26.5.11

agora descobri que o planeta
é um miradouro, fôssemos outro ou
estrela e diríamos de nós um
arquétipo astrológico, quando
entrássemos aquário isso seria
"oh cuidado com suas finanças" ou
"pequenas catástrofes naturais"

tem aquela história de que observar uma coisa já é modificá-la

25.5.11

Fui embora e deixei a luz acesa.

plenisfério

tem sido menos diferente do que eu esperava, e mais do que eu poderia imaginar / começo a perceber que a vida vai ser de saudades / escrevi num conto o que disse uma amiga minha: que nós somos cavalos não restituídos ao selvagem, pois vivemos na saudade / também escrevi que precioso é o que a gente recebe dos outros (fique velha e não se esqueça) / dei de escrever as histórias das gentes, dos lugares, dos caminhos, com grande proveito para a humanidade / enquanto a humanidade não me acha, eu também me perco

*

não sou mais profissional
agora sou sentimental e ríspido

*

e um tsunami, tremores profundos nos podem salvar
vem a vaga da morte e tornamo-nos o que não há de tornar
aviões caem, luzes no chão do horizonte
não há mais dedos, rapazes ou hoje

no entanto este denso caminho prossegue às avessas
do nosso, é um vácuo entre as estrelas

pegamos o elétrico que sobe ao miradouro

(Terra, você é um miradouro)

you are carried by an ideal or a mission

acontece com frequência / de eu ler o horóscopo do dia e ele ser pra vida inteira / e quem quer o tempo pronto? / o tempo manso, voraz, o tempo é um leão e os leões são selvagens / ficou provado em experiências russas que o cão doméstico foi uma invenção humana, de cruzamento entre lobos e raposas fiéis, obedientes / tempo, eu te cruzo também

~

You feel that you are carried by an ideal or a mission. During this period, you show exemplary dedication towards a cause that may be utopian. You need to live your passions and to make your dreams come true. Although your objectives seem difficult to reach, you keep your faith. It may produce disconcerting and dramatic actions. You don't hesitate to make sacrifices in order to achieve your goals. A sweet euphoria excites your will to undertake. It is likely that you are able to take risks even though you do not control the sequence of events. Do not let yourself be carried away by your "intimate convictions", unless you have clear-sightedly considered the consequences of your actions. In any case, during this period, you can conquer high summits and your behaviour may be more heroic than usual. If you find the experience appealing, it is the right time for the conquest of objectives that seemed to be out of your reach, only yesterday. Passion and faith accomplish miracles, at times! The natal planet receiving the transit is in the 11th House. It means that relationships with your friends, as well as supports granted to you or people protecting you, may be affected and modified during this period.

18.5.11

uma mãe que perdeu seu filho

um nome volta sempre à boca
qual o canto dos pássaros
que se nomeiam na nossa língua

e quisera também alçasse voo
floresta não devastada, antes
do alcance dos homens

livre pra escolher entre os galhos,
entre os pousos que não serão tantos,
caminhos pequenos das aves migrantes

não esse incêndio dos ninhos, das horas
não essas penas ao vento do antes,
não essa ida sem voo e sem volta

história das asas

fico muito ansioso, isso de olhar o céu

há uma brincadeira que pode se chamar "pássaro voa" e que consiste em todas as crianças e uma que pergunta: "pássaro voa?", se voar todas as crianças se levantam e gritam VOA, aí a outra pergunta, por exemplo, "vaca voa?", e a criança que gritar VOA por mal entendimento ou birra do mundo sai da roda, perde a brincadeira

e há uma história de que santos dummont vivia indo pra fora da roda, porque quando a criança perguntava "homem voa?" ele era o único que sempre levantava, e diz-se que por convicção, a profetizar o sonho

VOA

eu ando com a ideia besta de tatuar-me um avião e espero que as turbinas soem para saber que é o que deve ser, esses dias me senti culpado por pertencer à classe burguesa não sei se em manifesto ou pichação é que vi escrito "prefira os insetos ao avião", de fato se pensarmos nas companhias aéreas e na guerra

santos dummont era o grande herói da terceira série. "um humanista", eu diria, se soubesse. a professora dizia que ele ficou tão triste quando viu o avião sendo usado para jogar bombas que ficou maluco. eu admirava santos dummont.

16.5.11

chegou na cidade calma e não trouxe medo, o elefante, maior causa de mortes no continente africano, com suas patas sobre mim a qualquer momento e a tromba bruta, pancadas, eu pedia cores e trapézios aplaudidos, um elefante rosa rodando em uma bola, eu queria os números de circo e eu criança na plateia, feliz como os palhaços, mas o elefante é grande, sujo e autônomo, destrói a lona, atrapalha o trânsito, então eu não o tive, ao contrário, sua boca é que me tocou, pensou, depois não quis, agora seus passos irritados eu escuto do outro lado da cidade, mas não o encontro, e tenho pressa, e tenho que reconstruir meu teto, que o elefante estúpido desmoronou

o espaço das coisas

15.5.11

da primeira vez que estive em Buenos Aires era a passeio e não saiu nada bem, comprei vários cartões-postais com desenhos de um artista da Argentina de homens solitários com seus bandoneóns e a llanura dos pampas logo atrás, uma terra arrasada natural, que o planeta também faz das suas e resolveu que por lá não daria a ninguém motivo de deslumbre, diferente dos desertos africanos em que perigosas cobras serpenteiam por debaixo da areia e a formiga-leão cava a armadilha para as suas presas, se esconde lá no meio e joga os grãos que farão o outro bicho cair direto pras garras, na llanura não se vê sequer uma sombra, eu acho, só sei de relatos e dos desenhos que agora estão na minha parede na promessa cumprida de morar lá, apesar das consequências, mas Buenos Aires não tem muito dessa aridez, eu não estive na natureza selvagem, não conheci o temido tigre de los llanos a menos que ele fosse um homem ríspido e paternal num canto escuro, outros temeriam, não é o meu caso porque resolvi exercer só a coragem desde que comprei esses cartões-postais que colei na parede do quarto que não mais visito, esta semana vou trocar de hemisfério, lá no norte há primavera e outras paisagens, a gente nunca sabe o que nos aguarda

14.5.11

o segredo dos rios:
eles se encontram

um braço de água viaja
e no acaso alcança um outro

então unidos em corpos e orlas
são mais, pedem mais

segundo segredo dos rios: eles
passam e ficam

não é qualquer que consegue
um movimento assim coerente

hoje me levaram pra navegar. descubro que é esse o balanço que eu sinto em terra, como de um casco flutuante. me parece certo e a crosta terrestre não mais do que isso. daí nossa náusea, daí nossa brisa.

terceiro segredo do rio: que ao chegar
ele não morre

dá seu corpo ao mar
e como dar é ter
o rio não tem segredos

leio um trecho do Caio Fernando Abreu citando Clarice Lispector citando que não queria ser uma "profissional da literatura". A livraria me deixa cansado, penso que deve ser a energia, tanta gente, e as condições de trabalho degradantes, agora eu não tenho emprego fixo, disse pra uma amiga que não quero ter férias nem salário, ela riu, não é nem de longe uma convicção, ando bem pouco convicto, com exceção de certos posicionamentos políticos que cada vez se definem melhor, ou não, meu irmão tem feito comentários homofóbicos, tenho vontade de jogar uma bomba na minha família, mas não posso dinamitar sozinho a ilha de Manhattan, na quinta-feira faço uma viagem longa e rápida, é assim que tenho viajado.

12.5.11

sodoma & gomorra

o filme mostrava uns homens morenos, escuros, com os olhos pintados a lápis e muitos ouros. Nem sei se eu sabia o que era estupro, mas não adianta, a gente reconhece uma ameaça. Naquele caso, a ameaça era a munheca solta, e depois uma multidão de luxuriosos que pedia para Ló que lhes entregasse seus visitantes, dois anjos do Senhor, "porque queremos ter relações com eles". Alguma coisa no meu ventre se mexia. Eu nunca tive grandes crises de sexualidade. A educação evangélica me ensinou, antes de tudo, a ser fatalista. Quando meu pai descobriu que eu gostava de homens (nunca sei como enunciar isso, direito. Gay, homossexualidade, nada disso dá conta do recado. Essa é a graça das palavras?), meu pai disse pra uma tia, que não tinha a menor ideia do que estava se passando, pelo telefone: "Tudo tem solução, menos a morte". Ainda bem que meu pai não me matou, nem nada parecido. É bem comum isso acontecer e era um medo muito grande que eu tinha. Deus mandou enxofre e incêndio cair sobre as cidades pecadoras, eliminando da terra todos aqueles homens morenos e afeminados, brilhantes. Cinco mil anos depois meu pai morreu antes de mim, de câncer no pulmão, o que mostra que Deus não tem um julgamento muito constante. Depois de sair da cidade, a esposa de Ló desobedeu as ordens dos anjos de não olhar para trás, jamais, e virou uma estátua de sal que, segundo meus avós, continua lá, em algum arredor da Terra Prometida, provando que tudo era verdade. Ló ficou sozinho com suas duas filhas, que, segundo se diz, temerosas de não haver continuação da raça, pois moravam numa caverna e ninguém as visitava, embriagaram o pai e deitaram-se com ele, logo engravidando. A mulher é um ser muito pernicioso, como se sabe. E os desígnios de Deus são imperscrutáveis.

11.5.11

Hoje eu passei metade do dia me preparando para uma única coisa. Precisava ir no correio, que nem quando eu era adolescente, só que mais profissional. Agora tenho sono, preciso trabalhar e não quero, o profissionalismo nem sempre ganha. Minha avó é esquizofrênica e adolescente eu tinha medo de ser como ela. Lembro de ter lido em algum lugar que a loucura pulava uma geração. Olhava para a minha mãe, sem índicios de sair de si, e eu que via coisas e nunca sabia quem eu era, onde estava, uma vez uma estrada levantou-se ao ar feito serpente. Vagava de madrugada pela cidade e conversava com todo mundo, eu era muito curioso. Hoje tenho mais pudor do que paixão, deve de ser. Agora não me atrevo a sair. Está frio e não há o que buscar. Ou desisti de buscar. Quando lia alguma coisa que me deixava muito muito triste, porque falava de uma vida que eu achava que nunca teria, saía feito tiro até chegar no bairro mais longe. Depois voltava, correndo o risco de ser amado ou morto, nenhuma vez aconteceu tão ao extremo. Mas acontecia. Uma diferença básica entre eu e toda aquela gente da madrugada é que eu tinha só quinze anos e todo mundo tinha muito mais. Os meus colegas dormindo em casa, sendo acordados pela minha mãe ao telefone. Agora eu fico aqui comportado na casa, de passagem, tão limpo. Era um tempo bom aquele. Não, de jeito nenhum! Comprava selos e punha um pouco de mim em cada envelope. As cartas se avolumavam. Eu cresci em peso e corpo desde então. Muito disso é culpa das cartas. Outro tanto é o próprio tempo. Nunca confie em ninguém com mais de vinte e três anos. Se pudesse voltar um pouco, para esta mesma casa há dez anos atrás, eu me diria: tudo tem seu tempo. (Por outro lado, se aquele eu pudesse avançar dez anos e chegar até mim, agora, acho que diria que)

9.5.11

tem gente que diz que o melhor mesmo é você não ter tempo pra pensar. Sempre fazendo, sempre fazendo as coisas. E assim os dias passam e te fazem, você vira barro nas mãos do dia, argila e tão sossegada. Eu volto pra casa cantando uma música. Eu durmo, quando posso. Ela é uma mulher que nunca teve dor muito grande. Digo, dessas que se espera, a tragicidade da vida verdadeira. Tinha filhos vivos, marido vivo, pais vivos. Perdera os avós muito cedo, mas ninguém passa completamente incólume. E aquilo já tinha passado. O pior já passou, ela pensava, quando se dava conta de que sua vida era feliz. "E virá", imaginava. Tinha medo de não aguentar. Mas, no geral, não pensava em coisas muito ruins. A vida era uma história e as histórias têm pouca surpresa. A história do planeta é a mesma desde sempre: ele gira, gira e gira, Deus é o mesmo e pai eterno, há dias e noites infindáveis sucedendo-se. Há sol, há chuva. Há monstros mortos nunca vistos, há uma multidão agitando-se e morrendo, há ela.

Ah, ela.

Que volta de ônibus sem esperar o pior. No máximo, (nem pensa) essas desgraças que a vida reserva - mas ninguém nunca morreu por causa disso - um filho homossexual, a filha grávida aos quinze, acontecia na vizinhança, ela sabia das notícias e pensava "nossa...". E pensava: "Minha nossa...". Era secretária numa firma de. Ninguém pedia a sua opinião. Atendia a telefones. Se a história estiver chata, pare de ler. Se a sua vida é mais interessante, faça como ela: que não está lendo história alguma, apenas olha a rua: árvore, cachorro, gente, lanchonete.

Tem sorte de trabalhar só até as cinco da tarde. Entra muito cedo, mas gosta de sair cedo. Vem outra render ela pro turno da noite, ela chega em casa e ainda é sol. "Há sol", ela sabe. Mas não se diz. Gosta do sol. Agora acho que estou sendo em parte cruel, em parte bondoso, porque estou contando sobre essa mulher como contaria de um cachorro. Admiro e invejo muito os cachorros, que imagino mansos com o tempo, autômatos e estúpidos. Um cachorro fica alegre ou triste, óbvio que tem sentimentos. Mas, fora isso, é sempre um cachorro. Diferente da gente, que não sabe o que é.

Mas eu não queria ser essa mulher. Que agora abre a porta de casa e entra. Eu gostava agora de dizer "DEUS" e interromper o dia dela, mas de nada adiantaria. Deus, para ela, é uma certeza doméstica e obediente. Ela acredita em deus como eu acredito nos cachorros.

Ela abre a porta, tranquila e, antes que a tranquilidade a abandone - porque ela ainda não viu que a cozinha está revirada, que há sangue da filha no chão -, um golpe pesado acerta-a na nuca. Quando o marido voltar, encontrará o cãozinho assustado ganindo debaixo da cama.

***

esta história pode ter muitos desfechos. Talvez eu volte a escrevê-la um dia, só para eleger o melhor. Vamos supor que nada aconteça. Ou que uma bomba caia sobre as nossas cabeças. Uma guerra é tão improvável quanto a nação brasileira. A violência é tão fascinante, e nossas vidas são tão normais. Vamos supor que. Ah, que haja amor. Além de sol. Eu não acredito que mais nada possa acontecer. Tranquei as portas da casa e esta noite vou dormir sozinho ouvindo Chopin. Gosto tanto de Chopin...

8.5.11

a mãe do mundo

deixou a filha recém-nascida embrulhada em jornal e lençol e dentro do lixo. um catador de papel assustou-se. depois, disse aos jornalistas que repensara a própria vida e que estava voltando pro nordeste, de onde viera. espero que um dia eu consiga escrever essa história como ela merece. agora acho que só estou anotando os fatos e buscando um escape pro meu dia. nas últimas semanas houve muitas reportagens sobre bebês abandonados. e eu lembro de dois blocos do jornal nacional serem reservados para o nascimento da xuxa, que também reservou três andares de um hospital e os redecorou especialmente em rosa, para a vagina que ia nascer. a mulher foi encontrada depois de uma semana - pelas autoridades. tudo ficou gravado nas câmeras de vigilância. ela foi presa, ao que tudo indica, e chorou, disse que se arrependia, mas que não sabia o que fazer com a criança, já tem seis filhos em casa e é mãe solteira, muito pobre. ninguém que tenha acesso à internet está passando por uma situação assim, o que faz muita diferença na nossa apreensão dos fatos. os fatos!

que não haja amores servis
e a família se transforme
e o pai seja pelo menos o universo
e a mãe seja no mínimo a terra

maiakóvski escreveu melhor que isso,
mas era mais ou menos isso

e era quase meio-dia no lado escuro da vida

7.5.11

fico olhando os cachorros e querendo ser que nem eles.
essa coisa assim ao acaso,
mansa com o tempo

a boca abandonada

os dentes saíram passear

deixaram uma boca aberta, com fome

ela ia mastigar e AI machucava a gengiva

eram trinta e dois os dentes que tinha a boca humana

aquela que ficou banguela

banguela e aberta, né, eu já disse que ela ficou aberta

alguém passou e falou "fecha essa boca! senão entra mosquito!"

mas a boca continuou aberta mesmo assim

ela tinha muita esperança que os dentes voltassem

e olhava para o horizonte, triste e esperançosa, com seus olhos de boca

até que um dia UM DIA, até que SIM vinham eles!!!!!!

tão rápidos, tão livres, todos os seus dentes!!!!!

e entraram na boca de uma só vez

acomodaram-se nos seus buraquinhos, mas... ops

as asinhas batendo na língua, um zumbido saliva infinito

... não eram os dentes. ERAM MOSQUITOS!

6.5.11

espero un llamado telefónico y esta espera me angustía más que de costumbre

um ralo as nuvens vão e
viram brilho lá em que nasce
o sol, a manhã deu de estar
morna nos meus dedos
gelados, os sons de fundo,
um choro no quarto, marteladas,
a ventoinha do computador, espirros
de quem amanhece com rinite

querido diário

espero que não haja limite
para escrever as coisas poucas
do mundo, esse miúdo que a ninguém
interessa

(se em mim essa espera
vira carne, motivo e a macia
rigidez do corpo que acorda

pro nada - um dia que não chega
e acontece - pra coisa
calada na horda, e que mínima
muda e absurda

transforma

5.5.11

minha nossa senhora da postergação me
deu por insistência e atraso virginiano
uma agenda eletrônica quando eu tinha
catorze anos

todo ano, aliás, alguém me dava uma agenda
minha mãe tirava sarro "agora vai poder anotar
todos os compromissos", insinuando que eu
não tinha nenhum

não tinha mesmo. nossa senhora da postergação,
protetora ainda na infância de catecismo protestante,
nunca me abandona.

na primeira série todo mundo fazia dever de
casa, menos eu, que fingia ter feito e
por causa dos óculos (sempre pensei) ninguém
desconfiava.

o astrólogo me explica que é bem coisa de libra
essa languidez atrasada, abrir o blogue pra escrever
quando todos se perguntam "onde está?" e o celular,
ai o celular.

que os patrões não me ouçam. nossa senhora da
postergação me abraça gorda e condescendente,
eu me escondo no manto em que está envolta e finjo
que a agenda não é mais importante que o sol,
a morte, o toque nas partes íntimas
e o tempo presente

4.5.11

a vida inteligente

"nebulosa eu imagino" respondendo
você me apontava e perguntava "o
que é?", escuro céu e seus caminhos,
depois a gente subiu o morro baixo
e fazia tanto frio que não podíamos descruzar
os braços e nos tocar

em que planetas, redemoinhos
existirão seres e coisas repetindo
de outro jeito os nossos medos e
vontades?

olhávamos pra cima e somos tão
ignorantes. ali, por
exemplo, pode ser a constelação
do antes.

3.5.11

cuida bem de mim

é uma dessas músicas que brotam na nossa cabeça e ficam rodando o dia inteiro, mas a gente nunca sabe direito de quem é, nem como é que canta. Ele tinha voltado bêbado e eu fiquei muito bravo. Levei pro chuveiro, fiz tirar a roupa, ele tombava, mas ficou de pé e começou a se lavar. Eu fui, peguei uma toalha, depois voltei e fiquei com ele, meio envergonhado, mas do que teria vergonha? Ele era bonito e era meu. Já não tinha nada de meu. Eu olhava para o pinto dele com saudades, mas só a lembrança do desejo. Não tinha mais amor ali. No dia seguinte a gente transou pela última vez, na banheira, e não teve amor nenhum. Mas existia tanto, tanto, tanto amor - que até poderia não existir. Entende? Acho que, se eu fosse cristão, usaria esse argumento pra provar que Deus existe.

Depois nos enxugamos. Eu fui para o terraço e transei com outro cara. É o que eu faço. Minha mãe diria que eu não me dou ao respeito. Pode ser, mas acho que não. Eu me dou a qualquer coisa.

O amor parecia aquela história do membro amputado. Que não está mais ali, mas você sente a fisgada. Não tem mais braço, mas sente a coceira na ponta do dedo. O nosso corpo é incomunicável. Às vezes eu fico imaginando desastres, tenho uma imaginação muito trágica. Tumores, doenças, atropelos, várias mortes por dia. E sempre que ouço falar de alguma coisa, pronto, encasqueto que tenho essa coisa. De saúde e tal. Cisticercos, linfomas, aneurismas. Não é nisso que quero pensar.

Ele tomou três garrafas de vinho sozinho e se perdeu na cidade estrangeira. De madrugada, ressaca braba, eu lhe dei uma coca-cola, que a mim sempre cura. Ele teve nojo, mas tomou. A coca-cola foi inventada por um farmacêutico, acho que é essa a história. E é uma bebida letal. Clarice Lispector gostava muito, parece. Eu bebo, porque gosto e essa vida não vale uma birosca. No dia seguinte ele me falava admirado de como nunca tinha imaginado que beber coca-cola faria tão bem e disse "agora eu penso na coca-cola e, não sei, me parece uma coisa Boa". Enfim, esta é uma história qualquer, também não vale uma birosca. Tomei menos coca-cola desde então. E mais cerveja. Não queria esquecer ele, de jeito nenhum, longe disso. Mas hoje, se me derem três garrafas de vinho e me largarem em outro país, é capaz que eu saia andando até não saber onde estou.

2.5.11

jazz do coração

passei a madrugada fazendo uma última revisão do livro. Não aguento mais esse livro. Outro dia estava na casa de uma amiga e o bebê não parava de chorar. Eu pensei "que bebê chato" e depois pensei: meu deus me salve da crueldade o dia em que tiver um filho. Deus não existe, meu filho também não. Vou parir Deus quando for pai. Assim poderei passar a noite em claro revisando o livro pela última vez, depois dormir por duas horas e acordar para fazer o leite com achocolatado, levar na escola, servir de exemplo. Já sou um ótimo exemplo. Mas hoje não escovei os dentes. O dia em que descobrirem que eu não sou bom moço, estou ferrado. O dia em que desconfiarem que me CPF não diz tudo. Não arranjo mais emprego, não me deixam adotar, ninguém vai me dedicar um pensamento de amor que seja. Um futuro tenebroso pode haver. São quase quatro da tarde. Vou escovar os dentes e fazer café. Acordei cedo e ainda estou numa espécie de jejum que me põe numa espécie de transe. Fico tonto, sem nutrientes, vejo o filho andando pela casa e eu sem escovar os dentes, tenho um livro não publicado, o futuro ao meu filho pertence.

1.5.11

nasceu um dia na minha mão
e as estrelas que estavam nela
se perderam na maré

noturna que subia, apagadas
e dispersas, sem espaço
na palma do meu dia

escapava entre os dedos
e tomava toda a praia, que sem
fronteiras anoitecia

areia gélida e escura,
eu me afogava em tanta luz
com as duas mãos vazias