30.12.11

sonho

uma palavra importante
que a gente via numa caneca
bebia de manhã, quando acordava
no líquido lembrava de quem fosse
depois esquecia no que engole
o afeto obscurecido pelo esôfago
e esse mundo de palavras complicadas
que se fere no ácido gástrico
do dia que é o nosso estômago

o fim deste caminho
é a prova última de carinho

a gente acorda com cheiro de lençol
se embrulha umas nas outras
a fim de manter o sono na
pele, o repouso, mas não tem
jeito, a gente acorda
e o que pode fazer é ir pra cozinha
tomar café - um nome novo

29.12.11

a visita

tem que deixar a casa arrumada pra receber a visita.

faz café. café ainda não. faz uma torta.

acho que eu vou sair e comprar uma torta. aí faço o café.

vem a visita, olá, querida, tudo bem, que saudaaaade.

senta a visita, dá de comer pra visita.

o filho na sala abre a bolsa da visita e tira cem reais.

eu nunca vi tanto dinheiro, a nota azulzinha.

azul, minha cor preferida.

a cor do céu.

põe o açúcar. não posso por causa da afta. açúcar e frutas cítricas.

é uma mulher tão bonita. ninguém adivinha que tem afta.

sífilis, hiv também não adivinha. esquizofrenia também não adivinha.

a nossa vida é tão bonita!

então espera. disse que ia chegar às quatro. que horas são? ah, sim: são quatro.

ninguém responde porque eu estou sozinha.

eu sou a minha mãe. mas minha mãe não é ela. e eu espero uma visita.

aperta as mãos uma na outra. parece que vai cair.

haha, é engraçado, eu sempre tenho essa sensação.

"da cadeira, você diz?"

ela ri hahaha não, pior que não

não sei. só assim: cair.

bom, se considerarmos

que o universo é um vácuo em movimento

sem norte, sem sul, sem centro

estamos sempre em queda

(detesto quando ela começa "se considerarmos")

(mas é verdade!)

aperta as mãos com mais força.

quatro e meia.

a gente faz isso: põe a toalha na mesa mais bonita,

prepara delícias e fica esperando deus.

deus deve ter se esquecido. ou bateu o carro no caminho.

não coma toda a torta! é pra visita!

vou pro meu quarto chutando o vento.

naquele tempo não tinha internet. mas mesmo que tivesse.

a vida é o tédio esperando o tédio.

aí alguma coisa acontece!

aí tédio tédio tédio...

se eu vivesse sempre na sibéria, talvez não conhecesse

essa sensação de abafado meio de tarde

azucrinantemente quente

e claro.

ainda não são cinco.

já sei: vou fazer algo enquanto isso.

pego papel e quero escrever um lindo cartão de fim de ano.

BOAS FESTAS, MEUS AMIGOS! MUITO AMOR, PAZ E PROSPERIDADE!

a criança vaga pela casa que nem um fantasma.

meu filho está morto e ninguém vem me ver.

"Para de andar um pouco! Você me desconcentra!"

Ela retoma. (Morta estou eu)

Aí você não é mais a sua mãe nem você mesmo: você é a visita.

Que atrasa e que não vem.

As pessoas ficam se perguntando "mas onde estará...?"

dependendo da sua credibilidade, quem te espera se preocupa

"que será que aconteceu...?"

ai, tomara que esteja tudo bem.

MEUS QUERIDOS AMIGOS,

UM 2012 CHEIO DE PAZ, AMOR E PROSPERIDADE

E TOMARA QUE ESTEJA TUDO BEM!!!!!!

:)

- o tempo fecha.

é verão, vêm essas chuvas de fim de tarde.

eu não sou mais a visita, porque eu não vim.

assim como o céu não é mais azul.

um cinza-chumbo se precipita antes da noite.

e antes de ontem, e antes de antes de ontem,

até o princípio do fim dos tempos esse chumbo comemora

a cada ocasião, perto dos trópicos, o fim de uma espera

pela visita.

(querido céu, não caia em mim)

e logo VENTOS, DE NOVO UMA TORMENTA

fechamos a janela porque é isso que fazemos

- a janela fecha.

nos escondemos no centro da nossa sobrevivência

ameaçada por uma coisa tão banal

"agora eu posso comer torta?"

você mata o seu filho enforcado

num descontrole da lógica.

(chove, chove, chove)

"Pode, sim. Vamos comer"

quantas tardes eu a gente ainda

vai se sentar aqui para comer

depois delícia, e digestão,

depois vem o depois, e depois vem mais depois.

faz um café com leite.

"tá tudo muito gostoso"

é muito frustrante quando a visita não vem

pôxa você prepara tudo com tanto carinho

depois tem que comer tudo sozinho

e antes veio o antes, e depois virá o depois,

e no meio disso - pode ser que venha -

pode ser que venha, que não venha,

campainha

28.12.11

aprendi este
ano que além
dos dois já
sabidos movimentos
rotação
translação
a terra faz
outros, um
cônico por
exemplo e outro
se assemelha a um tremelique
tudo por conta das várias forças gravitacionais
e leis newtonianas
se mete a relatividade, vixe
a gente começa a
tropicar na rua tanto que não
se aguenta

há um movimento chamado
roleta russa que é assim:
a terra roda e atira.

em menos de
cinco minutos imaginei
minha afta um câncer
bucal e todas as
consequências disso
num futuro próximo.

bem, o movimento
roleta russa é mais ou menos
isso, só que em escala concreta.

na maior parte das vezes
não tem bala na agulha, por isso
a gente não percebe. mas o movimento
existe e foi comprovado cientificamente,
pela física.

15.12.11

avô

meu avô se sentava na porta numa cadeira na frente da porta da casa, abria uma cadeira de praia

a gente é do interior paulista, onde não tem praia, mas os adolescentes usam roupas de surf.

meu avô abria a cadeira que foi presente e sentava.

ano passado eu viajei pelo interior do uruguai lá os bancos na frente das casas às vezes são tão necessários que estão embutidos nas paredes das casas.

assim: tijolos = parede, banco na parede, feito de tijolo.

começaram a morrer os vizinhos.

meu avô morava numa rua sem saída.

morria o vizinho de baixo, depois morria o vizinho de cima,

"morreram", no pretérito perfeito

e outros muitos vizinhos

meu avô sorrindo dizia

"estão me cercando..."

13.12.11

curso prático

tenho me dedicado

a não morrer

e nem percebo

é assim:

não tomo friagem

me alimento direito

limpo a casa

sabe as bactérias

são distraídas assassinas

e eu um sobrevivente distraído

quando lavo uma faca

não a meto na barriga

haraquiri não, oh não

ensaboo direitinho

enxaguo e guardo

pra que a faca não me corte

eu não me cortarei

hoje um carro quase me atropelou

mas eu corri

oi mãe, oi pai

não precisam se preocupar

eu vejo carros e corro

que mais tenho pra dividir?

escovo os dentes, corto as unhas

penso em dinheiro o tempo todo

mas só porque eu não tenho

e, você sabe, no nosso sistema econômico

fica complicado

como coisas com agrotóxicos, é verdade

acabo de ler um artigo

sobre como o flúor dá câncer

e bebo água com flúor

respiro fumaça, não faço check-up

o dia em que tiver dinheiro vou me cuidar

ainda mais

agora faço o que posso

(meu pai morreu de câncer)

quando estou triste, por exemplo,

busco meios de estar feliz

até o momento tive sucesso

não com a felicidade, exatamente

mas com isso de estar vivo

(os anos passam, as horas se arrastam)

em poucas outras coisas

na vida posso dizer que tive

um grau de sucesso igual

a isto de que agora me dei conta

12.12.11

era uma vez um negócio

aí começou a cair uma gotinha em cima desse negócio

assim: ping, ping, ping...

e o negócio virou outro negócio

virou você.

um dia você falou "cansei dessa gotinha"

e foi embora

(ping, ping, ping...)

a gotinha, sozinha,

continuava gotinhando

mas não tinha mais no que gotinhar

por isso o ping-ping caía na eternidade

e na eternidade não atingia nada nem ninguém

você já estava longe, porque tirou um diploma e começou a trabalhar

quando você ficou mais velho, a sua mãe e o seu pai morreram

mas antes disso você foi se transformando:

virou aquele primeiro negócio outra vez

a diferença é que estava longe e trabalhando

aí era uma vez um dia em que você não serviu pra mais nada

quando a gente fica muito triste, a gente fala assim

"ai eu quero me jogar dum pé de alface!!! D: "

e dá risada

foi o que você fez.

aí você voltou pra gotinha, porque vocẽ lembrou que tinha a gotinha.

a gotinha, coitada, continuava pingando na eternidade

mas a eternidade não enche nunca!

é um saco sem fundo a eternidade. muito chata.

aí você foi lá e ficou de novo embaixo da gotinha.

é que a gotinha é do reino mineral, por isso não tem sentimentos.

mas, se tivesse, talvez ela ficasse feliz

porque você é mais legal que a eternidade.

pelo menos você se molha.

e agora era em você que gotinhava

outra vez: ping, ping, ping...

e você virou, de novo, aquele

outro negócio, que você já tinha virado,

antes de você ser esse negócio que você

é

alegria

o jaspion era um
guerreiro intergaláctico
tinha duas
companheiras uma era a
mími, extraterrestre gorduchinha
que só falava mímimímimími
a outra era uma moça bonita
e biônica que às vezes precisava
de algum reparo

juntos eles lutavam contra o
satangos que era as forças do mal
eu dizia o nome sussurrando porque
era pecado dizer "satan-".

lembro dum episódio
faziam feitiço maléfico e o
jaspion via tudo de ponta-cabeça

ele achou que não ia poder lutar mais contra o mal

aí ele descobriu que se
plantasse bananeira via tudo no
normal e treinou lutar assim e
venceu a luta contra o mal e
tudo deu certo no fim

*

gostava também de ver os
changeman que eram cinco e
coloridos

na rua eu era sempre o change-dragon
queria namorar o change-pegasus
escondido imitava a change-mermaid

os inimigos do changeman eram o ghiodai
que era um monstro de bengala com um olho grande na boca
e do olho saía um raio vermelho
quando os changeman matavam um monstro
o ghiodai aparecia e fazia o monstro
viver de novo e multiplicar o tamanho

aí os changeman formavam um robô gigante

outra inimiga dos changeman - a minha
preferida - era uma mulher muito muito linda
mas que tinha voz de homem muito grave
por isso ficava junto com os monstros
e lutava pelas forças do mal

a vaca só vê vantagens

a carne destes pampas é tão boa
porque desde o período colonial sabe-se
as vacas andam pouco, quase não se mexem
o pasto abunda onde o pasto cresce
a carne macia se diferencia de outras
terras onde a fibra é necessária
montanhas que estão cheias de cabras

eu gosto de ler sobre animais desaparecidos
sobre espécies, digo
mas também gosto de ler sobre as vacas
pra mim, as vacas são animais igualmente desaparecidos
têm quatro estômagos na folha informativa
e exploradores entediados buscam seus vestígios
em açougues, que aqui se chamam carnicerías

carniça ou fóssil, nenhuma vaca é minha amiga
mesmo assim sei algo sobre elas e também
sobre técnicas de abate, por exemplo que
entram num corredor apertado e que
não vendo atrás nem dos lados ficam menos
angustiadas, o cérebro (!) libera menos
adrenalina e a carne fica muito mais macia

não sei se a angústia e a fibra
deixam a gente incomestível
imagino

5.12.11

a infância da política

minha mãe me repreendeu que eu não podia chamar o fernando henrique cardoso de ignorante na redação da escola porque ele era uma pessoa muito estudada. ela disse que eu devia dizer: néscio.

*

minha avó passava roupa em casa toda quinta, eu tinha quatro anos e a amava mais que tudo, bom, não exatamente mais que tudo, amor se mede? lembro de dizer pra minha vó que eu se votasse ia de lula. ela disse que o lula não, porque era da bandeira vermelha, da foice e do martelo. a foice era pra cortar a garganta da gente; o martelo era pra bater na cabeça da gente. o vermelho, imagine-se, é todo o sangue decorrente do que acima foi exposto. fiquei quieto, convencido da minha escolha pelo barbudo. adoro homem de barba. vovó disse que bom mesmo era o collor, muito lindo, homem reto, as cores verde e amarelo.

*

minha mãe e eu (imagino que seja sempre assim com todas as relações que as pessoas têm com suas mães, não concebo uma família mais acolhedora que a minha) sempre tivemos discussões rancorosas, desrespeitosas, agressivas e cheias de farpas, mas cobertas com a margarina do amor. essa que engordura e faz mal, mas que deixa escapadiço e até tragável - no nosso caso, até mesmo compulsivo - o pão duro que eu tenho pra comer.

numa dessas, eu dizia a mamãe que não achava certo que tivesse gente com dois carros no mundo e gente sem nenhum carro. que eu achava que todo mundo tinha que ter as mesmas coisas. minha mãe tentava me convencer do contrário com argumentos lógicos e gentis. acho que falamos até de cristo. como eu me mostrasse irrevogável, ela disse nervosa "você está dizendo a mesma coisa que o fidel castro. você quer ser que nem o fidel castro?!" e completou com meia dúzia de broncas a cuba. já que ser como o fidel castro era muito ruim, eu disse que não, de jeito nenhum. não mudei de opinião, mas parei de argumentar.

*

meu pai tinha um quadro do che guevara na parede com a famosa frase "hay que endurecer...". eu, como qualquer pessoa no mundo, ou mais ou menos isso, tenho no meu pai um paradigma de tesão. homens de barba, ideologias de esquerda, endurecimentos. sin perder la ternura. já mais mocinho, mas ainda nos cueiros, vi meu pai desenhando suásticas com certo orgulho e afronta no papel vegetal da mesa do restaurante. acho que já era um aviso pra minha inevitável boiolice. eu, que não me lembro de um dia ter tido afeto por ele, depois fui ler marquês de sade. hoje eu entendo menos o mundo, e mais o meu pai.

*

que também tinha uma flâmula de cuba pendurada no puxador do armário. mas estava desbotada e não era tão bonita quanto o quadro do che. um dia estávamos na mesa de jantar, o quadro do che já era história e eu queria ser adolescente e achava que pra isso precisava de um pôster.

(pra minha mãe) "sabe aquele quadro do che guevara que tinha na parede? posso ficar com ele?"
(minha mãe) "pra que você quer?"
"pra pôr no meu quarto"
"pra quê?"
"..."
"pede pro seu pai"
meu pai estava na mesma mesa, mas a gente quase não se falava.
(pro meu pai) "... posso?"
(ele) "pode o quê?"
"o quadro... do che guevara... ficar com ele..."
(ele) "pra que você quer?"
(meu deus!) "pra pendurar na parede do meu quarto"
"por quê?"
"ah, sei lá! eu quero. posso ou não posso?"
"não."
"..."

"por quê?"
"você sabe quem foi o che guevara?"
"não. quem foi?"
"quando você souber eu te empresto."

*

às vezes minha avó, nas tardes de quinta, saía pra conversar com a tia helena ou então ir no mercado sabe lá. eu se ficava sozinho assistia televisão. tinha a televisão e um relógio grande de pêndulo na parede. no sbt sempre passava a chamada prum filme chamado "gritos do silêncio", e apareciam crianças vietnamitas, no meio da selva, chorando, e era guerra. eu associava isso ao zumbido que sempre tive nos ouvidos. se tudo pusesse silêncio, além do tique-taque eu ouvia muito alto um grito AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA agudo e contínuo (não tem nada de zumbido). era isso o grito do silêncio.

*

uma das pessoas que eu mais amava era a clementina, faxineira lá de casa. um dia minha mãe falou "dá um beijo na tia clementina porque ela tá indo embora" e eu dei um beijo morrendo de nojo, porque ela era preta. depois fiquei chorando no meu quarto, não estava certo sentir nojo e amor pela mesmo pessoa. falei pra mim mesmo "não vou mais sentir nojo, então". e deu certo.