era uma vez uma galinha
que tinha prisão de ventre
no seu ventre havia um ovo
o que se prende apodrece
falta ar
tudo apodrece
mas o que está preso apodrece diferente
ninguém conseguiria comer o ovo, pra sempre preso
nem comer a galinha, fedida e estragada
"amor guardado vira câncer", alguém disse
mas não devemos atribuir juízo moral às doenças
e aquilo não era amor
era apenas um ovo, diz a galinha
*
há muito tempo não vejo animais
ontem matei uma formiga e vi uma pomba esmagada
quis fugir para o cerrado, mas tive medo de cobra
e fiquei por aqui, mesmo,
sem galinheiro, sem minhas vizinhas de infância
que criavam coelhos e pombas pro abate
*
hoje acordei me sentindo um ovo
prometido no cu de uma galinha inventada
há meses minha conta no banco míngua
e eu tentando escrever a história da humanidade
e algo útil que entretenha e edifique meus contemporâneos
leio as cartas íntimas de um escritor que gosto
e penso "não devo mais escrever em primeira pessoa"
o fim do capitalismo, a implosão do sol
uma vida eterna de paz e harmonia na presença de Deus
me boto altos objetivos enquanto trabalho
dez horas por dia na esperança de não atrasar
outra vez
o aluguel
*
se nada mais der certo
meu amor minguar e a conta no banco implodir
se o trabalho faltar e tudo o mais não nascer
no caso extremo de o mundo nunca acabar
e a ruína for um destino pessoal que nada tenha a ver
com vocês
espero que o meu diário deixado num endereço anônimo
da rede mundial de computadores
essa metáfora datada da mensagem na garrafa
mas uma carta de prisioneiro escondida atrás do vaso sanitário
neste mundo de gente solta e satisfeita, quem tem a chave
das nossas celas eu não sei
a solitária
mas eu espero que esta carta
se não comida pelos ratos, que comem tudo,
sirva de companhia, algum dia,
para quem também estiver preso, de mentirinha,
no cu escuro, apertado, sem saída
de uma galinha
16.8.12
14.8.12
Hagiografia de Simone Weil
diz que Simone Weil, que no frio inverno da França largou a vida de intelectual universitária para trabalhar como operária nas fábricas, e magra doente com a mão atrofiada deixava de comer e não tinha calefação interna no pequeno quarto que alugava, passava frio e mal tinha par de meias, inalando diariamente as fuligens e os desmandos e enfrentando as máquinas quentes e o vento gelado da rotina de trabalhadora,
ela, que poderia ter uma vida mais confortável - embora fosse a década de 1930 e os nazistas logo invadissem a França, forçando sua família e seus conhecidos a migrarem a outros lugares, ou encerrando-os em campos de concentração de onde poucos sairiam vivos, exterminados por aqueles que só queriam o bem de todos, quanto tempo você acha que dura o seu conforto? -
ela, que por piedade e profunda comunhão com tudo o que é humano e sofre, e que teve vida exemplar de santa desde criança, quando sua mãe a tirou do banho numa noite fria da França e ela, tremendo de frio, dirigiu-se a si mesma, três anos de idade, e disse ao seu próprio corpo, ela que era força: "Tremes, carcaça?", e depois, mais velha, moribunda num hospital inglês, recusaria qualquer comida e qualquer tratamento porque a maior parte da população humana tem fome, não tem o que comer, e são todos iguais eu, iguais você, só que diferentes porque não têm o que comer, e que nos lembra em certo momento, em um de seus textos, que a maior parte da humanidade nunca sequer chegou perto de um banho quente
Diz que Simone Weil, um dia, ao conversar com seus companheiros de fábrica (ela que vivia sem calefação e sem meias, como já explicado, e era inverno, nevava na França), espantou-se ao saber que eles, com o mesmo salário, viviam menor privação que ela, porque não a buscavam
ela, que poderia ter uma vida mais confortável - embora fosse a década de 1930 e os nazistas logo invadissem a França, forçando sua família e seus conhecidos a migrarem a outros lugares, ou encerrando-os em campos de concentração de onde poucos sairiam vivos, exterminados por aqueles que só queriam o bem de todos, quanto tempo você acha que dura o seu conforto? -
ela, que por piedade e profunda comunhão com tudo o que é humano e sofre, e que teve vida exemplar de santa desde criança, quando sua mãe a tirou do banho numa noite fria da França e ela, tremendo de frio, dirigiu-se a si mesma, três anos de idade, e disse ao seu próprio corpo, ela que era força: "Tremes, carcaça?", e depois, mais velha, moribunda num hospital inglês, recusaria qualquer comida e qualquer tratamento porque a maior parte da população humana tem fome, não tem o que comer, e são todos iguais eu, iguais você, só que diferentes porque não têm o que comer, e que nos lembra em certo momento, em um de seus textos, que a maior parte da humanidade nunca sequer chegou perto de um banho quente
Diz que Simone Weil, um dia, ao conversar com seus companheiros de fábrica (ela que vivia sem calefação e sem meias, como já explicado, e era inverno, nevava na França), espantou-se ao saber que eles, com o mesmo salário, viviam menor privação que ela, porque não a buscavam
13.8.12
estados físicos do amor
no mar e
meio a torre
um barco
desabitado
*
das
árvores e bichos
que aqui viviam
vieram os homens com seus
asfaltos
cascalhos construíram lares
e às portas da cidade a zona
cercaram hospitais, cemitérios,
recebiam o circo, seu espetáculo
os homens
*
árido quente durante
o dia, o deserto realça
vida durante a noite:
répteis devoram mamíferos
a areia alacra escurecida
os cactos suspiram que bom
que o deserto tem vida
e o vento refaz
a paisagem
despida de oásis confunde
a caravana atravessa
camelos, tuaregues
*
nenhum guia
de turismo é digno
mamilo, pelos
olhos, o pescoço
manhã
que acorda
noite
vapor
que esculpe
gelo
meio a torre
um barco
desabitado
*
das
árvores e bichos
que aqui viviam
vieram os homens com seus
asfaltos
cascalhos construíram lares
e às portas da cidade a zona
cercaram hospitais, cemitérios,
recebiam o circo, seu espetáculo
os homens
*
árido quente durante
o dia, o deserto realça
vida durante a noite:
répteis devoram mamíferos
a areia alacra escurecida
os cactos suspiram que bom
que o deserto tem vida
e o vento refaz
a paisagem
despida de oásis confunde
a caravana atravessa
camelos, tuaregues
*
nenhum guia
de turismo é digno
mamilo, pelos
olhos, o pescoço
manhã
que acorda
noite
vapor
que esculpe
gelo
11.8.12
consciência histórica; berço
eu conversava com um amigo espanhol, em Buenos Aires, e ele me perguntava da história do brasil.
"então, quer dizer que você nasceu sob uma ditadura?!"
(nasci em 1984)
ele ficou muito surpreso. (mas não tanto quanto eu.)
"então, quer dizer que você nasceu sob uma ditadura?!"
(nasci em 1984)
ele ficou muito surpreso. (mas não tanto quanto eu.)
escrever também é sintetizar um conhecimento / o narrador, de Benjamin / que é o conhecimento dos tempos e espaços longínquos, mas tão próprios da pessoa que lê / no sentido em que a literatura é didática, pedagógica: ela ensina / o motivo que nos trouxe até aqui, e nos levará aonde ainda não sabemos com a razão diária, mas talvez saibamos de outros modos / lo que buscas te busca / o caminho da arte (fazê-la e apreciá-la) não é o da mesquinhez / a experiência artística é oposta à mesquinhez
6.8.12
quando eu era criança
eu e meu irmão tínhamos
dois pintinhos
que as crianças da rua vinham visitar
e todos brincávamos
de jogá-los para cima e vê-los
desesperados
tentar voar
lembrei disso agora
que decidi não matar mais pintinhos
nos textos literários
embora continue comendo frango, imagino
o arraigamento de certos hábitos
de todos.
viver é um hábito que eu não
perco as esperanças de adquirir
li em algum lugar.
pois bem.
esta é a história do pintinho.
que, enquanto as crianças não vinham, mal se lembrava
que tinha duas asas.
elas não lhe faziam falta.
ele ciscava no quadradinho do quintal.
a minha vó dava comida para todos nós
os pintos, meu irmão, meu avô e eu
depois ela saía de madrugada pela rua com medo de assassinos
vinte anos depois eu acordo de madrugada
e resolvo amar, sem ser assassino,
aquele pintinho.
eu e meu irmão tínhamos
dois pintinhos
que as crianças da rua vinham visitar
e todos brincávamos
de jogá-los para cima e vê-los
desesperados
tentar voar
lembrei disso agora
que decidi não matar mais pintinhos
nos textos literários
embora continue comendo frango, imagino
o arraigamento de certos hábitos
de todos.
viver é um hábito que eu não
perco as esperanças de adquirir
li em algum lugar.
pois bem.
esta é a história do pintinho.
que, enquanto as crianças não vinham, mal se lembrava
que tinha duas asas.
elas não lhe faziam falta.
ele ciscava no quadradinho do quintal.
a minha vó dava comida para todos nós
os pintos, meu irmão, meu avô e eu
depois ela saía de madrugada pela rua com medo de assassinos
vinte anos depois eu acordo de madrugada
e resolvo amar, sem ser assassino,
aquele pintinho.
Assinar:
Postagens (Atom)