12.6.11

como aprendi a sentir frio

vou escrever a história do frio. Quando eu tinha uns dez anos, talvez, meu tio, que é muito rico e bondoso e que gostava muito de mim, mas eu nunca soube ser gostado, ficava quieto e constrangido, fomos comer pizza em são paulo, eu não sabia o que era são paulo, mas era muito grande, talvez no brás, fazia frio como hoje

esse texto está ruim e agora pensei que escrevo demais na primeira pessoa e que ninguém se interessa tanto assim, também não é da conta de ninguém. mas se eu parar de escrever agora. não faz o menor sentido. também não tenho compromisso nenhum com a boa literatura. e estou com frio e lembrei disso. não é uma história bonita. eu preferia nem lembrar. mas se a gente escolher não fazer as coisas - não lembrar, não escrever, não - isso tem que ter algum sentido. o frio me deixa confuso. continuo:

eu tinha uns dez anos e meu tio me levou pra são paulo, não sei por quê, eu gostava imenso do meu tio e ele de mim. fazia frio como hoje e à noite nós fomos comer pizza que era "a melhor pizza de são paulo", segundo ele.

atum. no fim ele perguntou se eu tinha gostado. era uma pizza esquisita, parecia mais uma torta, a borda enorme a massa fina e recheio cheio recheio. o tempo todo que a gente ficou sentado comendo naquele lugar quentinho eu observava um garçom velho que estava tão cansado que dormia de pé. eu sempre quis bem os velhos. aquele me pareceu especialmente desamparado e dormindo de pé, servia a gente, eu e meu tio comendo a melhor pizza de são paulo.

(contar histórias é um negócio muito difícil)

"gostou?". eu falei que sim por educação. sou muito educado. queria oferecer a cadeira pro garçom velho e perguntar se ele queria comer pizza, que não estava lá muito boa mas que era quentinha e gostosa. meu tio pagou, pediu pra embrulhar os pedaços que restavam ("leva pra sua mãe experimentar") e a gente saiu em direção ao estacionamento.

os carros do meu tio sempre foram grandes e também aconchegantes.

dava uns três quarteirões até o estacionamento, era muito noite e chovia, ou tinha chovido, cidade grande, aquele monte de luz e de gente na rua e de carros e barulhos e a gente andando na calçada, eu seguindo apressado os passos largos dele. eu com os pedaços de pizza esquentando as minhas mãos. e no caminho, no meio da calçada, tinha uma mulher (eu acho, pela voz) deitada, se contorcendo, toda escondida num cobertor escuro. foi assim? é assim que eu lembro. assim foi: quando passamos eu ouvi que ela gemia. e não estava pedindo nada pra ninguém. estava só se contorcendo e gemendo. uma voz que eu acho que ainda lembro, e que nunca me assombrou em pesadelos ou noites assim. a única coisa que ela dizia é "eu tô com fome". e não estava dizendo isso pra ninguém.

eu olhei várias vezes pra trás, como sempre faço. entramos no carro e a pizza continuava quente na minha mão. eu pensei um milhão de vezes, como sempre faço. que a pizza era pra minha mãe, que o meu tio ia ficar chateado, que e se a pessoa não quisesse pizza, que todo mundo ia ficar chateado e triste, todo mundo, o mundo inteiro. o carro deu partida. e foi assim que aconteceu.

Um comentário:

  1. O Monstro Celíaco, Enzo Potel13 de junho de 2011 às 11:14

    maraviulhoso.
    exatamente porque não foi feito para ser.

    é segunda hoje.
    muito caloteiro na estante virtual.

    bjones

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