29.1.12

demasiado

era demasiado o dia. O cachorrinho latia depois cansava, muito calor nas costas, feito a corcova dum camelo. então o cachorrinho esticou as patinhas e morreu.

ao lado dele deitaram-se os pernilongos e os flamingos. estamos numa selva, só que ao contrário. o chão civilizado recusava-se a receber tanto cadáver. ficaram ali, recusados.

deu no noticiário. mas só uma notinha.

2.

os camelos invadiram a cidade. chegaram nos lombos dos mouros com sabres degolaram a presidenta e instauraram novas corcovas na nação, usamos turbantes e os cães sem burca apedrejados lhes dizem infiéis. com motivos indígenas organizamos resistência desde os vastos pampas, roupas camufladas nas ideias de bagunça. veio a responsabilidade pela dívida externa, os camelos com a imensa vantagem de não terem sede. a gente morreu porque o mundo acabou (mas só pra gente).

3.

um terremoto? não.
furacão? hm-hm.
bomba atômica, infarto fulminante.
aí veio o despertador.
sim, um reloginho.
a história acaba porque ninguém mais pode contar.

verão portenho

mal encarados e cicatrizes
cinema a céu aberto
calor que não segura
minha vó foge de barco
o metrô sobe de preço
lençol de zebra
no zoo cortam asas dos flamingos
assim não voam
outra cena:

excesso de café
divertidas bebidas chinesas
bruxismo
traduzo barcos
chega o divã, a revolução
questões político-econômicas
apanhador nos desertos de soja
oi
desce a cortina:

emperra
durmo no claro
caronte a tiracolo
saudades, saco cheio
veneno aos pernilongos
planilhas chamadas "organizando a vida"
chega de longe
amor, factura e gira
menor
a menor ideia

26.1.12

a imitação do mundo

todas as dores
igual cristo
é essa a imitação?
mas jesus ficou faltando
algumas dúzias de flagelo.
a gente inventa
vidas que não tem
só pra ser outras pessoas
e outras dores também.
se eu sou jesus, a chicotada,
me furam a costela,
cravam os espinhos
e o sangue que escorre
da testa sobre os olhos
arde igual suor.
o que mais dói é o abandono:
chego a duvidar de mim. já que triuno.
e digo "eu, eu. por que me abandonei?"
de outra forma não vou saber
já que eu não me abandono,
sou muito assíduo.
mas, se eu sou jesus, eu sei.
assim a gente expurga o conforto,
se a gente é bem cristão e acha que não merece o conforto.
o papa se aproveita
da guerra na terra e entre as pessoas
de boa vontade, amor ao próximo,
próximo.

assim eu morro todo dia.
de abandono, de tiro, desinteria.
mas, ah, eu amo também.
amor e morte, nessa ordem.
de todos os jeitos possíveis,
a maioria é indecente, mas
as histórias me permitem. alguns
até são crime: eu posso. imagine
o amor de jesus.

com o meu corpo, escrevo
uma história paralela. real
e de pouco interesse, porque já sei,
enquanto acontece, tudo o que se vai
passando nela. a gente vive
pra dar chance de este mundo
imaginar coisas diferentes. vai que
jesus um dia quer
imaginar outras coisas, outros amores.
ele vai pensar em mim, sentado
de camisa vermelha, trabalhando
em buenos aires, numa tarde de
janeiro

23.1.12

parente morre e a gente fica pensando

a morte vem assim, de surpresa
em alguns casos
em outros casos não
ó o meu pai, por exemplo
ficou doente doente doente
eu pensava "ai tomara que morra"
era oportunismo, mas também era compaixão
aí os médicos disseram "saiu da u.t.i"
foi todo mundo ver
aí os médicos disseram "volta pra u.t.i"
e só eu estava lá
com um monte de saco de batata frita correndo pra cima e pra baixo
levando olé de médico
aí depois de muitas horas a médica disse
(tinha uma cara de dó, a coitada)
"ó, você pode entrar, mas tem que ser rápido"
eu entrei e fiquei olhando
as batatas fritas tinham ficado no corredor
ela viu que eu não tinha deus e me disse
"você pode falar com ele, tem gente que diz que a pessoa escuta"
era coma induzido
eu falei "ah tá" e não lembro se falei com ele
fiquei com vergonha
uns dias depois sim, eu falei, mas é segredo
meu pai vai me cobrar quando a gente estiver no outro mundo, na outra vida
vai dizer assim "ah é?" e talvez a gente se entenda
eu peguei o trem pra são paulo porque tinha que trabalhar, uma bobagem
e uma menina de cabelo embatumado de creme cheiro chocolate
ficava roendo a unha na minha frente. o descaso
do transporte público e meu pai morrendo, naquela menina
eu vi o pior tipo de miséria
que é esta nossa, inerente

aí meu pai ficou uma semana exata em coma induzido
e depois, num domingo, sabe lá porque,
morreu.

podia ter morrido antes ou depois.
mas não
ninguém pode morrer antes ou depois.
morre e pronto.
mas com meu pai teve esse aviso.
depois herança eu não vi, nem quis saber.
morre uma pessoa, que me importa a herança? eu fico com raiva.

agora essa semana morreu a minha avó.
eu não fui pra china pensando que se ela fosse morrer
era melhor eu estar na argentina, que dava tempo de chegar.
outra bobagem.
vivendo e aprendendo.
não teve aviso prévio. foi
"oi sua vó foi internada" "oi
sua vó morreu" (certa estava ela,
que não gostava de hospital. o ponto
comum das duas histórias é o hospital)

mas as coisas acontecem como têm que acontecer
ou pelo menos é assim que a gente se explica as coisas não terem acontecido de outro jeito.
(eu sou bem pouco inteligente pra entender as coisas.
isto aqui é só uma tentativa)
também pintava as unhas

aí não gostava de vermelho, só cor discreta

sempre erguia o dedo e dizia "que unha feia"

prendeu na máquina

da fábrica tinha moça que saía sem o braço

a unha era partida ao meio, mas eu não lembro qual dedo

ah, era o do anel

ela dizia "justo o do anel!"

que humor torto essa vida...
era sempre um problema achar vestido

do tamanho que coubesse, e fosse de gosto

florido o mais bonito

perguntava qual que eu preferia

um dia disse não gosto desse preto

mas eu preciso usar preto porque sou viúva

era um preto com flores vermelhas muito grandes

e ela passava batom e punha pedras de brilhantes

tinha lua em sagitário, eu não nasci com essa sorte
todas as avós são escavadas.

colocam elas sentadas nos bancos do jardim.

minha avó não podia ver banco que ficava muito muito feliz.

pois bem: passarão a eternidade sendo felizes.

isso tudo foi patrocinado por um banco,

mas desses de dinheiro

que não é bobo e se aproveita da coincidência da palavra.

paciência.

olha como elas estão felizes

a avó é uma caveira (porque agora já faz tempo)

(viva ela era muito gorda. paciência)

veste o seu melhor vestido, e ri pra sempre

os esqueletos tão contentes

tá, agora acabou.

"parque temático das avós", curta duração

levarão a mostra itinerante até londres

e lá despejarão essas ossadas no tâmisa, pra não ter gasto

a rainha-mãe vai flutuar só pelo escândalo.

*

depois de uns anos eu volto pra cidade

com olheiras de tim burton, uns anos que não durmo

falo oi pessoal

só o vento me responde

cadê? vou até o cemitério, todas as covas estão abertas

vixe todo mundo tá no tâmisa

fico triste, esperando a morte

aí vou até a praça

com sorte as árvores cresceram e haverá sombra

sento no banco, mas no de pedra

já não adianta ter dinheiro

e por acaso é a minha avó quem está lá!

eu não disse que ela gostava de banco?

esqueceram dela, pra variar.

vó, ainda bem que a senhora não foi pra londres.

os quatro dentes que ela tinha me sorriem por falta de opção.

cai a tarde.

um dia eu vou morrer também. é o que dizem as estatísticas.

então eu espero, espero, espero.

ah, conto piadas e dou muita risada.

minha vó ri junto. no final a gente respira: ai ai.

"ai ai" quando foi engraçado.

pronto. acabou.
foi o grande concurso de quem fica acordado mais tempo. Hora, hora, hora. quando um dormia, dava risada, importante era não ter competição. aí os meninos andam pelos corredores da igreja. um deles, o que eu mais gostava, foi quem começou essa história de dinossauro. sabia todos os nomes, eu morria de inveja. e ele via o menino que ia no jô soares e que sabia mais nomes ainda. me dizia: "mas ele erra".

tem uns fósseis a gente nem imagina. diz no livro que é muito improvável que um fóssil exista. e sin embargo se move: terra pá caverna, tchum, emerge a fera. damos-lhe um nome e passamos as noites sem sono, querendo acordar pra sempre.

querido deus, me salve, amém.

depois reclassifica. por exemplo pterodáctilos tem outro nome. eu já não lembro. vinha o adulto responsável e ria, aconselhava a gente a dormir, mas desde que jesus estivesse feliz estava tudo bem.

minha avó morreu esses dias. consulto o livro pra saber quais as chances de que vire fóssil. são vagas. foi enterrada com roupa tão bonita, dizem, pra que tanta beleza lá na cova? é um mistério.

menos mistério que a gente vivo. mas mais mistério que os dinossauros.

de repente todas as avós são escavadas, num futuro de macacos e extraterrestres. eu bebi muitos litros de coca-cola e não vou ter osso, essa bebida é ácido que corrói nosso futuro, não vou ficar pra estudo.

agora já são quase duas da manhã e estou ganhando de mim mesmo o grande concurso de quem fica acordado mais tempo.
agora não teremos mais melancolia, agradeço a todos

uma salva de palmas, nossa próxima atração

logo após os reclames do sabonete lux

abre um palhaço outra vez triste

queria ser carlitos, mas é tão terceiromundista

até nossas piadas são mais pobres

e meio fedidas a cachorro molhado

ao meu lado senta-se a bunda da edna velho

pra me consolar destes assuntos sérios

queria ser triste, mas é sempre uma claque

o nosso verão não tem schopenhauer

na fresta da janela do futuro

minha glória é um pequeno ponto escuro

e tudo tão mais escuro em volta

assim deve ser debaixo da terra

nossos olhos com vermes e o céu sem estrelas

a velha surda senta no banco e avisa que tem câncer

recebe uma homenagem trinta segundos comoventes

foi a última vez que eu vi a velha surda

procuro rima, metáfora, lembrança

nada se encontra

21.1.12

os animais

"mas eu vi na televisão uma macaca que ficou andando de um lado pro outro com o filhote morto, e tiveram que sedar ela pra poderem tirar o macaquinho morto dela."

"isso é insitinto" disse a professora de biologia. ela ensinava pra gente que os animais não têm sentimentos.

19.1.12

vovó subiu no telhado

porque queria se jogar de lá de cima. Andador, banquinho, equilibrista, capacete se tivesse: a gente só viu depois de tudo. Minha mãe gritava aqui debaixo desesperada, minha vó lá em cima do desespero, como teria subido era um mistério. Aí chegou um troço voador muito gigante e um raio que cegou toda a cidade. Quando a gente viu de novo, vovó não estava lá.

Na outra galáxia, esta é a mesma, objetos não identificados, dia útil, os meninos já crescidos. Ela não enxerga e acamada, o câncer comeu nariz olhos deixou podres as maçãs do rosto, por mais limpinha que esteja, a gente cuida, o fim de vida fede. Vovó aventureira pomos um quepe capitã da cama, depois a mãe dá bronca, as crianças pintam bigode e contornam as manchas do rosto com caneta hidrocor, "vovó é meu gato", e riem, cruel tudo quer brinquedo, "isso é jeito de tratar a sua vó?!".

Depois vai pro estrangeiro. Memórias da minha infância. É tão ruim ficar velha. Pior é não ficar. A família quieta, apreensiva, rejeitando o suicídio.

Naquele tempo, todas as irmãs viraram putas, se eu contar o número de homens que já comi, fez um aborto, família nenhuma descobre o teu meio das pernas, a gente se olhava e intuía a sacanagem, ninguém aqui é inocente, mas a gente não tem susto, nisso somos iguais.

Aí veio o E.T.

sem deixar marcas na pele, luzindo medo. Vou prum sítio afastado e passo o resto dos tempos engolindo a saliva do meu amigo. Colhemos milho e protegemos o gado. Um dia minha avó volta desabduzida, sem avisar entra na casa, deita no sofá e ronrona. Vou ter mais vidas porque acredito em reencarnação e neste mundo é um baita incesto: carinhos escondidos, afeto afastado, galáxias perdidas, apartamento solitário.

14.1.12

lembrei agora

que a minha primeira memória de infância
é na garupa de um caminhão de mudança

segurando o telefone que seria transportado
e que não dava sinal, meu pai dava bronca
por qualquer coisa que eu não entendia
outros homens carregavam caixas
e minha mãe estava perto, indo de lá pra cá

11.1.12

pessimismo diante do noticiário matinal

buenos aires está sendo reclassificada
no mapa mundial do clima
como uma cidade tropical
por causa das mudanças climáticas
o mundo vira um único trópico
e logo se verão araras na patagônia
as estepes darão mangas
não haverá mais estepes
além daquelas que temos no peito
e os desertos áridos e frios na nossa cabeça
não haverá mais araras
mangas, só as trangênicas

vão reclassificar a gente
no mapa mundial dos seres
passaremos calor, seremos sozinhos
só a gente e o gado de abate

4.1.12

só interessam os momentos de crise
de que outro modo se fez dostoievski
tão débil na rússia, era século xix
uma vida triste gelada na vodca
as pessoas passavam meses enfurnadas
no deserto inverno russo
por isso criaram a vodca, fermentada com batatas
e na bebedeira havia romances imensos
alguns com mais de mil páginas

nos trópicos também fazem grandes romances
por aí a crise é outra
as palmeiras melancólicas
garcía márquez fazendo porcos voadores
tudo pra inglês ver

próximo ao estuário do rio da prata
por acaso da janela eu vejo um passarinho
lembro dos marmeladov, quando eu não tinha atingido
ainda a maioridade penal, tomava vodca
baikal que comprava no russi e ficava
vendo os musgos do quintal, li
uma biografia do dostoievski mas só lembro
da morte escura, do frio da rússia, da bebedeira,
de alguns problemas com o sogro,
da cristandade

(tolstói
parece
também
tinha problemas com o sogro
morreu numa estação de trem)

o problema da literatura
é que a gente termina
acreditando

3.1.12

a felicidade
pelo ralo

é importante deixar ir
junto com água suja e sabão usado
através das pernas das baratas
cocô de rato
os esgotos da cidade estão cheios
de felicidade

que se junta em grandes correntes
rumo aos rios

a felicidade e seus poluentes

e alcança o mar

, eu estou longe do mar, agora
o mar é um tanque gigante
cheio de felicidade e outras coisas
indiscriminadamente juntas

tomando banho de banheira pra tentar manter
a água morna, a água esfria e desidrata
os regos dos teus dedos, o sangue cava
um caminho para fora
a felicidade é nociva, cuidado,
aprecie com moderação

depois de um tempo, água parada
se não dá dengue tem as bactérias
matéria morta, vamos ao mar

o mar, onde tudo não importa.
ficamos cheios de sal, a areia
gruda feito um amor mal feito

então voltamos para casa. você me
entretem no teu quarto, acho
que eu nunca fui tão feliz

no dia seguinte, agarro um trem que vai pra longe
cheguei no longe

como os peixes, quero crer,
outra hora, noutro acaso,
quem sabe a gente se vê

a água escoa por todo lado
sem você bem que sou lago,
montanha, abro a paisagem

e agora busquemos outros assuntos
(nunca fomos tão felizes
juntos)