18.4.10

Manada e névoa



para poder morrer.

. morrer é uma questão de espaço. o pai que se encolhe. o bicho que estica. chumbo grosso caído. é o antilapso. e antilapso o nome de um mamífero grande e pesado veloz. escuro feito uma pergunta.

E se eu me matasse? Você não vai se matar. (Silêncio). Você não sabe. E se eu tomo coragem, qualquer dia desses, e me jogo na frente de um carro? Que nem um acidente, todo mundo vai pensar. Nem traz transtorno, nem nada. Você não acha que a sua mãe vai ficar triste? Triste todo mundo fica, depois esquece.

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
Que é isso? Fernando Pessoa. E você decorou? A menina fica quieta, se sentindo inteligente. Caralho! O menino arregala os olhos, mas olha pro outro lado, pra frente. E fica achando ela muito inteligente. Aí ela volta a ficar triste. Tá vendo?, ele diz. É por isso que você não pode se matar. Você é mó inteligente. Tem meia dúzia de pombas andando na praça em frente a eles e as pombas não fazem ideia de quem seja Fernando Pessoa. Hoje eu vi um cachorro. Fiquei pensando: cachorro, cachorro. Que tanto anda? Nas quatro patas alternadas. Sempre que eu ando eu estou indo pra algum lugar. Nem que seja para o acaso, quando a gente passeia ou se perde na sola do pé sempre um destino solto, certeiro. Olha o cachorro. Qual? Aquele vira-lata logo ali.


Coitado, tá cheio de sarna! A menina vira pro lado, levanta, começa a andar. O menino sai correndo atrás dela: ei! Cheio de sarna tá você. Ele olha pros próprios braços, que são magrelos, limpos. Pele nova. Pra onde você vai?! Não sei! Você não sabe ou não quer me dizer? Um carro freia estridente e alto, o motorista xinga. A menina ergue o dedo médio, o braço dela inteiro duro e firme, unha pintada de preto, blusa comprida. O menino magrelo ainda não entendeu direito o que acabou de acontecer e de repente percebe que precisa correr de novo pra alcançar ela, que já está na outra esquina. O próximo carro não para, atropela! E se eu quiser mesmo morrer, de verdade, e me matar? E daí? Quando a gente corre e as mãos não alcançam o que os olhos não abraçam. Fácil seria todos os sentidos abrangentes, agarrando. O sangue do menino escorrendo da boca, ele quebrado por dentro. Todo mundo começa a se acumular naquela esquina. E se eu não quiser morrer, e mesmo assim... Perigo não é querer, é o que acontece enquanto a gente quer. Os braços dela moles, pendendo para o chão da calçada, ladeando as pernas que tremem dentro da calça preta, apertada. E se eu não quiser morrer?

(Espaço.)

Nada disso aconteceu. Eles estão andando lado a lado. É raro: um atropelamento te dar as respostas. A maioria das vezes você só continua andando, às vezes com alguém do seu lado, e ninguém responde nada. Passam alguns anos, a menina cresce, faz faculdade de jornalismo, ganha a vida escrevendo fofocas num blogue de humor e frilando pra revistas tipo a Capricho, adolescentes, hoje se ela percebe um cachorro com sarna passa reto nem finge que desvia, no máximo tira foto e vira pauta: adote um cãozinho. Muito amor nos pelos fofos entre os dedos, focinho gelado, um nome engraçado e fotos em todos os sites de relacionamento meu cãozinho tão querido e adotado. Você é uma calçada larga. Quê?! Todo mundo passa por você, aí você acha que está indo também, junto com todo mundo, pra algum lugar, pra onde todo mundo vai. Mas tá lá: parado, bocó, pronto pra ser mijado. Ou pra chegar um mendigo e deitar. O corpo dele vai ficando mais fino, ele de largo não tinha nada. Podia mais ser um poste, parado. E quando aparecesse uma menina gorda do lado dele e começasse a dizer essas coisas malvadas, ele ia continuar parado achando que estava do lado dela. Aí ela vai embora e ele fica lá, de pé, abobalhado. Eles vão chegando naquela parte da cidade em que não passa muito carro e nem tem guarda pra apitar ninguém pra longe. São os fundos de uma fábrica desativada, também os fundos da Biblioteca, os fundos de uma escola e de resto só casa de gente velha, descascada, uns portões baixos descascados. Eu sempre passo por aqui. Mas nunca chamei ninguém pra vir comigo. Eu não te chamei. Mas de repente eu vi e você já estava aqui, comigo. "De repente" é uma palavra que a gente usa muito, né? Você acha? Na verdade são duas palavras, "de" e "repente". "Repente" é uma coisa inesperada e súbita, tipo um susto. E o "de"? Ah, o "de" deve ser pra indicar que a coisa acontece. Senão fica o "repente" sozinho. Que nem um susto fora do tempo e fora do espaço. Como é que ia ser isso? Acho que é que nem. A minha avó ficou louca e só chorava o dia inteiro. Depois ela começava a gritar, mas o grito saía forte só no começo, depois enfraquecia, ia ficando cada vez mais baixo, porque a voz não aguentava. Não sustentava o espanto. É. Só o "repente" deve ser isso: só acaba pros outros, nunca pra você; porque tá na sua cabeça. Que bobagem! Pode ser. Eles se encostaram no muro e sentaram na calçada, sem pensar em nada por um tempo. De vez em quando passava um carro. Minha avó brincava comigo de adivinhar qual a cor do carro que viria. Que imbecil. Pode ser. Mas ouve o carro e diz: verde. Vrummmmm. Errou, palhação! E o próximo? Azul. Cinza. Vrummmm. Que brincadeira estúpida! Só mais um! Qual será? Amarelo. Cinza. Vrummmmmmmmmm Cinza, ganhei! O carro freia, o motorista abre a porta! "Sua vaca!", o menino magrelo quase se mija, agarra a blusa dela, vamos embora! Ela mal levanta. O coração dispara, a pele esfria, mas é de ódio. Ela quer ficar parada feito uma pedra. E outra vez mostrar o dedo praquele filho da puta. "Sua vaca gorda! Quer morrer atropelada, se joga na frente de um caminhão-pipa! Sua puta!". A menina bufa contra o magrelo que segura o seu braço, não deixa o dedo se levantar, o motorista é enorme e continua avançando na direção. A menina começa a ser arrastada e alguma coisa dentro dela diz que é melhor correr, se esconder, voltar pra casa, não sair mais, ou comprar um revólver, um pé-de-cabra, o motorista é enorme, velho, musculoso e chamando ela de vaca puta sua escrota nojenta porca ele enfia a mão dentro das calças e tira um pinto enorme, grosso, balança. "Mama aqui, sua vagabunda!", ele continua avançando com a coisa de fora, estica a mão e a menina escapa, perplexa, cheia de raiva, arrastada pelo menino medroso, porém vivo. Minha avó sempre dizia: mais vale um covarde vivo do que um herói morto. E a gente corre e corre até não sentir mais as pernas, chegar numa rua movimentada, com gente andando na calçada, nem sinal do carro cinza, o motorista foi embora, o peito inteiro pulsando que parece que vai explodir. A menina ainda faz alguma força pra se soltar dos dedos do menino. Pra voltar na direção do carro e mandar aquele filho da puta tomar no cu, viado enrustido, pinto pequeno, brocha. O menino percebe e, morto de susto, sem acreditar que ela seja teimosa a ponto de não perceber o perigo que era aquilo, puto da vida com ela que não se cuida, que não tem noção, ele esbafora com o fôlego que resta, e os olhos dizem mais firme: sua escrota.

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