depois que o pedro morreu, eu morri e continuei vivx. Ninguém nunca acredita. Cri-cri. Pelo amor de deus, eu não tenho paz. Uma história pra contar. fui na fábrica e disseram segunda venha. mas se não souber trabalhar ai. fui. depois a creche não tinha gente. vou te contar: não lembro de ter engravidado. oi? é, logo à direita. depois passa as noites com medo da morte. Querida morte, quero lhe pedir com humildade que venha. Não tem festim. Se você vier e me perguntar, direi que não. Saiba que será um sim. Todo o meu corpo é sim. E a minha alma é quem. Por isso não temos escolha. Me escolha. Por dentro daqui me olham. Guardo as coisas pelo corpo. Redes de televisão anunciam que encontraram centenas de objeto após a cirurgia. Depois eu tive um neto. Meu neto sou eu mesmo. Não posso mais parir. Um exército correu atrás de mim. Meu neto me salvou assim: não existindo. Ah que emoção, viu, vou te contar: não existimos e tudo dá mais certo. A vida fácil que soubesse. Comer o corpo, beber a palavra do Senhor. Lâmpada para os meus pés, Luz para o meu caminho. Pai, mas ilumina a minha cabeça! Pai, e o peito, pai? Mamilos tesos, desça pelos caminhos e ilumina os meios. Eu sou a noite e a noite se arrasta para longe o chão se move, dia, dia a terra grita e a luz me silencia. Pai. Todos os cachorros. Deixaram a cidade. Pularam no rio da Prata. Amanhecemos inundados de cadáveres. Por dentro daqui me olham. Depois veio a família e soube tudo. Depois todos se acertaram: espanaram a casa, repartiram a mesa de centro, os móveis usados, meus bichos de pelúcia jogaram no lixo. Desculpe o clichê. A vida é um clichê. Pai, pai. Por quê? O anjo desce e me tira da palavra a boca a vida. Diz não diga mais vida e eu digo (...) não posso dizer. Querido anjo, s'il vous plait, porque na escola me ensinaram francês, só assim o anjo vem. E depois... e depois... Tive lutas estafantes. Deu tudo certo, não te disse?

O vulcão escapa além fronteira.
A terra é lava. O céu é cordilheira

20.10.11

todos buscan lo mismo

igual o
amor que tua
mãe te


eu que
tenho
mãe sei

até
vc querer
negar

ser tanto
assim amadx
por alguém

todos
buscan lo
mismo
pero no
todos
lo encuentran

um ú
tero cativo
da vontade

ou falta
que sufoca
marcha lenta

meu deus!

iba
a escribir
tengo
un cuerpo pero
pensé
soy
un cuerpo me
corregí y
ahora
no sé
si
tengo o
soy o
si

autopaleontólogo

o fim da adolescência / e a fuga do futuro que me esperava / me deram, entre outras condições de vida / a insegurança econômica e uma língua estrangeira / de repente conheço muitas pessoas de bogotá / e não tenho perto de mim minha própria avó / que está viva, todxs estamos

também / aí já pode ser um defeito de fabricação / uma iminência de fatalidade / da qual estaria bom, para fins recreativos / e de saúde / fazer a genealogia / como quem escava para encontrar / uma ossada certa e desconhecida

(comprei flores feias e mal-cheirosas / que não só morreram no primeiro dia / como podiam ter sido gastas em leite / ou em balas, ou batatas / não me arrependo de ter gastado o dinheiro assim / embora veja agora-as sobre a mesa / e quase mortas não tenha coragem / de jogar fora)

(a cozinha volta a estar cheia de baratas / e amanhã compraremos veneno / eu próprio, se vejo, em raiva esmago, / sou mais forte)

(mas não quero / não quero / viver num mundo em que morram flores / e baratas / como se nada)

18.10.11

a desgraça da vida

nem tudo é tão mal que não
possa piorar

especialistas anunciaram que as
árvores também estavam
desenvolvendo uma espécie de
esquizofrenia

na frente de
casa sempre houve uma
que dava ao mesmo
tempo laranjas e
limões minha mãe chamava
híbrida

que nada,
descobriu-se

e suas folhas que caíam
e suas raízes incrivelmente
concêntricas, biólogos políticos
e médicos disseram: as árvores estão
esquizofrênicas

eu / que passei o dia
fazendo currículo em língua
estrangeira / leio a notícia um pouco
desconfiado

meu estado clínico
é a classe média
e a crítica materialista

cansadas de serem forçadas a tomar
remédios e têmporas queimadas de
eletrochoques, as árvores nos deixam
com nossos medicamentos e um dia se vão
para muito longe

há um mundo triste
sem as árvores

essa fuga prova que os
biólogos médicos políticos estavam
certos

a desgraça da vida é estarmos certos

15.10.11

noticiário

depois de muitos combates
uma professora de matemática do sul da frança
ateou fogo no próprio corpo
em represália aos alunos que a atazanavam

vejo o noticiário tomando
mate e tento entender os movimentos que o planeta
faz. a desgraça da vida
em certo sentido são os noticiários

pois que há mais informação numa
edição de domingo do new york times do que
a que uma pessoa recebia durante um ano inteiro
na irlanda no século dezesseis, assim
eu li certa vez

esse excesso causa um embotamento
quero dizer se você se depara o tempo todo com
crimes insolúveis que ocorrem a todo momento
sem dizer da crueldade tipo a estudante
no piauí que morreu e a polícia alega
suicídio enquanto todos sabem tratar-se de queima
de arquivo

depois de muitos combates, o anjo
pra não ser vencido
fez com que o homem dormisse um sono injusto
servisse de colchão um banco duro

tão logo o homem
acordasse reiniciaria aquele duro
combate de vozes contra a
igreja na praça os transeuntes

o anjo, então, com a
misericórdia do senhor
manda outros homens quando é
noite e ateiam
fogo ao combatente
escuro, agora um ponto
luminoso no nosso
esquecimento

ó pai todo
poderoso amém

e o homem não foi para o céu
foi colocado numa vala comum

aqui há um ditado que
diz el árbol
no te deja ver al
bosque talvez haja
também el bosque
no te deja ver al
árbol

***

POEMA DA PURIFICAÇÃO

Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.

As águas ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.

Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.

(Drummond)

13.10.11

acordei pensando em geopolítica

acho que o
japão após as
bombas ficou em
tal estado
catatônico
que não pôde
retomar uma unidade que não se embasasse no
medo

proibido de ter um
próprio exército e armas de
defesa e subordinado às
regras políticas e econômicas
estadunidenses - país que
até hoje conserva bases
lá como em toda
parte - os japoneses
figuram ao menos no meu
imaginário como um povo
de suicídio raivoso e
resignado

yukio
mishima, que admiro como
escritor e como personagem,
tentou um golpe de estado que
restituísse ao país um ethos
pré-colonial. vaiado pelas
tropas confortadas pela estabilidade
momentânea, mishima se suicidou
com um rito ancestral.

não penso com isso que
haja uma saída para os
problemas do planeta, digo,
a própria espécie humana
o que faz é racionalizar a destruição
inerente à toda sobrevida,
o deus dos mortos vivo em cada
semente, e essa racionalização só o que logra
é nos tornar mais eficazes, cruéis com o que
destruímos, e sofredores por essa mesma capacidade,
é o que me parece.

mas acordei pensando nisso
do japão por encontrar aí alguma
analogia com uma dificuldade muito
minha, imagino também seja de
todxs, que é a de ter atenção para as
coisas que realmente importam, sem
ter que se importar, a todo
momento, com a gênese da inominável
bomba

12.10.11

se escrever sal
vasse eu não em
primeiro lugar esta
ria aqui

mas é que na
da salva?
nem jesus.

um telefone acorda
a casa madrugada porque
a guarda do município encontrou
vovó vagando no passado
senil de juventude pelas
ruas

no dia seguinte a gente acorda sabendo
pela consciência histórica e anos de instrução
escolar que há mais de quinhentos
anos chegavam os europeus ao continente
por causa deles é que hoje
eu amo quem eu amo
sobrenomes latinos, asiáticos, germânicos
mas a custo de quê? a custo de tanto.

logo tenho que começar a trabalhar.
uma mulher falou feliz "DINHEIRO
É BOM!" e a lia respondeu "dinheiro
é bom no sistema capitalista", a mulher
não ficou nem ofendida, tal o nosso rabo
no sistema capitalista

penso que se vivêssemos em
outras tradições minha
avozinha vagaria na flor-
esta que abraça a nossa
vila. ou queimaríamos
ela em vez das florestas
acusada bruxa do inútil
esquecimento. se minha
avó soubesse ler eu dedicava
tudo o que escrevo a ela.

o tempo está acabando.

perdi a conta dos dias
em que acordei sozinho na
casa precisando
trabalhar e não o fiz.
em vez disso preferi
vagar sem rumo
pelo pouco que me
resta de palavras só
à distância cooptadas pelo
capital. é uma espécie de
loucura, embora tímida, da qual
não tenho abrido mão, menos
agora com minha vó tão longe.
se é a única coisa que a gente
pode viver junto, por que
não?

(ando bem sem metafísica.
por isso não consigo escrever.
e desatento pela enxaqueca e pelo
sistema bancário.)

10.10.11

tristeza

a tristeza esse
gatuno que
assalta a comitiva
real
deixa o
clero sem as
calças
ata todos
a uma
árvore
logo
no
covil
enterra
o
resultado

emite-se
um decreto que
se encontre essa
tristeza não
descansem ó meus
súditos se não
acharem tal
raposa

procurada
morta em
cinco
continentes
kgb
pide
interpol
a tristeza logra
sempre escapar

e assalta
quando menos se espera
o mesmo rei
o mesmo xá
o mesmo czar

o império britânico
solta suas pólvoras contra
um bilhão de indianos

a tristeza vai lá e afunda o barco britânico

vem uma contraofensiva da rainha
e o império afunda as ilhas malvinas

a tristeza dá risada,
levanta a saia da rainha...

ninguém pode prever
jesus disse que como tal ia voltar
no meio da noite, ninguém o esperasse

ilmo. sr. jesus,
eu não te espero.

a tristeza deixará bíblias esquecidas no sofá
eu vou renegar a civilização ocidental
mas não há guerrilha de emboscada contra a infância protestante

você toma um sorvete numa tarde quente
e súbito lembra que vive em pecado
o sorvete fica mais doce e delicado
mas dentro do estômago os ácidos cantam hinos
que ninguém mais ouve

que indigestos esses louvores

a tristeza admite
que o apocalipse é jogo duro
e é carnaval o ano inteiro

devo estar ruim das minhas ideias
tomei muito sol do brasil na cabeça
não sei se no bloco pula a tristeza
fantasiada de alegria, ou se pula a alegria
fantasiada de tristeza

ou se as duas são irmãs gêmeas
que me dão boa noite cinderela
depois de gozarem me deixam dormido
roubam meu ouro e me amarram
à margem da passarela
eu quase morri
todo dia
porque penso muito nisso
mas nunca passei
situação extrema
que me desse motivo

talvez seja um jeito de compensação universal
uma úlcera ninada na minha vida mansa
nenhuma coincidência se a caminho do aeroporto
a autopista cruza um tal rio chamado matanza

ou um demiurgo me prepara
na lembrança do futuro
pro que nunca escreverei

minha família vinda em estepes
desde o paleolítico para este continente
estilhaços de uma coisa una
que por forças inescrutáveis se
juntam

eu, estilhaço
também, vago
movimento

até me juntar um dia
(exatamente agora)
àquilo a que eu vinha

5.10.11

love

após o acidente nuclear em fukushima, foram feitos estudos e já se tem: um ovo amarelo no qual os japoneses podem entrar, um por vez, e que os leva flutuando no oceano até paragens novas e não radiativas

cabe em cada arca suprimento e uma revista, um livro desde que não muito grosso, ou talvez vários, a depender, as arcas não são grandes, mas pros meses que te esperam uma epopeia tem gente que prefere, ler "os lusíadas" enquanto não se afoga, nem imagino traduzido pro japonês

a terra deixou náufragos e à deriva
128 milhões de japoneses
boiando em ovos amarelos
pelos oceanos dos cinco continentes

no havaí uma menina
encontra uma dessas cápsulas

em cada praia do mundo,
Deus, todo-poderoso,
dá de presente às crianças comportadas
um japonês para brincar

meu amigo japonês
de fala grave e entrecortada
conta histórias navegadas
numa língua que eu não entendo

esboçamos, em todo lado,
caracteres intraduzíveis
eu desenho um coração na areia
mas esse japonês, sei lá por que, não entende o desenho do coração

olho pra areia mais uma vez e vejo que não desenhei coração algum
equivocado com um galho e a melhor das intenções
fiz só rabiscos, o que na minha vista parecia um coração

vou ao hospital e descubro que tenho uma rara doença neurológica
que afeta a coordenação do que produzo com o que vejo do que produzo
é tipo uma esquizofrenia aplicada aos traços
eu era um cartunista muito famoso no país
fiz sucesso com uma série de tiras sobre meu amigo japonês
agora entro em depressão, não consigo mais desenhar
o japonês me faz sushis, é seu jeito de fazer carinho
como os sushis e depois que não morro de depressão nem de intoxicação alimentar pego no pincel e inicio uma série de pinturas abstratas
que para mim não são nada abstratas
a crítica ignora
(eu ainda não sei disso, mas vou ter muito sucesso póstumo)
começo a trabalhar numa banca de jornais
o japonês arranjou emprego carregando peixes no mercado
ainda não fala um "a" da nossa língua
e eu, estranhamente, não consigo falar um "a" em japonês

certas desconfianças a respeito disso
(não sei se estou ficando louco, mas penso em alienígenas)
de todo modo, o que acontece é que decido começar uma nova série de pinturas
dedicadas ao meu amigo incomunicável

desenho corações e mais corações
ninguém no mundo reconhece nenhum deles
penso em intitular a série com o nome da minha doença
mas desisto, acho deprê, e chamo ela de
"love"

descubro que sou um paquistanês que vive na irlanda
(esta casa já tinha espelhos antes?
cada coisa que a gente descobre por acaso...)

acordo um dia e vejo tudo amarelo
sinto um baque, ouço um zíper
uma menina me achou na praia no havaí
sou um japonês naufragado, meu deus!
(qual o deus dos japoneses?)

ops, voltei da história.
não era um sonho, mas também não era verdade.
onde eu estava?
ah, é:
aqui.

o aprendizado pelo passarinho

um passarinho na antena

pega sinais de todo planeta

assobia o hino nacional

depois narra um jogo de futebol

um passarinho distraído na antena

nem sabe quem canta o seu tema

saber não tem a ver com distração

seja você sabiá, avestruz ou andorinhão

um passarinho concentrado na antena

sabe os sons de todo o planeta

e tenta cantar todas as notas válidas

fica com nó nas cordas vocálicas

um passarinho pousado na antena

descansa do voo, esconde suas penas

recolhidas junto ao peito de passarinho

elas aquecem seu mudo coraçãozinho

depois por cãibra, calafrio ou comida

sai voando de novo na vida

um passarinho distante na antena

(eu escrevo, para que não me esqueça)

um dia cai pra sempre do ar

e, enquanto não cai, tem sorte ou azar

engole minhocas e caga nos carros

tem vermes e pulgas e outros bichos bizarros

e canta bastante - alto, bonito -

o canto da espécie - por isso eterno e finito -

o passarinho permanece na antena

e as coisas permanecem na mesma

mas / de repente ele voa, vai embora

só resta a antena, relevo no azul

o metal e o concreto que demoram

e um poema de passarinho, escrito em azul

4.10.11

diário. direção

parece que o impacto ambiental de um cadáver
se decompondo sob a terra é muito maior do que
no caso de cremarem-se os restos do ente
querido, talvez indesejado, o fato é
que todos temos nossas tripas e depois

comecei esse raciocínio achando que ia
concluí-lo embora sem bem saber por
onde. me veio um desejo de falar da morte.
mas também tenho um desejo de falar de
flores, e de falar das escadas que tem
aqui em casa.

mas o que ia dizer, enfim, do impacto
ambiental que as formas de sepultamento cristãs
e de outras culturas corroboram
devolver à terra os corpos que pregam saíram
dela, é que as cinzas são bem mais higiênicas
e há rins, mucosas, deus, toda essa delicadeza
virando verme ou luz acesa.

[espirro. frio na cidade]

[esta inconsequência não vai levar a nenhuma parte]