21.4.11

As histórias dos outros

ele contou numa aula de alguém que conhecia. Que estava saindo um dia de um estádio de futebol e no meio da multidão, com a esposa ao lado, sem ninguém ao lado, começou a arrancar as roupas e a gritar EU TENHO MEDO! EU TENHO MEDO! Isso foi em mil novecentos e setenta e alguma coisa, durante a ditadura, e não sei se ele havia sido preso antes, torturado, ou se só seria depois, no manicômio, ou chegou a ir às prisões terroristas?

Estou lendo outra vez "A desobediência civil". Leio no transporte público. Olho pros lados e nos sei gado. Concluo, não concluo, que, de todo modo, é fundamentalmente diferente do que viver numa ditadura. Tenho tido visões de fantasmas, corpos desfeitos, a cidade atacada por massas de água e de fogo tão grandes só restará destruição. Acho que identifiquei meu problema. (Acho que não tenho a menor ideia, mas.) Que não consigo hierarquizar as coisas. Por isso não consigo escrever. Começo uma frase e vejo o fantasma, a cidade, o cara gritando, penso na morte, no Thoureau dizendo que "uma ação baseada num princípio é sempre revolucionária", largo a caneta, apago, penso

????????????

O cara gritando e tirando a roupa. As pessoas em volta - porque a multidão é feroz e nós somos animais sem deus - começaram o linchamento.

Hospital, delegacia, manicômio. O professor me contou essa história trinta anos depois. Eu não tinha nascido pra ter medo. Hoje acordo e faço assim: acordo. Depois saio pra rua. Alguns dias fico o dia inteiro em casa. Sofro de enxaqueca. Tomo muito café. Qual é o problema? Não sei. Fico prestando atenção nas histórias dos outros. As minhas até as tenho, mas o que interessa uma história? Aí: caio no mesmo problema de não saber hierarquizar. Fico preocupado e evito dizer, porque acho um lugar comum muito bocó, mas é verdade que a vida só faz sentido quando eu escrevo. "Vida", aliás, é o título do livro de poemas que esse cara escreveu - depois da tortura, do linchamento, do eletrochoque, hoje ele baba e recupera aos poucos o raciocínio lógico, nosso, das gentes - que matam -. Ou esse é o título do livro de poemas que o personagem da novela da Globo lançou, e eu confundo as bolas.

O professor disse que os poemas eram muito ruins, de todo modo. E que esse cara era amigo de vários críticos literários, inclusive do mestre Antonio Candido, e que todos gostariam que ele estivesse bem, porque sua história era muito triste. Mas que os poemas eram invariavelmente muito ruins. Óbvio que ninguém dizia isso a ele, assim, desse jeito.

2 comentários:

  1. "depois da tortura, do linchamento, do eletrochoque, hoje ele baba e recupera aos poucos o raciocínio lógico, nosso, das gentes - que matam -."

    fodástico.
    bjones!

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  2. que foda.

    hierarquia escrevendo é seguir a temperatura, acho. ou aproxima, queima, esfria, esquece.

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