era uma vez uma galinha
que tinha prisão de ventre
no seu ventre havia um ovo
o que se prende apodrece
falta ar
tudo apodrece
mas o que está preso apodrece diferente
ninguém conseguiria comer o ovo, pra sempre preso
nem comer a galinha, fedida e estragada
"amor guardado vira câncer", alguém disse
mas não devemos atribuir juízo moral às doenças
e aquilo não era amor
era apenas um ovo, diz a galinha
*
há muito tempo não vejo animais
ontem matei uma formiga e vi uma pomba esmagada
quis fugir para o cerrado, mas tive medo de cobra
e fiquei por aqui, mesmo,
sem galinheiro, sem minhas vizinhas de infância
que criavam coelhos e pombas pro abate
*
hoje acordei me sentindo um ovo
prometido no cu de uma galinha inventada
há meses minha conta no banco míngua
e eu tentando escrever a história da humanidade
e algo útil que entretenha e edifique meus contemporâneos
leio as cartas íntimas de um escritor que gosto
e penso "não devo mais escrever em primeira pessoa"
o fim do capitalismo, a implosão do sol
uma vida eterna de paz e harmonia na presença de Deus
me boto altos objetivos enquanto trabalho
dez horas por dia na esperança de não atrasar
outra vez
o aluguel
*
se nada mais der certo
meu amor minguar e a conta no banco implodir
se o trabalho faltar e tudo o mais não nascer
no caso extremo de o mundo nunca acabar
e a ruína for um destino pessoal que nada tenha a ver
com vocês
espero que o meu diário deixado num endereço anônimo
da rede mundial de computadores
essa metáfora datada da mensagem na garrafa
mas uma carta de prisioneiro escondida atrás do vaso sanitário
neste mundo de gente solta e satisfeita, quem tem a chave
das nossas celas eu não sei
a solitária
mas eu espero que esta carta
se não comida pelos ratos, que comem tudo,
sirva de companhia, algum dia,
para quem também estiver preso, de mentirinha,
no cu escuro, apertado, sem saída
de uma galinha