29.3.11

my dear / as nuvens somem / um
peso de carne faz-se nuvem e
carrega / depois chove

*

história do asfalto

células mortas que ficaram / das solas dos pés / descobriram que a grande incidência de câncer, quando não pelas relações de poder, dá-se por uma necessidade excessiva de regeneração das células, por exemplo você morde as partes internas da boca, o corpo precisa se refazer, todos sabem que o câncer é a reprodução de células anômalas, ergo / igual se quebrar muitas vezes o mesmo osso, ou as fístulas anais

virou a história da nossa debilidade física. a cigana que leu minha mão disse uma vida longa saudável feliz. volto ao asfalto

história:

Tem sacos plásticos cobrindo a cabeça e os pés. Passa o dia sentada em sacos plásticos amarelos de supermercado e pedaços de papelão. Faz as necessidades na boca de lobo, coberta parcialmente por uma manta. Dizemos "as vergonhas" para o púbis, ninguém admite que tem outras. Ela cobre fundamentalmente a cara. De cara fiquei eu quando a vi no supermercado e comprava iogurte e alguma fruta, pão. Foi estranho como se eu visse a minha mãe na sarjeta, coberta de sacos plásticos, cobrindo a cara e mijando na boca de lobo. Amo a minha mãe e sinto uma culpa constante por ter nascido. Deveria ter dito isso para a cigana e perguntado alguma ajuda. A cigana não me ajudou. No caminho de volta, caiu a pior chuva do ano. Eu tinha $10 no bolso e consegui com isso entrar num café e tomar um café com medialunas. Acho que eu tinha $16 no bolso. E todos os presentes que tinha comprado pra dar pras pessoas. Ainda não vi minha mãe usando o colar. Mas estas vergonhas são minhas. As dela. Ninguém do mercado parecia se importar muito. Pensei que nunca tinha me ocorrido que aquelas sacolas todas fossem aquisição da mulher por dinheiro próprio. Depois reparei que nunca a vejo mendigando. Às vezes eu passo e ela escreve ou lê. Passo rápido e longe para não sentir o cheiro nem ser abordado. Sou tão mesquinho.

*

agora fiz um poema, um texto informativo e uma crônica. vou começar a escrever a confissão. perdi o tempo. perdi a metáfora. perdi o bonde. estoy perdido. me pediram um texto autobiográfico para publicação. quem eu sou, o que eu faço. olhei como as pessoas fazem e copiei. depois lembro do kafka, que queria tudo queimado e extinto, eu queimaria meus nomes e o planeta, mas não queimei, copiei os textos e escrevi verdades, que sou assim, assim, que faço isso e isso. agora tenho vontade de ser foragido. não sou, já, de certa forma? agora sem crachás nem documentos. não, preciso de uma fuga mais eficaz.

my dear,

meu desejo num envelope
yoroshiku onegai shimasu
é uma das maneiras de dizer
"é um prazer te conhecer"

ao pé da letra, significa
"please, be good to me"

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