tenho visitado muitas
estações de trem anoto horários
de partida feito bedel
dos corações "ah este
parte em boa hora" depois
direi ao maquinista que o
aprovo "ah este
está todo equivocado"
diz que "equívoco" quer
dizer "voz partida"
na origem
na minha cidade tinha
trem que ia que nem
jegue (dizem) devagarinho
vai ver cada pessoa
tem as características do trem
em que nasceu
devagar mas certeiro
porque os trilhos não se equivocam
os trens são todos iguais
a menos que ocorra problema no freio
má administração decorrente descaso público
meu coração importe menos que a situação econômica do mundo
os trens são todos iguais
chegam
até não poder mais
mesmo vazio, um trem nunca desiste
mesmo após despedidas
e não se pode dizer do trem
"poderia ter ido para lá"
quando "para lá" é um lugar sem trilho
você não vê o trilho porque está boludeando
mas o trem sim sabe
e continua
à noite o maquinista
antes de guardar
a máquina no estacionamento
tem que percorrer os vagões
(não farei poema pra palavra vagão)
e mandar os bêbados e os cansados
sem coração e sem trem para o meio
da noite
cada um sai
cambaleando
e para no primeiro muro
que ladeia a estação
se encolhe, treme
(a noite é fria)
e espera nova passagem
pra quem fica
e nem entrou nesta história
o trem é uma viagem
que diz não
27.5.12
os grandes poetas da nossa geração
fazer disso
uma carreira
igual aquela de pó
em que o menino contraiu hiv
por compartilhar o canudo metálico
escreve lindos poema
dá valor à poesia
porque ah
a poesia
dá valor à língua ao verso
até à rima
tonto é eu
nem aí pra tudo isso
quebro a linha por vício
rimo por preguiça
mas não quero nem saber
de carreira verso língua
acho boba a poesia
viver
isso é que é difícil
a gente acorda e fala
e agora?
vai dormir e fala
meu deus E AGORA?
mas deus não existe desde os quinze anos
como profissão, sou revisor de texto
faço mapa astral
tudo isso muito mal
antes eu via passarinho
mas não dava dinheiro
e os passarinhos tudo voaram
tenho muita raiva de quem fez voar os passarinhos
achando que tinha muita coisa a dizer
agora fico escrevendo, sozinho
se eu pintasse, eu pintaria
sento no banco da praça e olho a árvore
desenho volta
volta, passarinho
*
mentira
não tem essa nostalgia
continuo com raiva, mas
que nem diz meu amigo
"não guardo um pingo de rancor
daquele filhodaputa"
paciência
passarinho voa porque tem asa
certo ele
se eu tivesse, também voava
por bom revisor de textos, no entanto, me dão dinheiro
com que compro caneta, pago a internet
e escrevo:
era uma vez...
eis aqui UM PASSARINHO!
uma carreira
igual aquela de pó
em que o menino contraiu hiv
por compartilhar o canudo metálico
escreve lindos poema
dá valor à poesia
porque ah
a poesia
dá valor à língua ao verso
até à rima
tonto é eu
nem aí pra tudo isso
quebro a linha por vício
rimo por preguiça
mas não quero nem saber
de carreira verso língua
acho boba a poesia
viver
isso é que é difícil
a gente acorda e fala
e agora?
vai dormir e fala
meu deus E AGORA?
mas deus não existe desde os quinze anos
como profissão, sou revisor de texto
faço mapa astral
tudo isso muito mal
antes eu via passarinho
mas não dava dinheiro
e os passarinhos tudo voaram
tenho muita raiva de quem fez voar os passarinhos
achando que tinha muita coisa a dizer
agora fico escrevendo, sozinho
se eu pintasse, eu pintaria
sento no banco da praça e olho a árvore
desenho volta
volta, passarinho
*
mentira
não tem essa nostalgia
continuo com raiva, mas
que nem diz meu amigo
"não guardo um pingo de rancor
daquele filhodaputa"
paciência
passarinho voa porque tem asa
certo ele
se eu tivesse, também voava
por bom revisor de textos, no entanto, me dão dinheiro
com que compro caneta, pago a internet
e escrevo:
era uma vez...
eis aqui UM PASSARINHO!
26.5.12
a larva se guarda pra depois virar
também o planeta
acordou esta manhã e cansou-se de girar
os helicópteros informam o mormaço
fátima, há cinco horas que a hora não passa
o maquiador da fátima se benze nos bastidores
e a igrejas se enchem de gente apreensiva
em algum lugar no livro de juízes
o Senhor fala para josué "vou te ajudar"
e impede sol e lua se mexerem
ficam parados juntos no céu por vários dias
os ímpios tremerão
***
uma fina capa de prepúcio
cresce atmosfera em catarata
meus amores, eis aqui nosso crepúsculo
diante da desgraça, que mal tom tentar a rima!
seguiram-se meses de mesmice e sofreguidão
pedimos ao Senhor e aos senhores de todas as nações
a ciência também tenta solucionar esse abandono
e no entanto não se move
***
minha cabeça está assim
parada, esperando um meteoro
um cometa sem órbita que ponha tudo no lugar
enquanto isso bombas atômicas são testadas
no atol de biquíni pelas grandes potências
minha cabeça seus filhos pesar do continente
por eles mesmos rezam por tudo o kadish
que um deles se desprenda dos lamentos
e agradeça a gravidade, o atrito, invente música
dance que nem dervixe
***
casulo móvel
também o planeta
acordou esta manhã e cansou-se de girar
os helicópteros informam o mormaço
fátima, há cinco horas que a hora não passa
o maquiador da fátima se benze nos bastidores
e a igrejas se enchem de gente apreensiva
em algum lugar no livro de juízes
o Senhor fala para josué "vou te ajudar"
e impede sol e lua se mexerem
ficam parados juntos no céu por vários dias
os ímpios tremerão
***
uma fina capa de prepúcio
cresce atmosfera em catarata
meus amores, eis aqui nosso crepúsculo
diante da desgraça, que mal tom tentar a rima!
seguiram-se meses de mesmice e sofreguidão
pedimos ao Senhor e aos senhores de todas as nações
a ciência também tenta solucionar esse abandono
e no entanto não se move
***
minha cabeça está assim
parada, esperando um meteoro
um cometa sem órbita que ponha tudo no lugar
enquanto isso bombas atômicas são testadas
no atol de biquíni pelas grandes potências
minha cabeça seus filhos pesar do continente
por eles mesmos rezam por tudo o kadish
que um deles se desprenda dos lamentos
e agradeça a gravidade, o atrito, invente música
dance que nem dervixe
***
casulo móvel
o aprendizado pela fruta
de muito a fruta
cresce não cabe mais
na própria casca, rompe-se
mas não é crisálida
fica lá, rompida
entram bichos bactérias na fruta desprotegida
dão doença pra quem come
fruta, no entanto, também se chama
as bichas, e este aprendizado
pode ser confundido com metáfora
barata, ninguém mais se comove
com frases manjadas e emoções batidas
sem grande potencial literário
a fruta em cacho é comida
uma por uma os galhos
se desnudam. hoje é sábado,
dia em que até deus descansou
nalgum prado próximo ao mediterrâneo
videira lembra tanto vida
as uvas abertas estão
uma delícia
cresce não cabe mais
na própria casca, rompe-se
mas não é crisálida
fica lá, rompida
entram bichos bactérias na fruta desprotegida
dão doença pra quem come
fruta, no entanto, também se chama
as bichas, e este aprendizado
pode ser confundido com metáfora
barata, ninguém mais se comove
com frases manjadas e emoções batidas
sem grande potencial literário
a fruta em cacho é comida
uma por uma os galhos
se desnudam. hoje é sábado,
dia em que até deus descansou
nalgum prado próximo ao mediterrâneo
videira lembra tanto vida
as uvas abertas estão
uma delícia
24.5.12
hepática
se deixo um
silêncio entre as
pausas (os ex-
namorados, o trabalho
atrasado, a passagem de
volta) meu
fígado cresce e me encontra
deitado na cama, sem vontade de
ter fígado
só lembro dele por causa de um remédio
que dizem pra eu beber menos
enumere as coisas que machucam o corpo
uma amiga me conta
de um menino muito bom
que contraiu hiv
com o canudinho de cheirar cocaína
o fígado
me lembro
é um órgão que cresce sozinho
(e é o maior do corpo humano)
digo: se corta, cai a metade,
se falta e ninguém encontra
onde o levaram
o fígado infla, ganha
mais células, reproduz-se
sozinho
penso "pai,
dê-me a capacidade de ser fígado"
penso "credo", me arrependo
e deleto o deus do pedido
era bem se fôssemos todos
diferentes mas nisso siameses
compartilharíamos do mesmo órgão grande
massa escura e mole comum a todos
ninguém poderia dizer assim, à pessoa ao lado
"deste fígado não comerei"
silêncio entre as
pausas (os ex-
namorados, o trabalho
atrasado, a passagem de
volta) meu
fígado cresce e me encontra
deitado na cama, sem vontade de
ter fígado
só lembro dele por causa de um remédio
que dizem pra eu beber menos
enumere as coisas que machucam o corpo
uma amiga me conta
de um menino muito bom
que contraiu hiv
com o canudinho de cheirar cocaína
o fígado
me lembro
é um órgão que cresce sozinho
(e é o maior do corpo humano)
digo: se corta, cai a metade,
se falta e ninguém encontra
onde o levaram
o fígado infla, ganha
mais células, reproduz-se
sozinho
penso "pai,
dê-me a capacidade de ser fígado"
penso "credo", me arrependo
e deleto o deus do pedido
era bem se fôssemos todos
diferentes mas nisso siameses
compartilharíamos do mesmo órgão grande
massa escura e mole comum a todos
ninguém poderia dizer assim, à pessoa ao lado
"deste fígado não comerei"
20.5.12
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quem é você, nem isso lhe saía da boca. Depois não vai lembrar: idade, altura, nunca saberá dos amigos de infância, se tem uma irmã. Se gosta de queijo, café, o tipo de música, você, quantas coisas vai ficar sem saber.
"Chuta a cabeça dele"
Embaixo deste chão tem ossadas extintas, desintegradas pelo tempo. Nós o revolvemos e sobre asfalto, calçamento, coturno, cabelos. Antes disso eles vieram pela rua feito matilha, covardes, um batalhão discreto matando a noite e chegando bote nas bichas da praça. A homofobia mata uma pessoa a cada dois dias no Brasil. Mas da homofobia nós não sabemos o nome, a altura, se tem irmã, quais sonhos congelados. Quem me matou foi você.
"Vera, o Leão mandou você parar tudo. Tem um morto pra cobrir". Vera detestava trabalhar lá e detestava ainda mais esse apelido de Leão. Entrava na sala do chefe pensando hipopótamo, mamute. O chefe gordo atrás da mesa. Quando falava, babava pelos cantos. Formava-se uma bolha de espuma na barba e ele não queria limpar. Do medo viemos, ao medo voltaremos. Vera trincava os dentes de raiva e perguntava o que era.
"Mataram uma bicha na República. Corre lá pra gente fechar a edição. Vê se dá capa." Vera detestava ser a Leoa. De um lado pro outro, caçando carniça para alimentar o chefe. Dessa vez ele nem tinha olhado para ela, o que era melhor, o que era terrível. Ela tinha que olhar pra ele, não importava se quisesse. Concentrou o ódio na maçaneta da porta e girou-a sem estrondo.
Já era madrugada quando desceu do prédio e rumou a pé para a República. "Eu vou com você!", "Não vai não". Tirou a máquina das mãos do foca, que ficou plantado de boca aberta na porta do elevador, e apertou o térreo. Sentiu a brisa gelada, salpicada de sereno ácido de outono no centro de São Paulo, escorrendo pelo pescoço. Um bêbado mexeu com ela. Não era qualquer mulher que fazia uma coisa dessas. Podia ser perigoso, podia não-sei-quê. "Merda", ela quase foi atropelada. A gente se preocupa tanto com estupradores e quase morre nas rodas de um carro imbecil.
Vera não tinha medo de estupradores. Eles é que deveriam ter medo dela. Olhos, garganta, virilha, Vera podia nocautear qualquer um, tinha certeza. Às vezes ela esperava à noite, na rua, que alguém tentasse alguma coisa. Um dia foi roubada, mas não se moveu. O ladrão não tinha mais que quinze anos.
"Esse jornal não é lugar pra moça delicada", disse o Leão. "Nenhum lugar é", ela respondeu.
"Tá certo, tá certo. Olha, você deu sorte que um repórter nosso morreu semana passada. O pessoal tá reclamando de muito trabalho. Traz uma matéria aí, faz do jeito que você quiser, só não me enche o saco. Aí a gente vê". Ele acendeu o cigarro e abriu a janela, começou a tossir.
Dois anos depois e ela não tinha orgulho nem vergonha / nada / do que tinha escrito / vontade nenhuma de continuar naquilo. Mas ainda pagava as contas, e ela ainda tinha contas. Voltara com duas páginas pingando sangue, a história de um grupo de travestis que tinha assassinado o cliente de uma delas. MÁFIA DOS TRAVESTIS - CLIENTE NÃO PAGA A CONTA E ANORMAIS DÃO BEIJO DA MORTE. Ainda era uma das edições mais vendidas do jornal e o emprego era dela.
"Cadê a Vera?"
"O chefe mandou ela ir na República, parece que mataram um gay"
"E ela foi sozinha?"
"Foi, pegou minha câmera e tudo. Não quis que eu fosse"
"Mulher brava!"
Vera devia ter alguma proteção especial, é o que Virgínia sempre dizia. Mulher sortuda, "e não só porque me encontrou". Virgínia sorria e tirava as cartas. "Que besteira". Mostrava a carta da Estrela e dizia que os antigos acreditavam: o ser humano é vindo das estrelas. Gente é luz. E a sua luz é boa, meu amor.
Acontece com frequência que o céu de São Paulo não te deixa ver estrelas. Apagadas aqui embaixo, como se o asfalto fosse antimatéria e puxasse o nosso desejo pra rede de esgoto, o barulho dos sapatos e das rodas, os bares cheios, tudo o tempo todo um medo manso, "que paciência tem esse medo!". As travestis olhavam-na com desconfiança e navalhas nos olhos. Vera encarava. "Ela é que nem o Mike Tyson, saca? Te intimida tanto com o olhar que cê fica pianinho quando chega perto dela. Isso é tática. E dá certo, a vagabunda". Mas também sabia com quem se relacionar, tinha esse talento. No Arouche, Cris Negão a protegia; no jornal, era o Leão. Ninguém sabia a que custo.
"Se o que você tá falando tem sentido, deve ser coisa de família. Todo mundo fala isso do meu pai, também. Ele aprendeu o krav maga lá na Estônia. Meio por acaso: era primo dum amigo do cara que inventou, essas coisas. Diz que foi bem a tempo, que logo depois que começou a treinar teve um pogrom. Ele matou dois filhosdaputa numa briga. Aí teve que vir pro Brasil". Vera coloca os dedos entre as pernas de Virgínia. "Começa com sorte. Mas depois a sorte some. A gente tem que persistir." E só sobrevive quem se esforça. Em princípio, todo mundo tem sorte de ter sido espermatozoide, óvulo, de ter acontecido. "Se é que isso é sorte", Vera pensa.
Um cotovelo teima na barriga dela. Vera se encolhe e se esgueira entre os braços. A polícia já chegou e conversa distraída do lado do cadáver, ainda descoberto. Se tivesse olhos, eles estariam abertos, ninguém se preocuparia em fechá-los. Vera tira fotos da cara deformada de monstro, da mancha de sangue entre as pernas do jeans. Agacha-se e clica: a mão estendida e aberta, o crânio deformado, um semicírculo de pessoas em volta (bocas curvadas em riso, um grupo de bichas chorando ao fundo), um policial olhando bem pra você.
"Ô, ô, circulando!"
"Não, deixa ela." - o outro policial aperta o braço do colega e olha cúmplice para Vera. Ela tira mais umas fotos. Vai embora.
*
"Quer saber?" - Virgínia se revira nos lençóis, se estica e se encolhe, esfrega o nariz entre os seios da amada e senta-se na cama de pernas cruzadas, "uma menina", Vera pensa. "Eu acho que você devia largar de vez essa merda desse jornal. Largar de vez toda essa merda. Vamos pra praia! A gente podia ir morar numa praia bem longe, bem ensolarada. Eu fico vendendo os meus artesanatos pros turistas. Você escreve o que te der na telha. De repente arranja um emprego num jornal local, mas podia também escrever pra algum caderno de viagem daqui!" (Quantas vezes por dia você para e pensa em tudo o que dá pra fazer desta vida?) "A gente aluga - ou até constrói! - uma casinha, aprende a pescar, planta tomates". A primeira página do jornal também trazia a promoção de um supermercado local. Você corta o cupom e ganha 10% de desconto no valor total das suas compras. Vera acende o cigarro, fica com vontade de café.
"Podia ser", diz, por dizer, olhando pela janela. "Bom, menina", disse o Leão, olhando nos olhos dela. "Essa aí é protegida do delegado", diz o policial, soltando o braço do outro. Virgínia tira outra vez as cartas, perguntando agora esse futuro. Seu coração se comprime quando ela pensa: quem escreve a nossa história? O Enforcado está preso ao centro da mesa. Nos anos 40, na Estônia, um bairro judeu é saqueado. Ela tem vontade de se levantar e ligar o rádio. Mas ainda não se levantou. Está sozinho na casa, no quarto. Olha em volta, pra além das cartas. Vera saiu e ela não tem pra quem sorrir.
"Chuta a cabeça dele"
Embaixo deste chão tem ossadas extintas, desintegradas pelo tempo. Nós o revolvemos e sobre asfalto, calçamento, coturno, cabelos. Antes disso eles vieram pela rua feito matilha, covardes, um batalhão discreto matando a noite e chegando bote nas bichas da praça. A homofobia mata uma pessoa a cada dois dias no Brasil. Mas da homofobia nós não sabemos o nome, a altura, se tem irmã, quais sonhos congelados. Quem me matou foi você.
"Vera, o Leão mandou você parar tudo. Tem um morto pra cobrir". Vera detestava trabalhar lá e detestava ainda mais esse apelido de Leão. Entrava na sala do chefe pensando hipopótamo, mamute. O chefe gordo atrás da mesa. Quando falava, babava pelos cantos. Formava-se uma bolha de espuma na barba e ele não queria limpar. Do medo viemos, ao medo voltaremos. Vera trincava os dentes de raiva e perguntava o que era.
"Mataram uma bicha na República. Corre lá pra gente fechar a edição. Vê se dá capa." Vera detestava ser a Leoa. De um lado pro outro, caçando carniça para alimentar o chefe. Dessa vez ele nem tinha olhado para ela, o que era melhor, o que era terrível. Ela tinha que olhar pra ele, não importava se quisesse. Concentrou o ódio na maçaneta da porta e girou-a sem estrondo.
Já era madrugada quando desceu do prédio e rumou a pé para a República. "Eu vou com você!", "Não vai não". Tirou a máquina das mãos do foca, que ficou plantado de boca aberta na porta do elevador, e apertou o térreo. Sentiu a brisa gelada, salpicada de sereno ácido de outono no centro de São Paulo, escorrendo pelo pescoço. Um bêbado mexeu com ela. Não era qualquer mulher que fazia uma coisa dessas. Podia ser perigoso, podia não-sei-quê. "Merda", ela quase foi atropelada. A gente se preocupa tanto com estupradores e quase morre nas rodas de um carro imbecil.
Vera não tinha medo de estupradores. Eles é que deveriam ter medo dela. Olhos, garganta, virilha, Vera podia nocautear qualquer um, tinha certeza. Às vezes ela esperava à noite, na rua, que alguém tentasse alguma coisa. Um dia foi roubada, mas não se moveu. O ladrão não tinha mais que quinze anos.
"Esse jornal não é lugar pra moça delicada", disse o Leão. "Nenhum lugar é", ela respondeu.
"Tá certo, tá certo. Olha, você deu sorte que um repórter nosso morreu semana passada. O pessoal tá reclamando de muito trabalho. Traz uma matéria aí, faz do jeito que você quiser, só não me enche o saco. Aí a gente vê". Ele acendeu o cigarro e abriu a janela, começou a tossir.
Dois anos depois e ela não tinha orgulho nem vergonha / nada / do que tinha escrito / vontade nenhuma de continuar naquilo. Mas ainda pagava as contas, e ela ainda tinha contas. Voltara com duas páginas pingando sangue, a história de um grupo de travestis que tinha assassinado o cliente de uma delas. MÁFIA DOS TRAVESTIS - CLIENTE NÃO PAGA A CONTA E ANORMAIS DÃO BEIJO DA MORTE. Ainda era uma das edições mais vendidas do jornal e o emprego era dela.
"Cadê a Vera?"
"O chefe mandou ela ir na República, parece que mataram um gay"
"E ela foi sozinha?"
"Foi, pegou minha câmera e tudo. Não quis que eu fosse"
"Mulher brava!"
Vera devia ter alguma proteção especial, é o que Virgínia sempre dizia. Mulher sortuda, "e não só porque me encontrou". Virgínia sorria e tirava as cartas. "Que besteira". Mostrava a carta da Estrela e dizia que os antigos acreditavam: o ser humano é vindo das estrelas. Gente é luz. E a sua luz é boa, meu amor.
Acontece com frequência que o céu de São Paulo não te deixa ver estrelas. Apagadas aqui embaixo, como se o asfalto fosse antimatéria e puxasse o nosso desejo pra rede de esgoto, o barulho dos sapatos e das rodas, os bares cheios, tudo o tempo todo um medo manso, "que paciência tem esse medo!". As travestis olhavam-na com desconfiança e navalhas nos olhos. Vera encarava. "Ela é que nem o Mike Tyson, saca? Te intimida tanto com o olhar que cê fica pianinho quando chega perto dela. Isso é tática. E dá certo, a vagabunda". Mas também sabia com quem se relacionar, tinha esse talento. No Arouche, Cris Negão a protegia; no jornal, era o Leão. Ninguém sabia a que custo.
"Se o que você tá falando tem sentido, deve ser coisa de família. Todo mundo fala isso do meu pai, também. Ele aprendeu o krav maga lá na Estônia. Meio por acaso: era primo dum amigo do cara que inventou, essas coisas. Diz que foi bem a tempo, que logo depois que começou a treinar teve um pogrom. Ele matou dois filhosdaputa numa briga. Aí teve que vir pro Brasil". Vera coloca os dedos entre as pernas de Virgínia. "Começa com sorte. Mas depois a sorte some. A gente tem que persistir." E só sobrevive quem se esforça. Em princípio, todo mundo tem sorte de ter sido espermatozoide, óvulo, de ter acontecido. "Se é que isso é sorte", Vera pensa.
Um cotovelo teima na barriga dela. Vera se encolhe e se esgueira entre os braços. A polícia já chegou e conversa distraída do lado do cadáver, ainda descoberto. Se tivesse olhos, eles estariam abertos, ninguém se preocuparia em fechá-los. Vera tira fotos da cara deformada de monstro, da mancha de sangue entre as pernas do jeans. Agacha-se e clica: a mão estendida e aberta, o crânio deformado, um semicírculo de pessoas em volta (bocas curvadas em riso, um grupo de bichas chorando ao fundo), um policial olhando bem pra você.
"Ô, ô, circulando!"
"Não, deixa ela." - o outro policial aperta o braço do colega e olha cúmplice para Vera. Ela tira mais umas fotos. Vai embora.
*
"Quer saber?" - Virgínia se revira nos lençóis, se estica e se encolhe, esfrega o nariz entre os seios da amada e senta-se na cama de pernas cruzadas, "uma menina", Vera pensa. "Eu acho que você devia largar de vez essa merda desse jornal. Largar de vez toda essa merda. Vamos pra praia! A gente podia ir morar numa praia bem longe, bem ensolarada. Eu fico vendendo os meus artesanatos pros turistas. Você escreve o que te der na telha. De repente arranja um emprego num jornal local, mas podia também escrever pra algum caderno de viagem daqui!" (Quantas vezes por dia você para e pensa em tudo o que dá pra fazer desta vida?) "A gente aluga - ou até constrói! - uma casinha, aprende a pescar, planta tomates". A primeira página do jornal também trazia a promoção de um supermercado local. Você corta o cupom e ganha 10% de desconto no valor total das suas compras. Vera acende o cigarro, fica com vontade de café.
"Podia ser", diz, por dizer, olhando pela janela. "Bom, menina", disse o Leão, olhando nos olhos dela. "Essa aí é protegida do delegado", diz o policial, soltando o braço do outro. Virgínia tira outra vez as cartas, perguntando agora esse futuro. Seu coração se comprime quando ela pensa: quem escreve a nossa história? O Enforcado está preso ao centro da mesa. Nos anos 40, na Estônia, um bairro judeu é saqueado. Ela tem vontade de se levantar e ligar o rádio. Mas ainda não se levantou. Está sozinho na casa, no quarto. Olha em volta, pra além das cartas. Vera saiu e ela não tem pra quem sorrir.
19.5.12
acordar tarde
tocas as flores murchas
que alguém te ofereceu
quando o rio parou de
correr e a noite
foi tão luminosa
quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço
postal não funcionou
no dia seguinte
procuras ávido aquilo
que o mar não devorou
e passas a língua na
cola dos selos lambidos
por assassinos - e a
tua mão segurando a faca
cujo gume possui a
fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais
- nada a fazer
irás sozinho vida
dentro
os braços estendidos
como se entrasses na água
o corpo num arco de
pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do
mortal brilho do meio-dia
***
mudança de estação
para te manteres vivo - todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e
o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado
deixas o verão deslizar de mansinho
para o cobre luminoso do outono e
às primeiras chuvadas recomeças a escrever
como se em ti fertilizasses uma terra generosa
cansada de pousio - uma terra
necessitada de águas de sons de afectos para
intensificar o esplendor do teu firmamento
passa um bando de andorinhões rente à janela
sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo
donde se soltaram as abelhas incompreensíveis
da memória
luzeiros marinhos sobre a pele - peixes
que se enforcam com a corda de noctilucos
estendida nesta mudança de estação
(al berto)
18.5.12
Teoria da eterna origem
uma coisa é igual à outra / e uma coisa vem da outra. Mas diferencia-se e torna-se outra, hm, como explicar? Assim - primeiro veio à Terra meteoro, bactérias se formaram e se reproduziram, foram separadas e se reproduziram. Agora todos sabem que as coisas se diferenciam. Então bilhões de anos se passaram e a diferença da diferença transformou-se no que parece diferente. Agora olhe de perto: do mesmo jeito que nós, um lagarto tem braços cabeça coração. As barbatanas de um peixe, o nariz do sapo. Vertebrados com dedos. Se minha mãe estiver certa, Deus tem uma tremenda falta de imaginação. Ainda mais sendo ele quem ele É.
Então a história fica a seguinte: a seleção natural nos diferencia, mas somos basicamente os mesmos. O que a história não conta é que tudo isso já tinha acontecido.
Em outro planeta, outro sol cansado queria se livrar de nós. A luz se apaga, envolve e traga escuro fim da vida. Nossos muito antepassados tinham atingido alto nível de tecnologia e disseram: vamos embora. Resolveram mandar pro espaço as bactérias. Eles próprios aterrissaram em outros portos e nos visitam com frequência, mas esta ainda é outra história.
Porque a vida é inevitável - e a personagem se surpreende sempre de ainda estar aqui - (meu deus, eu ainda estou aqui!) - os meteoros que chegaram à Terra trazendo hibernadas bactérias desenvolveram-se mais ou menos como os nossos muito antepassados, e eis a gente.
A gente.
Que em menos que três bilhões de anos conseguiu fazer tanto estrago.
A gente.
Que poderíamos ser classificados como um vírus
vertebrado
adaptável ao ambiente e apto a derrubá-lo
minando as defesas do planeta
- mas esta ainda é outra história
- ou será a mesma?
Nossas guerras nos destroem e a seleção natural segue valendo,
daqui a muitos bilhões de anos também este Sol vai se cansar
nós, que teremos morrido e mudado e foguetes e dados perdidos refeitos, nós construiremos naves enormes e mandaremos tudo pelo espaço.
Uma parte da raça chega a um planeta. Faz, lá, sabe-se lá que desgraça de civilização, ou encontra a beleza? E asteroides sem órbita vagarão entre os planetas até que a gravidade
a gravidade
essa que quer, intransitivamente. A gravidade o puxa e crava em seu útero aberto uma estrela, bactéria, amaciada em mornidão e atmosfera se prolifera a será diversa como a Terra que um dia foi. Mãos, pernas, olhos. Caule, folha, flor.
A vida é uma raiz contagiosa.
Quantos sóis (meu deus) não explodirão, e quantas naves, e quantos começos aterrissarão.
Se minha mãe estiver certa, não tenho nada que me preocupar. O infinito será individual. Nesse caso tenho um inferno reservado e duradouro e arrependimento para sempre da minha contranatura. Caso contrário, num futuro - que pra nós é inominável, mas conhecido neste já - outra coisa parecida com uma mãe, olhos bocas sutiã, ditará medos terríveis para proteger a nova vida.
Universo em movimento, universo em expansão
eterno até o fim dos tempos,
até.
Então a história fica a seguinte: a seleção natural nos diferencia, mas somos basicamente os mesmos. O que a história não conta é que tudo isso já tinha acontecido.
Em outro planeta, outro sol cansado queria se livrar de nós. A luz se apaga, envolve e traga escuro fim da vida. Nossos muito antepassados tinham atingido alto nível de tecnologia e disseram: vamos embora. Resolveram mandar pro espaço as bactérias. Eles próprios aterrissaram em outros portos e nos visitam com frequência, mas esta ainda é outra história.
Porque a vida é inevitável - e a personagem se surpreende sempre de ainda estar aqui - (meu deus, eu ainda estou aqui!) - os meteoros que chegaram à Terra trazendo hibernadas bactérias desenvolveram-se mais ou menos como os nossos muito antepassados, e eis a gente.
A gente.
Que em menos que três bilhões de anos conseguiu fazer tanto estrago.
A gente.
Que poderíamos ser classificados como um vírus
vertebrado
adaptável ao ambiente e apto a derrubá-lo
minando as defesas do planeta
- mas esta ainda é outra história
- ou será a mesma?
Nossas guerras nos destroem e a seleção natural segue valendo,
daqui a muitos bilhões de anos também este Sol vai se cansar
nós, que teremos morrido e mudado e foguetes e dados perdidos refeitos, nós construiremos naves enormes e mandaremos tudo pelo espaço.
Uma parte da raça chega a um planeta. Faz, lá, sabe-se lá que desgraça de civilização, ou encontra a beleza? E asteroides sem órbita vagarão entre os planetas até que a gravidade
a gravidade
essa que quer, intransitivamente. A gravidade o puxa e crava em seu útero aberto uma estrela, bactéria, amaciada em mornidão e atmosfera se prolifera a será diversa como a Terra que um dia foi. Mãos, pernas, olhos. Caule, folha, flor.
A vida é uma raiz contagiosa.
Quantos sóis (meu deus) não explodirão, e quantas naves, e quantos começos aterrissarão.
Se minha mãe estiver certa, não tenho nada que me preocupar. O infinito será individual. Nesse caso tenho um inferno reservado e duradouro e arrependimento para sempre da minha contranatura. Caso contrário, num futuro - que pra nós é inominável, mas conhecido neste já - outra coisa parecida com uma mãe, olhos bocas sutiã, ditará medos terríveis para proteger a nova vida.
Universo em movimento, universo em expansão
eterno até o fim dos tempos,
até.
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17.5.12
é um cortejo fúnebre
mas não é
cadê o morto?
o metrô parado por causa da greve
as buzinas lotam a tarde de gente
depois de grandes desastres naturais
embora o capitalismo siga o mesmo
e há instituições, o palácio do presidente
o haiti fukushima chernobyl
o brasil
repare que a terra continua embaixo
o céu continua em cima
e a gente segue até dizer chega
mamãe leva a menina para a escolinha
se você realmente quisesse o melhor para seus filhos
não os educaria seguindo estereótipos de gênero opressivos
este é um cortejo fúnebre
para os vivos
tanto é assim que nesta manhã eu tomei meus remédios
depois comi pão tomei iogurte prestando atenção no triglicérides
tenho um milhão de contatos de email telefone nas redes sociais
gente que eu lembro com carinho, mesmo que não veja mais
li uma crônica que me deixou emocionado, de um autor que eu gosto muito
depois das grandes catástrofes naturais
leio um livro que fala de cavalos pré-históricos habitando a américa do sul
cujos primeiros habitantes eram negroides e talvez vieram
trazidos por ovnis ou tecnologias de navegação muito avançadas
que se perderam
como só o avanço se perde
séculos antes dos europeus os maias já tinham inventado o conceito de
zero,
inquisidores queimaram essas bibliotecas para expurgar o demônio da floresta
seis jovens condenados à forca no irã por serem homossexuais
e os carros passam, os cães ladram, as plantas sobem
sempre em direção ao sol
mesmo que você entorne o vaso
uma amiga me diz que fica muito contente de não ter se matado
agora que estão acontecendo tantas coisas boas
eu também, e ainda não me matei
nem planejo
que ninguém se mate
feito aquele povo na guiana
que esperava o arrebatamento num suicídio coletivo
que ninguém se mate
porque o mundo é dos vivos
e há palavras imensas que esperam por nós
um grande conhecimento no fundo do oceano
grutas e por quês nunca antes contemplados
esperarmos os ETs, há motivos de sobra
pra estar feliz e ansioso neste dia de outono
no apartamento emprestado de um amigo
o mundo
é dos vivos
mas não é
cadê o morto?
o metrô parado por causa da greve
as buzinas lotam a tarde de gente
depois de grandes desastres naturais
embora o capitalismo siga o mesmo
e há instituições, o palácio do presidente
o haiti fukushima chernobyl
o brasil
repare que a terra continua embaixo
o céu continua em cima
e a gente segue até dizer chega
mamãe leva a menina para a escolinha
se você realmente quisesse o melhor para seus filhos
não os educaria seguindo estereótipos de gênero opressivos
este é um cortejo fúnebre
para os vivos
tanto é assim que nesta manhã eu tomei meus remédios
depois comi pão tomei iogurte prestando atenção no triglicérides
tenho um milhão de contatos de email telefone nas redes sociais
gente que eu lembro com carinho, mesmo que não veja mais
li uma crônica que me deixou emocionado, de um autor que eu gosto muito
depois das grandes catástrofes naturais
leio um livro que fala de cavalos pré-históricos habitando a américa do sul
cujos primeiros habitantes eram negroides e talvez vieram
trazidos por ovnis ou tecnologias de navegação muito avançadas
que se perderam
como só o avanço se perde
séculos antes dos europeus os maias já tinham inventado o conceito de
zero,
inquisidores queimaram essas bibliotecas para expurgar o demônio da floresta
seis jovens condenados à forca no irã por serem homossexuais
e os carros passam, os cães ladram, as plantas sobem
sempre em direção ao sol
mesmo que você entorne o vaso
uma amiga me diz que fica muito contente de não ter se matado
agora que estão acontecendo tantas coisas boas
eu também, e ainda não me matei
nem planejo
que ninguém se mate
feito aquele povo na guiana
que esperava o arrebatamento num suicídio coletivo
que ninguém se mate
porque o mundo é dos vivos
e há palavras imensas que esperam por nós
um grande conhecimento no fundo do oceano
grutas e por quês nunca antes contemplados
esperarmos os ETs, há motivos de sobra
pra estar feliz e ansioso neste dia de outono
no apartamento emprestado de um amigo
o mundo
é dos vivos
12.5.12
No país do não-me-lembro
No país do não-me-lembro
dou três passinhos e me perco.
Um passinho para ali
- será que ainda estou aqui?
Um passinho para lá
- ai que medo que me dá!
No país do não-me-lembro
dou três passinhos e me perco.
Dou um passinho para trás
e nenhum passinho a mais
porque não lembro onde é
que eu pus o outro pé.
No país do não-me-lembro
dou três passinhos e me perco.
***
En el país del no-me-acuerdo
En el país del no-me-acuerdo,
Doy tres pasitos y me pierdo.
Un pasito para allí,
No recuerdo si lo di.
Un pasito para allá,
¡Ay, que miedo que me da!
En el país del no-me-acuerdo,
Doy tres pasitos y me pierdo.
Un pasito para atrás,
Y no doy ninguno más,
Porque yo ya me olvidé,
Donde puse el otro pie.
En el país de no-me-acuerdo,
Doy tres pasitos y me pierdo.
(María Elena Walsh)
Doy tres pasitos y me pierdo.
(María Elena Walsh)
4.5.12
criança, bicho, velho
hoje aprenderemos sobre a vontade de viver
uma mulher de 101 anos se suicidou na rússia no mês passado
após passar duas ou três vezes por hospitais
em que tentara sem sucesso se matar
dizendo eu não aguento mais
a gente se choca com a notícia
"se aguentou até os 101 anos, que esperasse só um pouquinho"
a mulher senta e espera
toma vodka e come castanhas enquanto espera
na rússia comem batatas? não tenho vontade de comer batatas
navegantes europeus roubaram dos incas
quinhentos mil quilos de batatas
levaram da irlanda ao início da ásia
e as mulheres incas amarravam-nas grávidas pelos pés dependuradas
passavam com um cavalo e espada e as estripavam
os futuros mortos morriam antes de nascer
dependurados das mães dependuradas, quase mortas
"não quero batata"
"a senhora precisa comer!"
"sai da minha casa"
"[xingamentos em russo]"
viver não é tão ruim
dá impressão, porque você tem 101 anos e não vê mais graça em nada
o corpo dói, a carne é fraca, e todo mundo morre
quando vai estar na hora?
"tem gente que gostaria muito de estar no lugar da senhora!"
acham-na mal agradecida
com o dom da vida
ela passa a língua pelos buracos entre os dentes
onde a língua encontra e acasala com a gengiva
um amor duro áspero molhado fazem as duas
e infértil
a rússia é o maior país do mundo!
pensa que a senhora passou até pela revolução!
sobreviveu aos campos da sibéria! sobreviveu até ao comunismo!
mas encontraram num dia a mulher morta
então eu já posso abandonar esta história
que é sobre a vontade de viver
...
como a vontade de viver sobrevive à mulher morta?
tem que ser assim: há quatro bilhões de anos
moléculas nervosas se juntaram e formaram
carbono que eu não sei
as primeiras proto-bactérias
simultâneas num acaso certo
e nós somos seu desdobramento
vem um vírus que se alastra e mata
o vírus também é a vida que quer viver
esse é o seu ensinamento
tanto é que depois da mulher morta nós continuamos aqui
pondo venenos nas batatas para matar os cupins
...
quem pode mais chora menos
manda quem pode, obedece quem tem juízo
batatinha quando nasce
esparralhama
hoje aprenderemos sobre a vontade de viver
uma mulher de 101 anos se suicidou na rússia no mês passado
após passar duas ou três vezes por hospitais
em que tentara sem sucesso se matar
dizendo eu não aguento mais
a gente se choca com a notícia
"se aguentou até os 101 anos, que esperasse só um pouquinho"
a mulher senta e espera
toma vodka e come castanhas enquanto espera
na rússia comem batatas? não tenho vontade de comer batatas
navegantes europeus roubaram dos incas
quinhentos mil quilos de batatas
levaram da irlanda ao início da ásia
e as mulheres incas amarravam-nas grávidas pelos pés dependuradas
passavam com um cavalo e espada e as estripavam
os futuros mortos morriam antes de nascer
dependurados das mães dependuradas, quase mortas
"não quero batata"
"a senhora precisa comer!"
"sai da minha casa"
"[xingamentos em russo]"
viver não é tão ruim
dá impressão, porque você tem 101 anos e não vê mais graça em nada
o corpo dói, a carne é fraca, e todo mundo morre
quando vai estar na hora?
"tem gente que gostaria muito de estar no lugar da senhora!"
acham-na mal agradecida
com o dom da vida
ela passa a língua pelos buracos entre os dentes
onde a língua encontra e acasala com a gengiva
um amor duro áspero molhado fazem as duas
e infértil
a rússia é o maior país do mundo!
pensa que a senhora passou até pela revolução!
sobreviveu aos campos da sibéria! sobreviveu até ao comunismo!
mas encontraram num dia a mulher morta
então eu já posso abandonar esta história
que é sobre a vontade de viver
...
como a vontade de viver sobrevive à mulher morta?
tem que ser assim: há quatro bilhões de anos
moléculas nervosas se juntaram e formaram
carbono que eu não sei
as primeiras proto-bactérias
simultâneas num acaso certo
e nós somos seu desdobramento
vem um vírus que se alastra e mata
o vírus também é a vida que quer viver
esse é o seu ensinamento
tanto é que depois da mulher morta nós continuamos aqui
pondo venenos nas batatas para matar os cupins
...
quem pode mais chora menos
manda quem pode, obedece quem tem juízo
batatinha quando nasce
esparralhama
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