3.7.11

uma infância protestante, segunda parte

mas tinha também o roberto. eu nunca lembro do roberto, mas ele foi muito importante.

era filho de um pastor, portanto acima de qualquer suspeita. e todo mundo dizia "nossa como ele é inteligente!!!".

a única vez em que eu estive sozinho com o roberto foi quando ele precisava comprar coca-cola pra o lanche das crianças e ele me chamou pra ir até a esquina.

o roberto tinha um moicano crespo, só vestia roupa preta, usava óculos e era muito simpático.

uma vez, andando com a minha mãe na rua, tinha um punk e um cachorro sentados na calçada. minha mãe falou "olha dois cachorros sentados na calçada".

mas com o roberto ninguém queria ser punkofóbico, porque ele era muito gente boa. e, mais importante, o roberto ele mesmo não tinha nada de cachorrofóbico.

agora, pensando bem, tou achando que ele foi o meu primeiro role model.

no caminho até a loja de conveniência do posto de gasolina, eu adorava ser tratado como adulto, o roberto falou uma coisa que eu nunca vou esquecer enquanto eu não tiver alzheimer ou não fizerem uma lobotomia num dos campos de concentração que se aproximam, credo. mas eu nunca vou esquecer.

"devia ter um verbo 'piscinar'"
"...?"
"é. porque você tá na piscina, mas não tá nadando. você tá piscinando"

eu fiquei admirando ele, que devia ter uns quinze anos na época, eu era mais criança ainda, e queria dizer uma coisa muito inteligente para agradecer e que ele fosse meu amigo pra sempre.

"...!"

é uma pena que eu não seja bom em dizer coisas muito inteligentes na hora em que elas poderiam ser ditas. às vezes fico quieto porque o presente é muito grande, minhas mãos são pequenas, e o laço de fita que embrulha tem um nó vermelho e lindo que me ocupa todo.

mas o roberto, além de tudo, não era patetafóbico e foi meu companheiro até que a coca-cola estivesse segura e gelada no tabernáculo.

naquele dia eu descobri a anarquia da língua, o amor incondicional, que punx not dead e hoje penso que, se o deus dos crentes existir, ele não tem nada a ver com o que se diz dele por aí.

ele deve ser até parecido com o roberto.

2 comentários:

  1. "às vezes fico quieto porque o presente é muito grande, minhas mãos são pequenas, e o laço de fita que embrulha tem um nó vermelho e lindo que me ocupa todo".
    Bonito isso. E tudo mais nesse texto tb.
    Bjos!

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