6.4.11

que se acabe logo o mundo

agora já faz umas semanas que fico reclamando
não consigo escrever não consigo escrever
tento ser solene e não dá nada
parto pra piada pronta e não dá nada
não ando dando nada
anuncio aqui mais uma vez minha definitiva demissão do mundo
os amigos vão se encher de tristeza "ele
pulou da janela" não encontram o corpo haja
iml pra me achar

saio da escrita pra entrar na memória

aí tem aquele poema do fernando pessoa que
diz que depois você só vai ser lembrado
aniversariamente na data da vinda e na data da
volta

fernando pessoa também era cheio de frases de efeito

meu pai morreu e eu lembro dele aleatoriamente.
a primeira vez que esqueci do aniversário de morte foi
porque estava trabalhando muito. me senti mal e
negligente. não que isso importe.

sobre isso, também, não consigo escrever.

sento num bar e começo um flerte. ou hoje no
ônibus um menino me olhando e sorrindo. muitas
histórias começam com uma pessoa que você não
conhece te olhando de um jeito que você não
entende. desci do ônibus continuei sem entender.
ele olhava pra trás enquanto o ônibus ia.
morro de medo de um ataque homofóbico.
na hora que acontecer ninguém vai me salvar.

*

ninguém te salva.
jesus um cocker spaniel nos dias
meses e anos da minha avozinha.

vovô teve um derrame,
vovó caiu da escada.

ninguém te salva.

o cão uivando chama a atenção
dos vizinhos. jesus é uma
sirene de canto irresistível.

"desgraça! desgraça!" ela grita

ninguém me salvou hoje quando eu
saí do teatro e não dei aquele
grito que ninguém escutou
desde os tempos de drummond
e ninguém salvou o drummond
o poeta não consola a herança
temos um rito passageiro
e moderno - morrer
sem amor por perto

*

imagino ondas de lava
radiativa invadindo a cidade

japoneses mortos esqueletos
despejados nos nossos heliportos
sobre os nossos medos

imagino meu medo se encolhendo
e deformando, vai restar
cancerígeno para o que sobreviver,
futuro

nenhum refúgio é tão seguro

amanhã sairei na rua
atento, banal

quanto isso
nenhum desastre é tão normal

2 comentários:

  1. "saio da escrita pra entrar na memória"

    lindo isso.
    lindo também pela ambiguidade.
    porque uma face da frase pode ser tosca (o autor eterno) e a outra sublime (o autor procurando sua fonte, a ponto de nunca mais voltar de lá... nunca mais ser um autor...).

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  2. Amigo, a tua prosa é poeticamente intensa e visceral! Gosto muito disso!

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