29.11.11

e eis que levantando em armas seu algoz contra, vitimado em bico de sinuca e degolou o que o matava, e logo o povo livre e outra ordem e das ordens eis a ordem, novo líder

e eis que novos mortas e as trevas se abateram, a noite é dentro a noite e a cada dia é nova, a morta já não estava outras mortas e eis que fez-se noite para sempre

que outro algoz ao mesmo manda mesma guerra velha dança pisa as ervas

para que seu inimigo não mais florisse
semeou sal nas terras da família
e até hoje muitos séculos
nada cresce, eis que o mato
não resiste

e sopra o vento

a história é a história de como nos ferimos
e montanhas descem pó se faz do ferro
brota do amor a morte erro
eis a miséria, mãe de todo acontecimento

28.11.11

a aparição da virgem

tinha uma janela lá em cima no céu
mas ninguém viu

o que todo mundo viu foi a virgem
descoberta mãe
de deus no sanitário do interior
do brasil

a igreja aos
gritos e o papa condenava
mas fiéis juravam só
cheirar e cura
câncer aids
cura a corrupção nos poderes
públicos, na alegria pela
miséria, cura essa falta
de amor a virgem em forma
de merda

ave maria mãe de
deus

rogai por nós
cagadores

a tv de
domingo fazia
procissão à privada e
a dona do
banheiro concedia entrevistas
orgulhosa "fui eu quero
dizer foi deus quem
fiz a mão
moldando as
minhas entranhas"

ave maria mãe de
deus

bendita sois
entre as entranhas

o que todo mundo viu
foi uma água amarronzada
e a natural decomposição da santa
já que não se dava descarga

ave maria mãe de
deus

a dona da privada ficou
triste e nunca mais fez
cocô do mesmo jeito

as vizinhas ficaram
tristes por que a virgem
não sai do meu reto?

vou fazer uma procissão
tem piedade do bolo fecal

ave maria mãe de
deus

bendito o fruto do nosso
ventre

este texto podia ser sobre uma janela no
céu

mas as venezianas não estão
abertas

rogai por nós, sonhadores,
agora e na hora da nossa merda

22.11.11

polo

o degelo deixou o
mundo órfão do urso-polar

era uma vez um bicho que era branco
lineu viu e disse "urso", mas lá
naquela classificação latina dele

e polar, pois antes tínhamos inventado
a geografia

era uma vez a gente, que olhava o que chamava
de urso e se achava diferente

aí veio o degelo

deus, que não está pra brincadeira, apertou
o botão da geladeira e o planeta começou a
se escorrer

eu mesmo estou aqui escorrendo. de outros tipos de
degelo. penso no urso-polar e lembro dum livro didático
que dizia que para se camuflar no branco
polo o urso cobre o focinho escuro com as patas e pronto,
ninguém o vê

também que se o urso for
trasladado pra um lugar de calor vai morrer
de muito calor

no hemisfério sul estamos começando veraneio e os
pinguins e lobos-marinhos vão nadar em águas
mornas, alguns aparecerão mortos
na bahia, por força de correntes

outro dia vi uma foto de um urso-polar
comendo seu próprio filhote e não são canibais
tamanha a sua fome

é que vivemos tempos de muita escassez
diversos tipos de escassez

o homem é o urso do homem

21.11.11

Novas estratégias militares para tempos de assombro

a nova guerra mundial aconteceu do seguinte modo: o país B, atacado com festejos após tensões com o país A, resolve revidar, não diretamente, mas atacando o aliado de seu inimigo, que chamaremos país C. O país C, por sua vez, também dono de armas e bombas e gente mandada a morrer, ataca o país D, que mantinha relações diplomáticas com seu inimigo e manifestava, de vez em quando, descontentamento com as políticas do país A. Surpreso com a retaliação arbitrária que o acometeu, o país D mobiliza suas tropas e, para garantir a segurança nacional, decreta estado de sítio, ocupa os pequenos países E e F, seus vizinhos amigos dos países A e C, e ataca, para demonstrar seu poder bélico, o país G, limítrofe com o país H, que por sua vez é forte aliado do país A.

Não se pense, erroneamente, que a ordem das letras implica uma ordem geográfica, padrões de distância ou extensão territorial, nada disso. A ordem só serve para garantir que o nosso raciocínio consiga, de mãos lavadas, entender o exemplo. Também há que advertir que no mundo há mais países do que o alfabeto romano poderia imaginar. E há as pessoas, que não são computadas em letras e já chegam a cifras incontáveis, apesar das políticas públicas de contenção do crescimento populacional promovidas pelos países em guerra.

João Cabral de Melo Neto escreveu um poema muito bonito sobre o nascimento do dia. A primeira estrofe diz assim:

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.


Sabe-se que, enquanto os governantes declamavam a guerra, empresários do setor alimentício, justificados pela fome - que, assim como o PIB mundial, crescia silenciosa e apressadamente -, inventaram uma nova técnica de aproveitamento das granjas que consistia em triturar galinhas inteiras, suas penas e cristas, e disso derivar uma sopa aguada e nutritiva, com cor e cheiro de merda, que era vendida a preços justos após as cidades serem saqueadas.

Os galos, portanto, não mais existiam, por isso não cantavam. A manhã, contudo, continuava nascendo, o que demonstrava per se a inutilidade da poesia.

Não tão inútil se pensarmos que a estratégia de guerra acima demonstrada se parece muito ao esquema de amanhecer escrito por João Cabral. Um país lança um grito a outro / que apenas o apanha e a / outro lança em grito o / grito e muitos / gritos etc., até que o mundo todo esteja em guerra. A poesia, concluímos, é muito boa para profetizar e dar ideias, mas só a ação que deriva dela é que é útil. Também não diz verdades incontestáveis, pois a experiência comprova que um país, sozinho, sim pode tecer a guerra. O que ocorre é que todos juntos, digo, se todos nos juntarmos em favor do único objetivo que realmente temos em comum, a história será mais rápida e eficaz.

Cada um de nós é um galo. Cada um de nós é uma galinha.

20.11.11

A República das águas

um dique, fossa, foi-se construindo em volta do lugar, era a minha casa dentro de um aquário. Eu não tinha casa. Me dá impressão saber que o maior peixe do mundo, o tubarão-baleia, alimenta-se quase que exclusivamente de sêmen e ovas de outros peixes, que nadam em cardume espiralar e soltam gozo pra que a corrente faça os filhos, siga a raça, e sobre a minha cabeça vejo arraias bichos bravos militares de alto-mar, esta água ebulição, represa, prisão, a gente da cidade vizinha vem pescar aqui, desvio dos arpões,

se eu estivesse dentro de você, ó tanque, mas em prados e savanas igualmente. A presa não escapa pela tangente.


Construíram às portas do país uma barragem para o mar. As ondas acumulavam-se em força e criaram um ódio profundo da gente. Não tardou mais que alguns séculos (as águas são o tempo) e o sal rompeu os muros, corroídos, o mar feito manada exército inimigo tomou nossas terras seguras e secas. Neste momento estamos mortos, trancados no rancoroso ventre das águas.

O helicóptero que sobrevoa esta desgraça busca lugar de pouso.

"O tempo está bom hoje, não, comandante?"
"Está sim, senhor governador."

Os soldados que guardam a vida dos tripulantes metralham a água abaixo, um pouco por diversão, um pouco por costume, também mera revanche, e caso haja algum sobrevivente, e também por incontida indiferença aos peixes.

"Ah, acho que encontramos um lugar!"
"Ah... [o governador boceja]"

O helicóptero pousa na única ilha do mundo. "É pequena, mas deve dar". Uns macaquinhos curiosos chegam perto e logo são abatidos, dos couros fazem cachecóis e a carne comem tostada na fogueira. "Não estava nada mal". De pé na ilha vê-se o entorno, águas calmas tentam subir pelas praias. De pé, vê-se toda a ilha, que tem a forma de um pássaro gordo, mais bem de uma galinha.

"Dormiu bem, senhor governador?"

O governador e sua senhora arrumam os cabelos. Têm cara de gente satisfeita e desgostosa. A mulher vai para o fio d'água que brota do centro e lava o rosto, os pés, e as orelhas. Olha para os lados envergonhada, todos desviam o rosto, e ela lava os sovacos e os seios, por debaixo do sutiã.

"É melhor começar as obras logo", diz o governador, "Não temos porque perder tempo."

O tempo, sabe-se, evapora. E os soldados tiram do helicóptero sacos de cimento, começam as barragens. À noite, revezam-se na mulher que levam prisioneira e que, para que não se mate, é mantida sempre sob a vigília de uma pistola. Satisfeitos com a vida, quarenta dias depois já têm pronta a muralha da ilha.

Deixadas de fora, as ondas arranham e retrocedem estrategicamente. Os peixes se preparam.



*


"Eu acho" diz a primeira-dama "que nós não devíamos pintar os muros". O governador só tinha sugerido porque a mente do homem fica apática com o ócio e sugere coisas ao acaso. O pescoço dele formiga de sono. A primeira-dama olha com certa tristeza para a mulher acorrentada que varre o chão com uma pistola apontada pra cabeça. A primeira-dama suspira, também apática, pensando que seria transtorno pôr cor nos muros, imagine o cheiro de qualquer tinta preso naquela terra sem brisa, e ter de olhar as mesmas cores para sempre. "Mas, se você quiser, eu não me oponho" diz ao marido.

O marido dorme o leve sono dos justos, sem roncar. A primeira-dama suspira quando percebe, e volta a encarar os entornos cinzentos de sua nova casa. Procura na mente algum catálogo de cores, retângulos imóveis coloridos, ela era muito boa pra visualizar essas coisas. Antes da cheia (como os da ilha chamam esta desgraça) em rodas e festas até diziam que esse era o seu talento, e ela nem dava muita bola, mas é sempre gostoso ter um talento. Visualizar as coisas.

"Eu acho", ela pensa, como se estivesse falando com o marido, era seu costume, e recompõe-se pra ser mais ela mesma ao dizer, em pensamento, o que diz:

"Eu acho", pausa breve, "que bege é uma cor linda."

18.11.11

material bruto

exército dos estados unidos testa míssil cinco vezes mais rápido que a velocidade do som, capaz de atingir qualquer país do mundo em menos de uma hora.
tiraram da boneca russa o dentro do dentro do dentro. e lá no fim uma boneca oca. a criança abre e

a) se decepciona. pois tanto atraso de surpresa seguro devia te levar a algo mais generoso, uma joia um caramelo. quantas vezes na vida eu vou chegar ao fim e descobrir que mais valia o gozo do começo - boneca enorme e cheia, chacoalho de mistério.

b) diz "ah!" em tom de revelação, sabedoria. abre o fim e um vácuo te libera: boneca incompleta. põe de lado as cascas isso não me interessa. no caminho para a rua (vai pôr os pés na rua) vê a mãe de costas na cozinha. revelação: a gente também vai se deixar. se abrir e se descobrir nada. que importância têm estas cascas? porque há vazio, eu brinco.

c) percebe colada às parede da última boneca uma última e ínfima boneca. (acho que estou usando palavras muito rebuscadas. é que ainda não cheguei na ínfima boneca). o ínfimo é simples, sem detalhes de pintura, cílios, mas vai ficando mais difícil. de você abrir. a criança cresce e se especializa em bonecas russas, porque desde então vem encontrando uma cada vez menor dentro da primeira que abriu, há muito tempo, era o seu tamanho. não teve tempo de ter filhos. suas unhas, grandes e finas de auxílio, às vezes se cortava o rosto num descuido. e foi trabalhar só pra ter dinheiro pra comprar as ferramentas para abrir mais as bonecas. milímetros, centésimos de milímetro. a última boneca era um átomo. depois dela havia outra. a última boneca era deus. mas depois desta também havia outra. uma vida humana não chega a tanto.

(a minha, pelo menos)

(ou vai chegar?)

estudo das prioridades: acho nojento quem dá migalha pra pombo, promove as doenças na população. mas fui comer bolacha no parque e achei que seria injusto jogar as migalhas no lixo, onde não iam alimentar ninguém. os microrganismos são ninguém? na hora nem lembrei deles. joguei no chão e vieram dezenas de pombos. alguns se bicaram e fizeram briga sangrenta. um mais metido se pôs no meio das migalhas, pisava nelas e bicava quem chegasse perto. comeu quase tudo e foi embora quando quis. pardaizinhos olhavam de longe e mal se atreviam.

os pombos são bem ferozes.

agora estou juntando migalhas e mal posso esperar para ir de novo à praça.

estudo das prioridades: comer.

16.11.11

o que os europeus fizeram com a américa é uma prévia do que vamos fazer com outros planetas. já se fala em terrificar vênus ou marte.

14.11.11

o ataque

há uma grande probabilidade
de que as árvores voltem
e nos ataquem

governantes em cúpula
reúnem-se e decidem
um plano secreto estratégico
pro caso do acosso

o regime
precisa de quem
o escreva e assim
garanta coesão
discursiva às suas
ações

tragado pelo salário,
para não passar mais fome,
mando meu currículo,
sou aceito e instruído
do que devo escrever

digito com medo,
pensando que deveria ter escolhido outro emprego,
vendedor de livros, por exemplo

mas já fui vendedor de livros
e também não estava satisfeito

isso foi antes do ataque
agora só tenho medo

as árvores
que tinham deixado o planeta após um diagnóstico
reaparecem camufladas na noite

quando acordamos, uma manhã
estão de novo plantadas
nas ruas, nas florestas, nos inesperados

só essa presença gigante das árvores
já nos faz caminhar atentos, esperando o perigo,

também nos faz respirar aliviados

11.11.11

the rancor, the rancor

uma mulher nos estados unidos tem
a perna que cresce mais que tudo chega
a trinta quilos só de perna. amputaram-na
e ela continua crescendo. a mulher aparece
sorrindo nas fotos do jornal, não condiz
com a terrível enfermidade que é uma perna que cresce
e que não para, mesmo depois de amputada

*

um bebê desnutrido na somália sobreviveu e
passa bem, as pessoas contentes compartilham
por facebook "ainda bem" e comemoram. cerca de
50% das crianças latino-americanas são pobres diz
estudo da unesco, quantas crianças morrem ou deixam
de morrer todo dia no mundo por desnutrição é uma coisa
que o facebook não dá conta de explicar.

*

eu e a giovana ficamos analisando a situação
política do brasil e previmos que tudo se assemelha a
1963, donde concluímos que o golpe está próximo. depois
pensamos que não parece tanto assim 1963
donde concluímos que pode ser pior, até, um
recrudescimento do estado totalitário sem necessidade
de uma ditadura explícita, pensamos no méxico,
pensamos na colômbia. voltei pra casa, passei mal
e não consegui mais trabalhar. acho que é um sintoma
e (talvez) um prenúncio medonho dos novos tempos
que eu tenha internet de banda larga e não tenha
comida na geladeira.

9.11.11

Teoria do Mundo

O mundo acaba a cada
vez: que alguém morre ou se
estraçalha uma bala de
fuzil num corpo
inerme, ou a conta não
é paga e te expulsam ou
te prendem. O mundo acaba
várias vezes.

Se uma árvore cai no
meio da floresta e ninguém
ouve faz barulho? Ela é menos
árvore?

Depois, esquilos saltam
do tronco o mundo renasce:
na matéria decomposta, nos novos
rumos da carne. Em quem encontra
a árvore morta e
chora, diz "Ai
esta árvore".

Ai esta Terra. Que
gira e deixa a gente
tonto. Chacoalha de si
tantos tipos de árvores.

Às vezes,
chacoalha também
algum tipo de monstro.

A gente gira junto.
Não podemos fazer de outro modo.
De girar e girar, de repente é que
a gente se encontra. E o mundo,
que tinha acabado,
reabre suas comportas.

A manhã, meu bem, é uma volta.

7.11.11

criança

meu pai contava com
orgulho a infância pobre quem
não tinha o que
queria, brinquedos
rústicos (meu pai
antes que rústico era
meio cru, mesmo) se
orgulhava da dureza

minha mãe dizia
depois, de canto, que
não era bem
assim, vê, seu pai
tinha até algum dinheiro
e nostálgica lembrava
a infância dela mesma
era quase uma pobreza
guaraná só de domingo
mas a gente era tão unido

(eu, criança, odiava
ser criança. ficava pensando
"ai quando eu crescer". até que pensei
que se eu só adiasse a
satisfação ela nunca chegaria, sempre no "ai quando".
aí eu falei "tá bom".
hoje raramente tenho saudade.
vejo que eu não gostava mesmo.
mas vai saber daqui a alguns anos.
fim do parênteses)

minha avó é a única que passou fome.
fala da fome sem saudade, sem sentimento.
diz "era muito ruim". meus outros avós
também contam pouca vantagem. parece
que a vida melhora e a gente fica mais besta.
eu mesmo não paro de reclamar. nunca nada está bom.
a gente fica equilibrando a vida. ela por si só
desequilibra e cai do barranco.

(eu, criança, via muito
a xuxa. acho que foi isso que me deixou tão triste.
a mesa de café da manhã da xuxa. ela
escolhia a criança mais pobrinha e dizia
generosa "você pode escolher O QUE quiser"
assim, no singular.
a criança ia lá e escolhia a fatia de melão.
um doce aguado, um verde sonso
o do melão. a criança, decerto, sentia vergonha.
de pegar algo mais xuxa.
pegava o melão, que era ela mesma.

eu, se eu pudesse, eu matava a xuxa afogada.
se isso fosse trazer justiça pro planeta.

mas coitada da xuxa.
coitada da gente.)

quero muito ter um filho.
só não sei se fico vivo até lá.

6.11.11

o messias

tenho vontade de
ir nas escolas e dar
palestras como fosse
um doce proibido
nos intervalos dos vigias
dizer às crianças que mais
vale um cachorro vivo

e terrorista, caramelo,
semear um chão de discórdia,
essas crianças crescerão para
deixar seus postos de
trabalho, deixar as bibliotecas,
certificar-se de que os
cães são tratados todos como gente
e que a gente é tratada toda como cão
somos iguais, somos irmãos

ser escritor é uma bobagem tão grande quanto ser qualquer coisa.
o bernardo fala de orientes onde
ser é intransitivo.

também sou professor. por piada
cármica sou brasileiro. fico surpreso de ser
filho da minha mãe. a lista segue.

mas eu não acompanho a lista. já
falei: vou pras escolas (preso à minha classe
e a alguns planos) de transformar todas as pessoas
bem alimentadas do planeta em
miseráveis

pode parecer egoísta da minha parte, querer que todo mundo seja miserável como eu. mas é bem o contrário. quando ninguém tinha nada pra comer, jesus multiplicou os pães e os peixes e cada um recebeu uma quantia igual, pequena o bastante para não se fartar, grande o bastante para ser suficiente. se jesus vier agora, nesse tempo de bonança econômica (ainda para a europa e para uns demais desavisados), vai repartir a miséria. a cada um, a sua parte. pequena o bastante para não se fartar, mas grande o bastante para ser suficiente.

5.11.11

bélgica

todo dia no brasil desmata-se ou
deixa-se (mais raramente) de desmatar uma
área do tamanho da bélgica e da holanda
eu conheço (por acaso) alguns belgas
não acho que nenhum deles tenha morado na
floresta amazônica

quando ouço essas notícias me
estarreço: como é que pode caber tanta
europa por aqui?

este ano passei de raspão na
europa. não quero parecer mal agradecido,
mas não achei lá grande coisa

pra amazônia nunca fui. morro de medo
da floresta. gosto de ler e aguento
comprar veneno contra as baratas, se for
o caso

natureza domesticada, as baratas ao menos
não me comem (que nem jiboia
onça jaguatirica comeria)

(às vezes fico muito cansado de ter
que estar em algum lugar. hoje
por exemplo estava na marcha do
orgulho gay e pensei "pra que tanto
corpo meu deus" pensei "que cu santo
deus que cu!")

também fico pensando que a bélgica
inteira já foi desmatada e que o nosso
destino é afogar índios o máximo que possa

eles nos rogam pragas, o continente
todo um maldito cemitério, na colômbia descobriu-se
que funcionários de cartório davam-lhes nomes
(aos índios) como ford ou volkswagen
pra zoá-los

me estarrece (mais que a bélgica) que haja quem
não se estarreça com essas coisas

de todo modo, termino o dia me sentindo muito
sozinho

chego da marcha gay, só tenho uma dúzia de bolachas pra comer.
tenho essas bolachas e o sentimento do mundo.
que me servem?

mas como
minha mãe foi uma das que me ensinaram que
há sempre gente passando pior, por isso não podemos
reclamar, então eu penso (sei) que tem muita
gente que tem muito
menos que isso - nem as bolachas, outras nem
o sentimento do mundo, minha vida
é uma desgraça, e eu lá posso
reclamar?

sei que tinha vontade de escrever a grande
épica do nosso tempo, contar pro futuro
a nossa história, e pro presente esta derrota e
as saídas.

talvez porque não veja saídas.
talvez porque só tenha bolachas
e um companheiro de quarto com o pé
machucado, não pode sair pra trabalhar.

eu trabalho, vou na marcha, ainda tenho
casa, já disse que tenho bolachas, me
distraio com esses imediatos, tusso
porque engasgo, e perco (nem percebo)
o sentimento do mundo.

abóboda celeste,
magmas vulcânicos,
oceanos incontestes:

perdoai.

quantas bélgicas caberão na minha
ideia e se tais bélgicas caberão neste
planeta, fica a dúvida.

líderes líbios são linchados,
guerrilheiros colombianos são caçados,
minha avó esquizofrênica passa bem por quanto tempo?

hierarquias, minhas famílias,
atlas geográficos escritos em papel virgem,
mortas árvores o mercado editorial,
a microsoft, o câncer que matou o dono da
apple, a big apple, isaac
newton, já não
posso ver a todos

fico atento: percebo
que não morro agora
o aleph. hoje de manhã acordei
muito cedo. tenho as costas doloridas.
nas minhas costas acaba a poesia.

então paro. e findo tudo. olho
em volta não há bélgica. os belgas nem são
meus amigos. só gente que eu conheço
(por acaso)

um deles escreveu que
apenas um execrável imbecil sem
nenhum motivo pra orgulhar-se se
apega à terra em que por acaso
nasceu

era, obviamente, uma
crítica ao patriotismo

com a qual eu concordo, e assimilo
de igual modo esse acaso todo: cordilheiras,
cemitérios vivos, gente alheia

os olho e quero dizer:
"já não me apego"

- ó massa informe chamada mundo
nós somos vós
(nós somos vós)

3.11.11

Meu pai foi para a guerra

meu pai não deixava ninguém sair de casa. Se saía, tinha que levar celular, suprimentos e cordão de identificação. "Porque a guerra vem". A guerra sempre vinha. Um avião despejando bombas, veneno no abastecimento de água. Corjas que durante a noite invadiam nossa casa e estupravam a família, exércitos ninja, ianques famintos. De todos os lados a guerra vinha. "Mas, pai, você não vê que está tudo bem?". Eu tinha feito dezoito anos e ele me olhou com suspeita. Porque nunca se sabe onde está o inimigo.

Nos dezoito anos dele, foi levado pelo exército e o obrigaram a beber sangue de galinha para sobreviver na serra. Por isso ele estava gabaritado para nos proteger do que viesse. O que vinha era a gente mesmo, mas no futuro. Meu pai nas barricadas do futuro. Ou então o passado, fotos antigas que podiam ter sido manipuladas. Meu pai trancava a casa e revezávamos na vigília. Alguém sempre tinha que estar desperto, pois à noite vêm os lobos. Jesus disse: voltarei como um ladrão, não saberão a minha hora. E raios de luz desceriam dos céus, cegariam os infiéis. Meu pai, arrebatado, nunca mais precisaria beber sangue de galinha. Era perigosa a nossa vida. Também está escrito, no Apocalipse, que é o livro das revelações. Sobre a segunda vinda de Jesus:

E naqueles dias buscarão a morte. E não a encontrarão.

"Pai, dorme um pouco!"

Já eram trinta e cinco anos de espera. As notícias pela televisão eram recebidas com ansiosidade e igual desconfiança. Opositores do regime prenderam o presidente líbio. Torturaram-no até a morte. "Até a morte" é muito ou pouco tempo? Ainda não morri. Mas às vezes parece que a semana passa mais rápido. A chefe de governo dos Estados Unidos ri do fato. Em Cannes, um encontro de líderes mundiais sitia a cidade, impede o livre trânsito de pessoas, força à revista mulheres grávidas e crianças de oito anos. O mundo é um lugar seguro, igual a nossa casa. Mas e o tempo?

O tempo mata indiscriminadamente.

"É ele que vem", meu pai diz. Observa pela fresta do portão. Passam vizinhos com seus cãezinhos. Nossa casa está pichada com palavras que machucam muito. Queria eu tê-las pichado. Mas estou dentro. E estoura uma granada.

"Vamos!". Por trás do sofá, meu pai veste um capacete, improvisa um abrigo sob a mesa. Os delírios são constantes. Ou será que eu é que estou delirando? Quando olho da janela e vejo: o mundo não se move. (Explode.)

A Terra, no entanto, dá uma volta completa em pouco menos que vinte e quatro horas. Fico em dúvida: pra que lado? Caio. Meu pai me pergunta: "você está bem?!". Respondo que sim, só tive um ligeiro mal-estar, uma zonzeira. "Filhos da puta". Não, não foi ninguém, fui eu mesmo. "Proteja-se!". (Explode.)

Esta paz é uma desgraça. Ameaço vestir uma máscara e atacar meu pai de surpresa, as guardas baixas. Matá-lo e tomar seu sangue como se fosse o da galinha. Ai, galinhas, que inveja, são tão sem guerra. "Precisamos de mais suprimentos". Mas é só uma ideia. Saio arrastado pelo portão. Já na rua, sob o olhar malvado de alguma criança, me recomponho como homem sem medo e vou até o mercadinho da esquina. Sem ter o que temer.

"Eu quase nunca vejo vocês. Sem querer ser indiscreto: você trabalha no quê?"

O dono do mercado me entregaria à polícia, e às minhas latas de atum. "Sou escultor". "Ah...". Ele parece não saber o que fazer com a informação. "Como assim? Faz esculturas?". Imagina o busto de alguém muito importante sendo talhado pelos meus dedos. Um homem sério e de bronze, modelo a ser seguido. Mas não consegue definir o rosto. De qualquer modo, está admirado. "Mas você não faz escultura de político, né? São todos uns ladrões". Digo que não porque ainda não me obrigaram. Entrego-lhe um pacote de salsichas. "E você mora sozinho?".

Desejo-lhe boa tarde e volto para casa curioso de como seria se eu fosse escultor. Há que manter o máximo sigilo. Fico triste por não saber mexer em bronze, pedra, terra ou madeira. Comprei uma caixa de fósforos. Tacaria fogo no meu pai, quando ele estivesse distraído. É só uma ideia.

Atravesso as barricadas da minha sala, da minha cabeça. Isso aqui está uma bagunça, isso sim. "Pai?", pergunto pela casa. Mas a casa não responde. Guardo a comida atrás do móvel da televisão, abro o pacote de salsichas e mastigo a ponta de uma, pensativo. Às vezes fico muito sozinho.

Pai?

Mal percebo que alguém entrou em casa. Estava dormindo, essa hora em que nos descuidamos do mundo dos vivos. Tive sonhos agitados e esquecidos. Uma luz ora azul ora vermelha tinge as paredes da sala e homens bravos gritam em português coisas que eu quase não compreendo. Se alguém fizesse meu busto, seria um amontoado de folhas secas, ou de restos de papel, cascas de fruta jogadas pelo vizinho. A vala comum dos dias guarda monstruosidades e dela brotam plantas comestíveis que alimentam toda a população. Uma viatura me espera. E porque eu nunca servi ao exército, e porque eu sou órfão, e porque ainda não chegou a guerra. É que me absolvo. E vou.

1.11.11

desde a realidade
as cartas chegam
trazem promessas de futuro
e condutas del buen vivir
sacerdotisa sobre a mesa
correspondente que não chega

*

desde a realidade
as cartas chegam
bolsas de correspondência
furtadas do trem
pagador, encontraram-nas
anos luz depois no
covil dos ladrões
que choravam feito crianças sem mãe
lendo as saudades dos outros

*

desde a realidade
que cartas chegam?
os presídios entupidos na margem
da autopista. gente que não sabe escrever,
eu alfabetizado e mal posso, vão
encontrar uma síndrome
viral no mundo
desenvolvido: e apenas as pessoas forte
poderão dizer

*

desde a realidade
a greve dos correios
uma mesa armada desarma o futuro
não traz notícia dos bombardeios

*