16.8.11

o escritor e seus fantasmas

eu escrevia um texto sobre o olhar, naturalizando o olhar com o texto. ao final, me lembrei: que há gente que não vê - e não no sentido figurado da expressão. e pensei: como será pra essa gente que não vê? (dos meus maiores medos é ficar cego, se é que é um medo). conheci um menino surdo, uma vez. e passei a escrever pra ele. me parece óbvio pensar, com essas coisas, que é impossível uma experiência que possa ser partilhada por todo mundo. digo: conheci uma menina que não tinha olhos, o rosto liso no lugar dos glóbulos, e era surda e tinha retardo mental.

não se trata de ser politicamente correto. não apenas isso. a questão é imaginar o que está além de mim mesmo. a imaginação é dos poucos recursos que temos pra experimentar uma alteridade radical. como seria ser cego? e todo o meu mundo muda, por um instante. óbvio que a imaginação, sozinha, não existe. como é passar fome? eu não tenho a menor ideia física do que seja. tenho a palavra, "fome", e o que ela me dá. disso posso intuir coisas. posso contar por exemplo a história da minha avó, que passou fome quando criança, e de como isso me dói, porque eu a amo. mas com isso eu não chego à fome. sei um pouco mais porque li o quarto de despejo, da carolina maria de jesus, em que ela conta que passou muita fome, quase desmaiou e que via tudo amarelo. mas só percebeu que via tudo amarelo quando alguém lhe deu um pedaço de pão e ela comeu e então viu outras cores. assim, concluiu: a fome é amarela.

eu não sei o que é ser cego. quando digo do meu olhar, é uma experiência minha que compartilho. mas se abdico do meu olhar para dizer o que sou eu sem esse olhar, não é também outra experiência? naquele texto que eu estava escrevendo, sobre horizontes e alcances, escolhi (por medo) não considerar a cegueira como ponto de vista, já que isso destruiria todo o texto e eu não saberia onde me agarrar, teria que começar tudo de novo. fui covarde e preguiçoso e escolhi a comodidade.

acho que quem escolhe a comodidade não tá com nada. picharam "quem não se movimenta não sente as amarras que o prendem". acho a comodidade, também, um cinismo disfarçado de prazer e uma tremenda falta de consideração.

("considerar", etimologicamente, é "levar consigo os astros", diz um amigo. é o mesmo papo, mas abrange outras coisas.)

começo a ficar cansado deste texto e não sei se cheguei nalgum lugar. o cansaço é um chão que cede. é o poço da alice. que cai e cai até que não se importa mais de estar caindo.

também não acho que pensar como eu penso me faça melhor que ninguém. sempre, especialmente na universidade, vi gente que se achava muito melhor do que todo mundo por pensar como pensava. e pensava que pensava diferente, mas agia igual todo mundo. isso se dá porque (ando desconfiando) o indivíduo não existe. a gente é uns blocos de células que o mundo atravessa e movimenta, somos células da alma do mundo. por isso qualquer transformação só se dá no coletivo e no tempo do coletivo. isso não quer dizer que não existamos ou não importemos enquanto partículas, mas que nada é nosso, que nós é que somos pertencidos.

a terra não é de ninguém. nós somos da terra.

fica cada vez mais difícil chegar numa síntese. ando puxando o meu próprio tapete como método argumentativo, ficcional e de pensamento. é uma espécie de sabotagem do meu potencial tirano (o pequeno grande fascista que vive na gente), ou ao menos foi com esse intuito que eu comecei a usar esse método. começo a duvidar da eficácia disso. essa dúvida é ainda uma puxada de tapete. talvez seja a derradeira e a eficaz, de fato. mas não sei.

acho que, agora, eu vou tentar escrever um texto como se fosse cego.

ou tentar descobrir, em mim, a cegueira que eu não vejo.

***

periodicamente eu assisto esse vídeo. se fosse um livro, eu sempre o traria comigo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário