coleta o movimento
as árvores passadas pelo
vento te ofertam essa
busca, você brusca
queda de uma folha ao
alto, tragada pelo
vento
coleta o mar que encolhe
as pistas de outras
ilhas, raízes
flutuantes com roedores em
exílio
coleta
então as
vozes, e abarca o que o
bar cobre: um silêncio igual
ao teu, só que esquecido
pela pressa
e enquanto rasteja e voa e
a onda te traz e te leva,
exerce teu único instinto -
e coleta
28.9.11
os talentos obscuros
deus deu para cada um um talento. O problema é que às vezes ele não é tão evidente. Em italiano eu escutei uma vez uma expressão, pollice nera, o dedo negro, diz-se da pessoa que toca as plantas e elas morrem, não pode criar.
...
Andava com uma nuvem negra sobre a cabeça. E onde chegava fazia sombra. Fotos da maternidade mostram o vapor denso saindo da vagina, esse prenúncio do bebê assustaria cientistas, caso único no mundo. Logo a criança enrugada e mal destino. Ou nem tanto? Tentou fugir de casa muitas vezes, o pai ralhava sem sossego, a nuvem sujava as paredes e ficava na frente da televisão. Nunca teve sucesso em se esconder justamente /. Começou a trabalhar na praia da cidade onde morava, temporadas de verão. Protegia banhistas do sol intenso do Nordeste.
Um dia, inadvertida, a nuvem choveu. E tardou meses nessa água, que estava tão acumulada. Os noticiários faziam fila pra filmar a esquisitice. Choveu choveu choveu. Conseguiu um patrocínio de uma empresa que vendia capas de chuva. Com isso, podia se alimentar bem e pagar outras miudezas, um sorvete que tomava ensopadx, remendando a alegria.
Acordou uma manhã sem nada em cima. Nem água nem negrume. O sol, que só conhecia por reflexo, magoou-lhe a vista quase com um buraco na retina. E viveu assim pra sempre, até morrer.
...
...
Não é que não soubesse nenhum idioma. Não se trata de uma deficiência cerebral nem nada do gênero. Como dizer? Que elx não dizia. Aprendia palavras avulsas, às vezes conectava uma à outra e até sabia dizer, mas todas as línguas lhe eram estrangeiras. Todas? As que teimaram que aprendesse. "Alguma vai sair", o pediatra garantiu aos pais angustiados. Aos doze anos, sabia falar "mamãe" em português, chinês, russo, catalão, quechua... E qual o problema? Sempre com dificuldade. Sempre tendo que lembrar, antes, como se dizia. E à mãe lhe doía não ser chamada diretamente do coração da sua cria. Me faço entender? Não tinha língua materna.
...
...
Sentia cheiro de cocô nas coisas. E cada vez era como se fosse a primeira vez. Um estranhamento. E não era dessas pessoas que gostam do cheiro de cocô. Não. Não gostava. Peregrinou de médico em médico buscando uma cirurgia que lhe cortasse o olfato, mas ninguém quis assinar os papéis porque era arriscado. Ninguém queria arriscar.
Ganhou esse talento um dia, no começo da primavera. Ia andando pela rua, tropeçou, caiu e bateu o nariz.
Havia uma raça de gente que não tinha nariz. Esta é outra história. Mas não vou contar agora, pra não fugir do tema.
...
...
Caía. Esse era seu talento, cair. Depois se levantava. Eis outro jeito de contar a história: esse era seu talento. Levantar-se.
...
Andava com uma nuvem negra sobre a cabeça. E onde chegava fazia sombra. Fotos da maternidade mostram o vapor denso saindo da vagina, esse prenúncio do bebê assustaria cientistas, caso único no mundo. Logo a criança enrugada e mal destino. Ou nem tanto? Tentou fugir de casa muitas vezes, o pai ralhava sem sossego, a nuvem sujava as paredes e ficava na frente da televisão. Nunca teve sucesso em se esconder justamente /. Começou a trabalhar na praia da cidade onde morava, temporadas de verão. Protegia banhistas do sol intenso do Nordeste.
Um dia, inadvertida, a nuvem choveu. E tardou meses nessa água, que estava tão acumulada. Os noticiários faziam fila pra filmar a esquisitice. Choveu choveu choveu. Conseguiu um patrocínio de uma empresa que vendia capas de chuva. Com isso, podia se alimentar bem e pagar outras miudezas, um sorvete que tomava ensopadx, remendando a alegria.
Acordou uma manhã sem nada em cima. Nem água nem negrume. O sol, que só conhecia por reflexo, magoou-lhe a vista quase com um buraco na retina. E viveu assim pra sempre, até morrer.
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Não é que não soubesse nenhum idioma. Não se trata de uma deficiência cerebral nem nada do gênero. Como dizer? Que elx não dizia. Aprendia palavras avulsas, às vezes conectava uma à outra e até sabia dizer, mas todas as línguas lhe eram estrangeiras. Todas? As que teimaram que aprendesse. "Alguma vai sair", o pediatra garantiu aos pais angustiados. Aos doze anos, sabia falar "mamãe" em português, chinês, russo, catalão, quechua... E qual o problema? Sempre com dificuldade. Sempre tendo que lembrar, antes, como se dizia. E à mãe lhe doía não ser chamada diretamente do coração da sua cria. Me faço entender? Não tinha língua materna.
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Sentia cheiro de cocô nas coisas. E cada vez era como se fosse a primeira vez. Um estranhamento. E não era dessas pessoas que gostam do cheiro de cocô. Não. Não gostava. Peregrinou de médico em médico buscando uma cirurgia que lhe cortasse o olfato, mas ninguém quis assinar os papéis porque era arriscado. Ninguém queria arriscar.
Ganhou esse talento um dia, no começo da primavera. Ia andando pela rua, tropeçou, caiu e bateu o nariz.
Havia uma raça de gente que não tinha nariz. Esta é outra história. Mas não vou contar agora, pra não fugir do tema.
...
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Caía. Esse era seu talento, cair. Depois se levantava. Eis outro jeito de contar a história: esse era seu talento. Levantar-se.
26.9.11
o projeto inglório
serraram metais, recicláveis. Com a água mofada disseram que nunca seria possível. Mas os homens da ciência, protegidos pelos ossos, deram ao fim nome um construto: árvore. Criamos a vida em células vegetais a partir de matéria inerte.
***
acreditaram entender as engrenagens. "Você solda aqui", pro aprendiz, "depois eu te ensino a drenar". Meu coração tinha se desintegrado na ação dos pequenos bichos, foi sempre só um músculo, e muitos anos depois. Usam um fêmur pra se defender. "E não só a nós", professor, bestial, "mas a nossa cultura". Nas pontas um verde autófago. Escreve com o pedaço de carvão: "A U T Ó F A G O". Numa língua que nunca mais será a portuguesa. Não sei que mais dizer dessa gente.
***
Os outros, sem árvore, vêm querem o conhecimento. Medrosas hienas. A gente expõe seus crânios conservados em jarros de vidro nos muros do Instituto. Eles temem e planejam.
***
Temos que registrar (um diz) sem palavras alvoroçadas. "Alvoroço" já causa comoção. Os demais se entreolham. "Entreolham" causa começão. Veem diminuídos a árvore, sábia no seu silêncio, metálica e viva. Nós nunca chegaremos (outro pondera, mas não diz) ao fundo coração dos homens. Há homens e mulheres. Nenhum deles se encontra nesta língua em que eu escrevo. "Eu" causa (já repito) comoção.
Urge inventar um silêncio que diga. Ou toda a história das civilizações se repete. Soldam-lhe os braços junto ao corpo, fazem as folhas brotarem na copa. Não sobra registro das pirâmides. Fazem-se um bosque deles mesmos. A planta: nossa última fronteira.
***
Estéril menos o teu rosto. Ser assim pessoal e taquigráfico não importa. Olhos molhados e fundos, escuros, as pessoas se calaram porque não sabiam te dizer, e agora falam e falam e falam. Entrava num trem sem anúncio de direção, país cortado por trilhos, dormentes.
***
O tempo enfim chegou também pra aquelas cabeças conservadas rumo ao medo. É deserto e deserta o que se adianta. Tudo, TUDO afeta. Extermínio das raças futuras. Que este dia seja bom.
***
acreditaram entender as engrenagens. "Você solda aqui", pro aprendiz, "depois eu te ensino a drenar". Meu coração tinha se desintegrado na ação dos pequenos bichos, foi sempre só um músculo, e muitos anos depois. Usam um fêmur pra se defender. "E não só a nós", professor, bestial, "mas a nossa cultura". Nas pontas um verde autófago. Escreve com o pedaço de carvão: "A U T Ó F A G O". Numa língua que nunca mais será a portuguesa. Não sei que mais dizer dessa gente.
***
Os outros, sem árvore, vêm querem o conhecimento. Medrosas hienas. A gente expõe seus crânios conservados em jarros de vidro nos muros do Instituto. Eles temem e planejam.
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Temos que registrar (um diz) sem palavras alvoroçadas. "Alvoroço" já causa comoção. Os demais se entreolham. "Entreolham" causa começão. Veem diminuídos a árvore, sábia no seu silêncio, metálica e viva. Nós nunca chegaremos (outro pondera, mas não diz) ao fundo coração dos homens. Há homens e mulheres. Nenhum deles se encontra nesta língua em que eu escrevo. "Eu" causa (já repito) comoção.
Urge inventar um silêncio que diga. Ou toda a história das civilizações se repete. Soldam-lhe os braços junto ao corpo, fazem as folhas brotarem na copa. Não sobra registro das pirâmides. Fazem-se um bosque deles mesmos. A planta: nossa última fronteira.
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Estéril menos o teu rosto. Ser assim pessoal e taquigráfico não importa. Olhos molhados e fundos, escuros, as pessoas se calaram porque não sabiam te dizer, e agora falam e falam e falam. Entrava num trem sem anúncio de direção, país cortado por trilhos, dormentes.
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O tempo enfim chegou também pra aquelas cabeças conservadas rumo ao medo. É deserto e deserta o que se adianta. Tudo, TUDO afeta. Extermínio das raças futuras. Que este dia seja bom.
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histórias dos prédios e das árvores,
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22.9.11
a alma da galinha
na rússia, um homem de 21 anos conheceu outro de 32 por um site de relacionamentos homossexuais, chamou-o para sua casa, matou-o talvez com veneno, então fatiou seu corpo e fabricou hambúrgueres, salsichas e croquetes da carne, com os quais se alimentou por uma semana.
Prezada senhora,
vimos informar por meio desta que seu filho, ao tentar manter relações homossexuais com outro homem, foi morto e seu corpo foi usado para a confecção de hambúrgueres, salsichas e croquetes, com os quais o outro homossexual se alimentou por uma semana. Lamentamos sua perda e lhe pedimos que venha à delegacia assim que possível para que possamos dar o devido andamento ao caso.
Sem mais,
Cordialmente,
Polícia Russa.
ontem, coincidentemente, eu comprei um frango inteiro e destrocei-o pensando que aquele era um animal morto e que me daria comida por aproximadamente uma semana. cortei o peito em quatro filés grossos, guardei moelas e demais miúdos num saquinho, separei as coxas, as asas, com o que restou ontem mesmo fiz uma canja que foi muito elogiada. quebrava os ossos e metia os dedos na carne do bicho pensando se deveria agradecer à alma da galinha / ou talvez eu devesse apenas dizer: te respeito muito. comi sem qualquer sentimento cristão além da voracidade e do senso de justiça. ao fim, pensei que eu e a galinha somos inconciliáveis e que a única consequência metafísica desse meu ato pode ser acumular carma ruim.
reencarnaremos mil vezes frango, insones nos campos de concentração que são as granjas, inflados de hormônios, e alimentaremos pessoas que não apreciam carne humana.
Prezada senhora,
vimos informar por meio desta que seu filho, ao tentar manter relações homossexuais com outro homem, foi morto e seu corpo foi usado para a confecção de hambúrgueres, salsichas e croquetes, com os quais o outro homossexual se alimentou por uma semana. Lamentamos sua perda e lhe pedimos que venha à delegacia assim que possível para que possamos dar o devido andamento ao caso.
Sem mais,
Cordialmente,
Polícia Russa.
ontem, coincidentemente, eu comprei um frango inteiro e destrocei-o pensando que aquele era um animal morto e que me daria comida por aproximadamente uma semana. cortei o peito em quatro filés grossos, guardei moelas e demais miúdos num saquinho, separei as coxas, as asas, com o que restou ontem mesmo fiz uma canja que foi muito elogiada. quebrava os ossos e metia os dedos na carne do bicho pensando se deveria agradecer à alma da galinha / ou talvez eu devesse apenas dizer: te respeito muito. comi sem qualquer sentimento cristão além da voracidade e do senso de justiça. ao fim, pensei que eu e a galinha somos inconciliáveis e que a única consequência metafísica desse meu ato pode ser acumular carma ruim.
reencarnaremos mil vezes frango, insones nos campos de concentração que são as granjas, inflados de hormônios, e alimentaremos pessoas que não apreciam carne humana.
21.9.11
se eu morrer atingido por satélite
a nasa anuncia que perdeu controle de um grande satélite
que desfacelado em 26 enormes pedaços cairá
em partes da terra com chances remotas de atingir seres humanos
que trabalhem ou sejam parentes dos engenheiros da nasa
vai ter piada se cair na minha cabeça, após sair
do curso de astrologia, atravessando a calle estados
unidos
***
chegamos ao tempo em que sofrem as órbitas
colapsos da previsão de funcionamento, engenheiros
falhos como astrólogos
os planetas, mal dimensionados, também caem
seus diâmetros que não conhecíamos senão por lendas
da astronomia dos norte-americanos
se despedaçam e atingem
troços de vênus resfriados no mar e os
estranhos sinais em anéis do planeta
saturno alocados nas florestas de pinheiros
do canadá
o próprio planeta terra
explode ao entrar na atmosfera
sete bilhões de pessoas
dispersam no espaço igual
quinquilhões de peixes, trilhões de
macacos
na infância
protestante em que eu lia
o apocalipse prometido o
sofrimento "buscareis
a morte e não a encontrareis" eu
não imaginava tantos fins
possíveis para um mundo que
insiste em não acabar
minha pressa é
como a do satélite
cada hora de movimento
são milhares de quilômetros do
nosso
mas minha pressa é ao
contrário
que desfacelado em 26 enormes pedaços cairá
em partes da terra com chances remotas de atingir seres humanos
que trabalhem ou sejam parentes dos engenheiros da nasa
vai ter piada se cair na minha cabeça, após sair
do curso de astrologia, atravessando a calle estados
unidos
***
chegamos ao tempo em que sofrem as órbitas
colapsos da previsão de funcionamento, engenheiros
falhos como astrólogos
os planetas, mal dimensionados, também caem
seus diâmetros que não conhecíamos senão por lendas
da astronomia dos norte-americanos
se despedaçam e atingem
troços de vênus resfriados no mar e os
estranhos sinais em anéis do planeta
saturno alocados nas florestas de pinheiros
do canadá
o próprio planeta terra
explode ao entrar na atmosfera
sete bilhões de pessoas
dispersam no espaço igual
quinquilhões de peixes, trilhões de
macacos
na infância
protestante em que eu lia
o apocalipse prometido o
sofrimento "buscareis
a morte e não a encontrareis" eu
não imaginava tantos fins
possíveis para um mundo que
insiste em não acabar
minha pressa é
como a do satélite
cada hora de movimento
são milhares de quilômetros do
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20.9.11
apesar das evidentes qualidades do trabalho
já começo a receber as respostas - negativas - das editoras para o livro que escrevi. a expectativa - ainda que desconfiada - quando se frustra dá uma tristeza. olho em volta. meu companheiro de casa me deu um resto de tabule pra comer. como também bolachas e margarina. e há um resto de café frio no bule, não vou requentar.
hoje recebi meus primeiros pesos argentinos por um trabalho feito aqui, desde que cheguei. foi algo como vinte reais, pagos por uma hora de aula. gastei metade disso num almoço agradável com o meu aluno. voltei para casa, fiz café.
...
de verdade: não sei o que pensar sobre isso. me fere e me acalenta o ego, por um lado, que não me queiram; por outro, que eu não agrade ao que não me agrada. parece, ao fim e ao cabo, uma troca justa, com quantos macacos se faz um galho. conseguir um emprego e ser bem quisto por lá também me deixa arisco. fiquei triste quando passei no vestibular porque essas coisas não me dão uma alegria pura - como, por exemplo, ver um gato sobre a mesa. que um gato me queira, me alegro. mas o resto também existe. ou posso viver só de gatos?
...
outro de quem lembrei ontem, mas não pus no texto, kawabata se matou já velho, tendo recebido um nobel. o dinheiro dinamitado dos suecos, a culpa ao mundo. aquele ano seria um japonês e mishima era - senão o preferido - ao menos o mais evidente. mishima se matou, também, mas de outro modo. kawabata acho que foi com veneno, não me lembro.
...
olho para a página cheia de anotações, meu exercício intelectual de viver. amanhã irei à repartição burocrática para legalizar minha residência no país. tenho que preparar aulas, também, e buscar ganhar mais e mais dinheiro, para pagar as contas, para continuar escrevendo.
o tempo é um saco sem fundo.
hoje recebi meus primeiros pesos argentinos por um trabalho feito aqui, desde que cheguei. foi algo como vinte reais, pagos por uma hora de aula. gastei metade disso num almoço agradável com o meu aluno. voltei para casa, fiz café.
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de verdade: não sei o que pensar sobre isso. me fere e me acalenta o ego, por um lado, que não me queiram; por outro, que eu não agrade ao que não me agrada. parece, ao fim e ao cabo, uma troca justa, com quantos macacos se faz um galho. conseguir um emprego e ser bem quisto por lá também me deixa arisco. fiquei triste quando passei no vestibular porque essas coisas não me dão uma alegria pura - como, por exemplo, ver um gato sobre a mesa. que um gato me queira, me alegro. mas o resto também existe. ou posso viver só de gatos?
...
outro de quem lembrei ontem, mas não pus no texto, kawabata se matou já velho, tendo recebido um nobel. o dinheiro dinamitado dos suecos, a culpa ao mundo. aquele ano seria um japonês e mishima era - senão o preferido - ao menos o mais evidente. mishima se matou, também, mas de outro modo. kawabata acho que foi com veneno, não me lembro.
...
olho para a página cheia de anotações, meu exercício intelectual de viver. amanhã irei à repartição burocrática para legalizar minha residência no país. tenho que preparar aulas, também, e buscar ganhar mais e mais dinheiro, para pagar as contas, para continuar escrevendo.
o tempo é um saco sem fundo.
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que farei com este blog,
trabalhos manuais
19.9.11
e procuro uma síntese nas demoras
a cada rancor ou afeto lembrado, ela logo agarrava um bloco de papel qualquer, sempre tinha algum consigo, e vários espalhados pela casa, e escrevia em vertigem de vontade: "Fulanx, blablablablablabla...". Se era ódio, dizia todas as razões. Se era carinho, afagava com palavras lindas, prometia seu corpo inteiro em troca. Ao final da carta, um pouco antes de escrever com todas as letras, ou com uma só, o seu nome, já havia voltado àquele ponto anterior à lembrança. Um ponto em que estamos quase sempre sem perceber. Em que, se você para de olhar ao redor e tenta ver dentro de si, só encontra dois quartos vazios, cinza, com uma luz frouxa e neutra entrando da janela.
Mas eu preciso parar com essa mania. Então se precavê: leva sempre igualmente envelope e o caderno de endereços. Mal termina, mete a carta dentro, fecha. Leva selos. Sela. Escreve o nome da pessoa e pensa, como se soubesse, querendo saber, que aquela carta vai chegar. Pelas mãos de muitos funcionários dos Correios, que sairão da greve à força, as precárias condições trabalhistas existem para que eu escreva e seja lida e então lembrada, e talvez até retribuída em louvor ou em raiva.
Ninguém existe sozinho. A reportagem uma vez encontrou um soldado do Japão que ficou muitas décadas escondido numa floresta pensando que ainda havia guerra. A última notícia que ele tinha visto era das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Quando lhe contaram que havia paz, ele quis que ninguém nunca o tivesse descoberto naquele esconderijo e que a guerra tivesse continuado e que aquelas pessoas morressem junto com as bombas. A guerra não é justa. A paz tampouco. E na floresta pelo menos ele podia viver feito um fantasma, apartado dos mortos que perambulam por aí.
Ela, também, de certo modo é um fantasma. Depois, nunca lembra de sair com as cartas, e mesmo às vezes não as quer enviar por medo ou por vergonha. Então acumula centenas de "Queridx,"'s pelos cômodos, embaixo da cama, uns põe em baú e outros deixa à vista como uma chantagem, pra que num corredor o encontro lhe diga: "você tem que ir até o final.
Agora / você tem que ir até o final. O futuro me cobra uma atitude. A dimensão prática da vida não pode ser descartada, não se pode fingir que não existe. Um dia chega a imprensa e devasta a sua floresta. Seus únicos parentes vivos são primos distantes e indiferentes. Sua família vivia em Hiroshima e Nagasaki e você não declarou guerra a ninguém. Mas é uma desgraça que a gente esteja vivo. O melhor mesmo é tirar o melhor proveito disso. E, quando for preciso, se esconder.
Ela é uma pessoa muito sozinha, você deve imaginar. Isso eu não sei. Vive sozinha, talvez. No sentido de que não mora com mais ninguém. Sua idade? Também não sei. Não é verossímil que seja jovem, certo? Uma solteirona, certo? Não existem mais solteironas hoje. E ninguém mais escreve cartas, hoje. Às vezes eu escrevo como se estivesse nos anos 1950 ou algo assim. Tem a ver com as referências literárias, claro. Mas - também, também - com que a pausa necessária não tem tempo. E da minha vida eu já estou farto. Ela é todo o resto que não for o que eu escrevo. Então não vou ficar andando em volta, feito cachorro atrás do próprio rabo.
Minha vida é isto aqui.
O que sei é que Mishima, numa grande inquietação com a quietude do Japão, tentou dar um golpe de estado, fracassou e, previsto um fracasso, suicidou-se e teve a cabeça decepada num ritual samurai.
A espada dela é uma caneta. Enviar estas cartas seria meu próprio haraquiri. Todos veriam que estou viva e que faço as mais diversas ideias a respeito de cada um. Mas se saio pro trabalho, e estou viva, ninguém vê nada?
***
O senhor Asuka, num descuido das autoridades, mesclou-se à cidade como antes camuflado na floresta, esguio escorreu até uma linha de trem e seguiu-a, quanto pôde, até estar tranquilo fora de alcance dos nomes e carimbos que o queriam. Foi dar num campo aberto, depois numa colina, por fim num bosque ladeado por vilas. Era o fim da floração das cerejeiras e o chão estava coberto de cores que se iam, mais um pouco transformadas em matéria morta e fértil. O senhor Asuka acomodou-se muito cansado embaixo de uma árvore e olhou para cima, para a copa nua que agora o protegia.
Mas o entorno me tira as forças. Já não tinha idade para fazer dessas. Quando o governo o encontrou, deu-lhe a idade que teria se desde o princípio tivesse conhecido que o período era de paz. Na selva, conservava o ímpeto de quem se entrincheira. Mas agora era um velho e não tinha uniforme.
O entorno me tira as forças. É uma ilusão pesada a que vivemos. Uma coluna de ar sobre a nossa cabeça se chama "atmosfera" e pesa. Vocês não aprenderam? A vida é guerra.
O velho, cada vez mais velho, de cansaço se desliga do passado e volta para o presente em que por muito tempo esteve. Preciso voltar e ver de novo aqueles dois quartos vazios. E ao olhar para eles o senhor Asuka vê / ele vê o inevitável: que florescem cerejeiras. O teu quarto, meu bem, é um jardim.
Mas eu preciso parar com essa mania. Então se precavê: leva sempre igualmente envelope e o caderno de endereços. Mal termina, mete a carta dentro, fecha. Leva selos. Sela. Escreve o nome da pessoa e pensa, como se soubesse, querendo saber, que aquela carta vai chegar. Pelas mãos de muitos funcionários dos Correios, que sairão da greve à força, as precárias condições trabalhistas existem para que eu escreva e seja lida e então lembrada, e talvez até retribuída em louvor ou em raiva.
Ninguém existe sozinho. A reportagem uma vez encontrou um soldado do Japão que ficou muitas décadas escondido numa floresta pensando que ainda havia guerra. A última notícia que ele tinha visto era das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Quando lhe contaram que havia paz, ele quis que ninguém nunca o tivesse descoberto naquele esconderijo e que a guerra tivesse continuado e que aquelas pessoas morressem junto com as bombas. A guerra não é justa. A paz tampouco. E na floresta pelo menos ele podia viver feito um fantasma, apartado dos mortos que perambulam por aí.
Ela, também, de certo modo é um fantasma. Depois, nunca lembra de sair com as cartas, e mesmo às vezes não as quer enviar por medo ou por vergonha. Então acumula centenas de "Queridx,"'s pelos cômodos, embaixo da cama, uns põe em baú e outros deixa à vista como uma chantagem, pra que num corredor o encontro lhe diga: "você tem que ir até o final.
Agora / você tem que ir até o final. O futuro me cobra uma atitude. A dimensão prática da vida não pode ser descartada, não se pode fingir que não existe. Um dia chega a imprensa e devasta a sua floresta. Seus únicos parentes vivos são primos distantes e indiferentes. Sua família vivia em Hiroshima e Nagasaki e você não declarou guerra a ninguém. Mas é uma desgraça que a gente esteja vivo. O melhor mesmo é tirar o melhor proveito disso. E, quando for preciso, se esconder.
Ela é uma pessoa muito sozinha, você deve imaginar. Isso eu não sei. Vive sozinha, talvez. No sentido de que não mora com mais ninguém. Sua idade? Também não sei. Não é verossímil que seja jovem, certo? Uma solteirona, certo? Não existem mais solteironas hoje. E ninguém mais escreve cartas, hoje. Às vezes eu escrevo como se estivesse nos anos 1950 ou algo assim. Tem a ver com as referências literárias, claro. Mas - também, também - com que a pausa necessária não tem tempo. E da minha vida eu já estou farto. Ela é todo o resto que não for o que eu escrevo. Então não vou ficar andando em volta, feito cachorro atrás do próprio rabo.
Minha vida é isto aqui.
O que sei é que Mishima, numa grande inquietação com a quietude do Japão, tentou dar um golpe de estado, fracassou e, previsto um fracasso, suicidou-se e teve a cabeça decepada num ritual samurai.
A espada dela é uma caneta. Enviar estas cartas seria meu próprio haraquiri. Todos veriam que estou viva e que faço as mais diversas ideias a respeito de cada um. Mas se saio pro trabalho, e estou viva, ninguém vê nada?
***
O senhor Asuka, num descuido das autoridades, mesclou-se à cidade como antes camuflado na floresta, esguio escorreu até uma linha de trem e seguiu-a, quanto pôde, até estar tranquilo fora de alcance dos nomes e carimbos que o queriam. Foi dar num campo aberto, depois numa colina, por fim num bosque ladeado por vilas. Era o fim da floração das cerejeiras e o chão estava coberto de cores que se iam, mais um pouco transformadas em matéria morta e fértil. O senhor Asuka acomodou-se muito cansado embaixo de uma árvore e olhou para cima, para a copa nua que agora o protegia.
Mas o entorno me tira as forças. Já não tinha idade para fazer dessas. Quando o governo o encontrou, deu-lhe a idade que teria se desde o princípio tivesse conhecido que o período era de paz. Na selva, conservava o ímpeto de quem se entrincheira. Mas agora era um velho e não tinha uniforme.
O entorno me tira as forças. É uma ilusão pesada a que vivemos. Uma coluna de ar sobre a nossa cabeça se chama "atmosfera" e pesa. Vocês não aprenderam? A vida é guerra.
O velho, cada vez mais velho, de cansaço se desliga do passado e volta para o presente em que por muito tempo esteve. Preciso voltar e ver de novo aqueles dois quartos vazios. E ao olhar para eles o senhor Asuka vê / ele vê o inevitável: que florescem cerejeiras. O teu quarto, meu bem, é um jardim.
18.9.11
risca na própria pele o aleatório
o amor estava em volta dele. Feito um mar difuso, aéreo, sem fundo, correntes que levavam à sua borda o amor distante e concentravam-no à beira-pele em detrito. Poderia ser a história de Narciso tornado água: eu sou um lago que traga.
***
andam usando demais a palavra "amor", virou mate lavado e ela não sente o gosto. Mas tem um avassalo no dentro, uma vontade de morrer, viver, que precisa de palavra. É uma tatuadora e o estúdio é uma sobreloja, pequeno, do centro da cidade. Todo dia desenha estrela. Ninguém brilha, você sabe. Essa gente não entende! Risca na própria pele o aleatório: "coisa", escreve, e logo "verbo". Garrafa, verme, bucha, atento, vômito. Volta ao próprio corpo entre uma estrela e outra. Difícil que dispersando assim ela consiga alguma síntese. Acende o cigarro, olha o bico do peito, e pensa.
***
Resignada, Sara delega Raabe para que tenha um filho de Abraão. O menino cresce forte, mas um dia chegam anjos do Senhor e dizem a Sara que ela terá um filho, ela mesma. Estéril e já de idade avançada. Sara ri e os anjos a repreendem: por acaso Deus Nosso Senhor não pode tudo? Envergonhada, Sara sabe: por acaso Ele pode, sim. E fica grávida.
Depois, com o ciúme próprio das mulheres, embora o ciúme não seja particularmente próprio das mulheres, mas aqui nos chama a Bíblia a dizer que as mulheres são impuras e traiçoeiras e eu reitero o contexto apenas para evidenciá-lo, e também para garantir a primogenitura de seu filho Isaque, Sara expulsa Raabe e a envia para o deserto, com a graça de Deus, onde ela morreria de fome e sede junto a seu filho se a graça de Deus não fosse ela também traiçoeira e impura e não fizesse brotar, daquele seco monstro, um fio de água - e a continuação da espécie.
***
***
andam usando demais a palavra "amor", virou mate lavado e ela não sente o gosto. Mas tem um avassalo no dentro, uma vontade de morrer, viver, que precisa de palavra. É uma tatuadora e o estúdio é uma sobreloja, pequeno, do centro da cidade. Todo dia desenha estrela. Ninguém brilha, você sabe. Essa gente não entende! Risca na própria pele o aleatório: "coisa", escreve, e logo "verbo". Garrafa, verme, bucha, atento, vômito. Volta ao próprio corpo entre uma estrela e outra. Difícil que dispersando assim ela consiga alguma síntese. Acende o cigarro, olha o bico do peito, e pensa.
***
Resignada, Sara delega Raabe para que tenha um filho de Abraão. O menino cresce forte, mas um dia chegam anjos do Senhor e dizem a Sara que ela terá um filho, ela mesma. Estéril e já de idade avançada. Sara ri e os anjos a repreendem: por acaso Deus Nosso Senhor não pode tudo? Envergonhada, Sara sabe: por acaso Ele pode, sim. E fica grávida.
Depois, com o ciúme próprio das mulheres, embora o ciúme não seja particularmente próprio das mulheres, mas aqui nos chama a Bíblia a dizer que as mulheres são impuras e traiçoeiras e eu reitero o contexto apenas para evidenciá-lo, e também para garantir a primogenitura de seu filho Isaque, Sara expulsa Raabe e a envia para o deserto, com a graça de Deus, onde ela morreria de fome e sede junto a seu filho se a graça de Deus não fosse ela também traiçoeira e impura e não fizesse brotar, daquele seco monstro, um fio de água - e a continuação da espécie.
***
aleatório
havia uma viagem agendada
pegava outro gato e guardava
numa caixa grande feita pra isso, posta no mais fundo da construção
os bichos começavam a comer-se uns aos outros
eu agendo a viagem, guardo os gatos e me vou
*
os escorpiões, se passam fome, têm filhos pra comê-los
já uma barata chega a tal êxtase de sobrevivência que come-se a si mesma
faz assim:
come terra madeira repolho o que tiver
em não tendo come os filhos
em não tendo come as asas
(a minha cozinha está cheia de baratas
e eu acho que elas têm mais direito de estar ali do que eu)
*
li hoje uma entrevista que me fez pensar
se eu não deveria assumir o papel de escritor como uma função social de fato e de direito
e buscar deliberadamente uma renovação da tradição ou algo assim
o segundo suspiro desse pensamento me trouxe uma velha preguiça
olhei minhas asas: não tenho vocação pra ser barata
(hoje, por exemplo, trabalhei como um adulto)
*
ou: tenho vocação, mas depende da barata.
queria conseguir escrever uma história bem bonita.
queria inventar uma personagem agora. vou tentar:
era uma vez. a blusa estava pendurada no cabide. eu passei pelado do lado de fora daquela porta. tinha o cheiro dele no meu corpo e na blusa, mas nunca nos encontramos. um dia a blusa foi emprestada para um amigo dele que eu nunca conheceria. depois esse amigo devolveu a blusa. passaram-se anos. eu vim morar em buenos aires e quando me perguntam "por quê" é sempre terrível, porque não sei dizer. tenho uma cozinha cheia de baratas e hoje trabalhei como um adulto. mas aí eu comecei a escrever uma história qualquer e apareci como personagem. era o que faltava pra que o feitiço fosse quebrado: deixei a vida para entrar na história. "claro", pensei, "é óbvio que eu não tenho corpo", só tenho linhas e caracteres. e uma verossimilhança falha, meu verdadeiro talento. e era noite e eu deixei de existir exatamente no próximo ponto final, que vem: agora.
pegava outro gato e guardava
numa caixa grande feita pra isso, posta no mais fundo da construção
os bichos começavam a comer-se uns aos outros
eu agendo a viagem, guardo os gatos e me vou
*
os escorpiões, se passam fome, têm filhos pra comê-los
já uma barata chega a tal êxtase de sobrevivência que come-se a si mesma
faz assim:
come terra madeira repolho o que tiver
em não tendo come os filhos
em não tendo come as asas
(a minha cozinha está cheia de baratas
e eu acho que elas têm mais direito de estar ali do que eu)
*
li hoje uma entrevista que me fez pensar
se eu não deveria assumir o papel de escritor como uma função social de fato e de direito
e buscar deliberadamente uma renovação da tradição ou algo assim
o segundo suspiro desse pensamento me trouxe uma velha preguiça
olhei minhas asas: não tenho vocação pra ser barata
(hoje, por exemplo, trabalhei como um adulto)
*
ou: tenho vocação, mas depende da barata.
queria conseguir escrever uma história bem bonita.
queria inventar uma personagem agora. vou tentar:
era uma vez. a blusa estava pendurada no cabide. eu passei pelado do lado de fora daquela porta. tinha o cheiro dele no meu corpo e na blusa, mas nunca nos encontramos. um dia a blusa foi emprestada para um amigo dele que eu nunca conheceria. depois esse amigo devolveu a blusa. passaram-se anos. eu vim morar em buenos aires e quando me perguntam "por quê" é sempre terrível, porque não sei dizer. tenho uma cozinha cheia de baratas e hoje trabalhei como um adulto. mas aí eu comecei a escrever uma história qualquer e apareci como personagem. era o que faltava pra que o feitiço fosse quebrado: deixei a vida para entrar na história. "claro", pensei, "é óbvio que eu não tenho corpo", só tenho linhas e caracteres. e uma verossimilhança falha, meu verdadeiro talento. e era noite e eu deixei de existir exatamente no próximo ponto final, que vem: agora.
16.9.11
ontem estudamos o signo de escorpião
algumas espécies de águia, quando chegam aos quarenta anos de idade, têm a opção de viver por mais trinta anos
mais ou menos
caso se escondam numa caverna e aí
arranquem à força o próprio
bico, as garras e as penas,
esfregando-se nas pedras e
deixadas em pelo (carne e sangue)
a natureza faz crescer outra vez
torna novo o indispensável
e é aí que a águia começa a viver
de novo outra vida
*
também se diz que algumas
águias são os únicos pássaros que se matam
pois ficam muitos anos com o mesmo companheiro
de amor / e uma vez morto seu
amor elas voam até o mais alto.
lá chegando, em volta o céu, recolhem
as asas ao peito
e caem
em queda
na sua escolha
seu sofrimento
mais ou menos
caso se escondam numa caverna e aí
arranquem à força o próprio
bico, as garras e as penas,
esfregando-se nas pedras e
deixadas em pelo (carne e sangue)
a natureza faz crescer outra vez
torna novo o indispensável
e é aí que a águia começa a viver
de novo outra vida
*
também se diz que algumas
águias são os únicos pássaros que se matam
pois ficam muitos anos com o mesmo companheiro
de amor / e uma vez morto seu
amor elas voam até o mais alto.
lá chegando, em volta o céu, recolhem
as asas ao peito
e caem
em queda
na sua escolha
seu sofrimento
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história natural,
vênus em escorpião
15.9.11
12.9.11
cachorro
a besta fera dos afetos
e inocente se olha perto: olhos aquosos de quem não tem mal. mas no cano não treme a decisão. a maldade fica nos nossos intestinos, nutre o resto do corpo, chega aos dedos do gatilho e ao cachorro. abana o rabo. tiro. o homem sai do bosque, entra no carro, o motorista fecha a porta, abre. guarda o revólver no gabinete e olha as fotos do rotweiller. sete anos e uma mordida. aos animais às vezes escapa a melhor maneira de demonstrar carinho. os outros cães uivam, saudade ignorante nos fundos da mansão. aquele, o preferido, foi deixado insepulto, feito os bichos sem / "afeto", repito. e guardo as fotos, magoado.
e inocente se olha perto: olhos aquosos de quem não tem mal. mas no cano não treme a decisão. a maldade fica nos nossos intestinos, nutre o resto do corpo, chega aos dedos do gatilho e ao cachorro. abana o rabo. tiro. o homem sai do bosque, entra no carro, o motorista fecha a porta, abre. guarda o revólver no gabinete e olha as fotos do rotweiller. sete anos e uma mordida. aos animais às vezes escapa a melhor maneira de demonstrar carinho. os outros cães uivam, saudade ignorante nos fundos da mansão. aquele, o preferido, foi deixado insepulto, feito os bichos sem / "afeto", repito. e guardo as fotos, magoado.
o corpo entrega um tempo
passasse a cidade inteira entre as minhas pernas. percebo que não tenho pernas para tanto.
fabrico outro corpo. me agiganto, seriado japonês. o obelisco da cidade, imaginem. fico cada vez maior.
se meu desejo seguisse, seria um monstro o país posto em perigo. aviões da OTAN vêm socorrer a população. nem te conto o que faria com os aviões da OTAN.
*
o desejo não tem idade, corpo ou método. Transita na calçada desmemoriado. Porque o destino é bom, e eu sou o destino, e quero ver o bicho pegar, entro com o desejo no primeiro cinema pornô que aparece.
Lá o desejo são todos os outros. Homens sem rosto sem borracha eles se roçam é quase aleatório. O desejo, por ser aleatório, escorre e pega no carpete.
*
Agora o desejo é um barco. Que passa o rio da Prata / e não atraca. Inabitado entra no oceano. Os piratas, em terra, destroem a civilização de séculos. Pouco a pouco despem-se e voltam à orgia selvagem / de milênios.
*
(perdi o contorno. quero escrever o personagem, mas meu corpo não deixa.)
*
Era uma vez: o desejo. E tudo o que vemos em volta veio depois. Mas as folhas caem das árvores, o desejo é móvel, vai dos galhos ao chão que puxa e quer adubo. As árvores morrem e caem e isso é desejo do mole, do líquido que empapa a terra e era a árvore. O desejo chama todas as direções.
E também é um pássaro leve, esquivo na floresta.
*
passasse a cidade inteira entre as minhas pernas. percebo que não tenho pernas para tanto.
fabrico outro corpo. me agiganto, seriado japonês. o obelisco da cidade, imaginem. fico cada vez maior.
se meu desejo seguisse, seria um monstro o país posto em perigo. aviões da OTAN vêm socorrer a população. nem te conto o que faria com os aviões da OTAN.
*
o desejo não tem idade, corpo ou método. Transita na calçada desmemoriado. Porque o destino é bom, e eu sou o destino, e quero ver o bicho pegar, entro com o desejo no primeiro cinema pornô que aparece.
Lá o desejo são todos os outros. Homens sem rosto sem borracha eles se roçam é quase aleatório. O desejo, por ser aleatório, escorre e pega no carpete.
*
Agora o desejo é um barco. Que passa o rio da Prata / e não atraca. Inabitado entra no oceano. Os piratas, em terra, destroem a civilização de séculos. Pouco a pouco despem-se e voltam à orgia selvagem / de milênios.
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(perdi o contorno. quero escrever o personagem, mas meu corpo não deixa.)
*
Era uma vez: o desejo. E tudo o que vemos em volta veio depois. Mas as folhas caem das árvores, o desejo é móvel, vai dos galhos ao chão que puxa e quer adubo. As árvores morrem e caem e isso é desejo do mole, do líquido que empapa a terra e era a árvore. O desejo chama todas as direções.
E também é um pássaro leve, esquivo na floresta.
*
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cuidado com a personagem,
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trabalhos manuais
10.9.11
9.9.11
visceral
diz que o intestino delgado tem neurônios. Os chineses o chamam, desde muito antes dos neurônios, "o segundo cérebro".
rodeios
das imagens que não me saem da cabeça, e que eu não sei o que fazer com elas além de pensar em escrevê-las, porque me parece urgente que todo mundo saiba a respeito e aja de alguma forma (nem que seja escrevendo outra coisa, nem que seja preocupando-se com isso também)
eu era criança, talvez uns seis anos? e vi no jornal da televisão que num rodeio no interior de são paulo um homem branco e barrigudo de chapéu levou até o meio da arena um menino negro, magro, de uns oito anos. o menino estava nu e, posto de pé no chão, envergonhado cobria as vergonhas com as mãos, a vergonha não podia ser coberta, e chorava. e teve que ficar parado e exposto por intermináveis segundos, até que pôde sair correndo, a plateia se ovacionava a si mesma.
eu era criança, talvez uns seis anos? e vi no jornal da televisão que num rodeio no interior de são paulo um homem branco e barrigudo de chapéu levou até o meio da arena um menino negro, magro, de uns oito anos. o menino estava nu e, posto de pé no chão, envergonhado cobria as vergonhas com as mãos, a vergonha não podia ser coberta, e chorava. e teve que ficar parado e exposto por intermináveis segundos, até que pôde sair correndo, a plateia se ovacionava a si mesma.
a mulher ausente
a varanda chove. nenhum dos garrafões está presente. os garrafões são meus filhos. eles eram cheios de leite, alguns de vinho. ontem à noite eu acordei assustada com a epidemia de dengue que se aproxima. há a hemorrágica. tenho muito medo de perder sangue pra dentro. pra fora, tenho igualmente muito medo, mas quando penso me dá também uma curiosidade de cimentos.
os tijolos estão todos dentro da parede.
(mas há tijolos aí.)
(será que eu tenho tijolos por dentro, também?)
caí da varanda. meu deus! (penso), a chuva era eu! mas que nada, ainda estou aqui. olho pra baixo e vejo o garrafão espatifado, leite em toda parte e o meu corpo ali no meio.
eu sou um exercício de construção de personagem. sem tijolos.
queria muito que a minha voz se despegasse de mim e eu pudesse estar quieta um tempo, sossegada. essa biografia que não larga! parece um cachorrinho agarrado à minha perna.
não tive filhos. esse bebê chorando no balcão não é meu. por que não para de chorar? derramo água em cima dele. ele se afoga um pouco, tosse e volta a chorar. matar o bebê é como matar a um rato, me dá nojo e aflição, tem ossos, se fosse só uma barata seria bem mais fácil, ou uma planta, deixa menos sujeira, se parece menos comigo. será que alguém quer esse bebê? vou pô-lo no lixo.
hoje passa o lixeiro. o garrafão é de vidro, o lixeiro leva o reciclável e salvamos o planeta. se o lixeiro achar que esse garrafão também é um bebê, talvez o leve para um açougue o dê de comer aos porcos. a reciclagem é muito importante. estou triste, mas consciente.
...
passei um café. não aguento mais ser escrita. é que, se eu pudesse, me contentaria com ser um garrafão de vidro. mas é irremediável, meu deus! quando a gente começa a ser escrita, não há volta. depois vem o fogo e queima. depois vem o esquecimento e esquece. aparece um vírus que te distorce e te apaga. mas até lá. até lá, meu deus! eu existo.
:-/
continuo tomando café. tenho muita coisa pra fazer. tenho que trabalhar. e ouço pingos de chuva. ainda bem que não ouço mais o bebê. vou pra cozinha pegar uma bolachinha e vejo uma baratinha. dou um pisãozinho na baratinha e mato elazinha. meu deus por que não me fizeste esta barata?!
(como é que uma personagem diz: "deus"?)
eu queria agradecer muito a você, que está aí, e a este quarto vazio, que está aqui. gostaria de agradecer também à galinha que morreu e cujo peito eu almocei hoje. me dá imensa alegria saber que o universo existe para me manter viva enquanto eu não estiver morta. gostaria de dizer igualmente que não aguento mais ter filhos, então façam minha barriga parar de crescer! pronto, de novo: são quíntuplos! tem até piada, parece anedota. haja saco preto pra jogar tanta coisa fora.
e o que mais queria eu dizer, mesmo...? ah, sim: não esqueçam de regar as plantas. vou ficar fora um mês. tudo o que é vivo precisa de cuidado, com as plantas não é diferente.
ela sai de casa e vai andando na rua. passa na frente de uma igreja. se ajoelha no banco do meio do átrio. é átrio que se chama? eu nunca fui católica. e sou bem ignorante, minto. aí ela se ajoelha nesse banco e seus olhos se enchem de lágrimas porque ela se imagina personagem de um filme italiano. eu sou a anna magnani. eu queria ser em preto e branco. eu queria ter um lenço na cabeça e ser uma prostituta gorda. aperta as mãos, imagina um rosário pendendo e comprimindo com dureza as dobras das palmas. e grita em pensamento, soltando um suspiro sôfrego e desesperançado:
m e u d e u s ! ! !
os tijolos estão todos dentro da parede.
(mas há tijolos aí.)
(será que eu tenho tijolos por dentro, também?)
caí da varanda. meu deus! (penso), a chuva era eu! mas que nada, ainda estou aqui. olho pra baixo e vejo o garrafão espatifado, leite em toda parte e o meu corpo ali no meio.
eu sou um exercício de construção de personagem. sem tijolos.
queria muito que a minha voz se despegasse de mim e eu pudesse estar quieta um tempo, sossegada. essa biografia que não larga! parece um cachorrinho agarrado à minha perna.
não tive filhos. esse bebê chorando no balcão não é meu. por que não para de chorar? derramo água em cima dele. ele se afoga um pouco, tosse e volta a chorar. matar o bebê é como matar a um rato, me dá nojo e aflição, tem ossos, se fosse só uma barata seria bem mais fácil, ou uma planta, deixa menos sujeira, se parece menos comigo. será que alguém quer esse bebê? vou pô-lo no lixo.
hoje passa o lixeiro. o garrafão é de vidro, o lixeiro leva o reciclável e salvamos o planeta. se o lixeiro achar que esse garrafão também é um bebê, talvez o leve para um açougue o dê de comer aos porcos. a reciclagem é muito importante. estou triste, mas consciente.
...
passei um café. não aguento mais ser escrita. é que, se eu pudesse, me contentaria com ser um garrafão de vidro. mas é irremediável, meu deus! quando a gente começa a ser escrita, não há volta. depois vem o fogo e queima. depois vem o esquecimento e esquece. aparece um vírus que te distorce e te apaga. mas até lá. até lá, meu deus! eu existo.
:-/
continuo tomando café. tenho muita coisa pra fazer. tenho que trabalhar. e ouço pingos de chuva. ainda bem que não ouço mais o bebê. vou pra cozinha pegar uma bolachinha e vejo uma baratinha. dou um pisãozinho na baratinha e mato elazinha. meu deus por que não me fizeste esta barata?!
(como é que uma personagem diz: "deus"?)
eu queria agradecer muito a você, que está aí, e a este quarto vazio, que está aqui. gostaria de agradecer também à galinha que morreu e cujo peito eu almocei hoje. me dá imensa alegria saber que o universo existe para me manter viva enquanto eu não estiver morta. gostaria de dizer igualmente que não aguento mais ter filhos, então façam minha barriga parar de crescer! pronto, de novo: são quíntuplos! tem até piada, parece anedota. haja saco preto pra jogar tanta coisa fora.
e o que mais queria eu dizer, mesmo...? ah, sim: não esqueçam de regar as plantas. vou ficar fora um mês. tudo o que é vivo precisa de cuidado, com as plantas não é diferente.
ela sai de casa e vai andando na rua. passa na frente de uma igreja. se ajoelha no banco do meio do átrio. é átrio que se chama? eu nunca fui católica. e sou bem ignorante, minto. aí ela se ajoelha nesse banco e seus olhos se enchem de lágrimas porque ela se imagina personagem de um filme italiano. eu sou a anna magnani. eu queria ser em preto e branco. eu queria ter um lenço na cabeça e ser uma prostituta gorda. aperta as mãos, imagina um rosário pendendo e comprimindo com dureza as dobras das palmas. e grita em pensamento, soltando um suspiro sôfrego e desesperançado:
m e u d e u s ! ! !
8.9.11
(agora, que estou saindo de novo daquele lugar, se é que estou saindo, mas tudo indica que sim,
agora começo a me ocupar das jornadas, me entretenho com elas, acho-as importantes, quero destruí-las
menino-monstro, joão-bobo
*
as plataformas de extração de petróleo
*
fico achando que fui mal acostumado no leite materno
como se o afeto fosse minha grande culpa
e a placenta sempre fresca e frágil persistisse
como se o berço fosse pressa
e a criança o esperasse
*
)
agora começo a me ocupar das jornadas, me entretenho com elas, acho-as importantes, quero destruí-las
menino-monstro, joão-bobo
*
as plataformas de extração de petróleo
*
fico achando que fui mal acostumado no leite materno
como se o afeto fosse minha grande culpa
e a placenta sempre fresca e frágil persistisse
como se o berço fosse pressa
e a criança o esperasse
*
)
Marcadores:
grande é a viagem,
que farei com este blog
7.9.11
vida selvagem
um mundo de baratas no encanamento da cozinha
nunca achei baratas lindas
agora acho
são pequenas e parecem limpas
eu crio ternura por pensar que tudo é filhote
aí mato
diz-se de gente como eu que
tem sangue de barata. abro a torneira e não vejo sangue na pia.
é, evidente, um modo de dizer.
cada uma dessas pequenas coisas é
um grande aprendizado, as baratas, eu mesmo
esmagado entre um bicho e outro
depois que afoguei deus na pia do banheiro me tornei também uma barata
deus descia pelo ralo, vestido em branco,
viscoso pegava nas bordas
precisamos inventar urgente uma metáfora que diga
"esse aí tem sangue de deus"
nunca achei baratas lindas
agora acho
são pequenas e parecem limpas
eu crio ternura por pensar que tudo é filhote
aí mato
diz-se de gente como eu que
tem sangue de barata. abro a torneira e não vejo sangue na pia.
é, evidente, um modo de dizer.
cada uma dessas pequenas coisas é
um grande aprendizado, as baratas, eu mesmo
esmagado entre um bicho e outro
depois que afoguei deus na pia do banheiro me tornei também uma barata
deus descia pelo ralo, vestido em branco,
viscoso pegava nas bordas
precisamos inventar urgente uma metáfora que diga
"esse aí tem sangue de deus"
o céu azul bem
claro da vida
fiquei surpreso e afobado
faz uns anos quando
soube que o olhar da gente não é
fixo
repare:
você faz uma imagem
mental de fixidez mas o
teu olho move-se:
é líquido
uma noite acordei
cego e fui ao tato
para a sala minha mãe fazia
as unhas e via filme
madrugada
(eu queria de
novo estar nas madrugadas
cego, com minha mãe)
ela passou uma substância
mágica nos meus olhos e
os quilos de remela se
dissolveram pude
ver outra vez
a luz amarelada nos batentes
marrons e nas paredes claras
uma amiga minha perdeu a filha
num acidente de trânsito
eu desde
criança tenho mania
nada saudável de chorar a
morte de todos
adiantado
quando a morte já foi, choro-a
no futuro do meu dia, pensando
no que será dum mundo em que todos
morrem
hoje, sete de setembro, é feriado
no território que chamam de
brasil
eu mais ao sul num território de
outros nomes abro os olhos para
um dia de céu claro e luz
sol forte
a substância mágica
que mamãe passou nos
olhos teve o poder de funcionar
através dos anos, das noites, das horas,
ao menos até agora
nunca mais fiquei cego
só precisava saber a fórmula da poção
o dia tem quilos de remela, se fecha
e na manhã eu sinto falta da madrugada
que se abria com cheiro de esmalte,
barulho de televisão
claro da vida
fiquei surpreso e afobado
faz uns anos quando
soube que o olhar da gente não é
fixo
repare:
você faz uma imagem
mental de fixidez mas o
teu olho move-se:
é líquido
uma noite acordei
cego e fui ao tato
para a sala minha mãe fazia
as unhas e via filme
madrugada
(eu queria de
novo estar nas madrugadas
cego, com minha mãe)
ela passou uma substância
mágica nos meus olhos e
os quilos de remela se
dissolveram pude
ver outra vez
a luz amarelada nos batentes
marrons e nas paredes claras
uma amiga minha perdeu a filha
num acidente de trânsito
eu desde
criança tenho mania
nada saudável de chorar a
morte de todos
adiantado
quando a morte já foi, choro-a
no futuro do meu dia, pensando
no que será dum mundo em que todos
morrem
hoje, sete de setembro, é feriado
no território que chamam de
brasil
eu mais ao sul num território de
outros nomes abro os olhos para
um dia de céu claro e luz
sol forte
a substância mágica
que mamãe passou nos
olhos teve o poder de funcionar
através dos anos, das noites, das horas,
ao menos até agora
nunca mais fiquei cego
só precisava saber a fórmula da poção
o dia tem quilos de remela, se fecha
e na manhã eu sinto falta da madrugada
que se abria com cheiro de esmalte,
barulho de televisão
6.9.11
deserto
os exploradores encontraram pra
azar nosso um enorme
deserto sob as terras que pisamos
"não se trata de um
bioma" diz um deles
na coletiva desta terça
planícies de algo salgado
que não deixa nada viver
e intocado e inerte
sem possibilidade de precisar
há quanto tempo
no pré-sal da nossa
angústia os exploradores
angustiados por dinheiro quiseram
encontrar novos combustíveis fósseis
que são aqueles, como sabemos,
provenientes da morte proporcionam
uma explosão que nos movimenta
fecho o jornal sem vontade de saber o que aconteceu
outra notícia:
dei ao mundo um filho triste. ele brinca
na sala deprimido tijolos de plástico
em cores tombados, um destroço.
a mãe torce as mãos num avental. é uma mãe à moda antiga, por isso usa avental. cheia de amor e medo pelo filho amuado. "quer um chocolate? quer que mamãe faça um bolo?". o filho não quer nada. faz bico e tomba um tijolo sobre os outros. nunca será arquiteto.
de casa limpa, a mãe compra papel e varetas e faz linda pipa, a sua infância. ensina ao filho e o vê correndo com um sorriso no rosto. o aparato de papel subindo subindo até onde a vista alcança. mas o menino é um fracasso pras coisas que sobem. também não será aviador. não põe sorriso, corre por obrigação, a pipa cai se arrasta se espatifa no asfalto. "você não tem vontade!", a mãe ralha.
depois a criança cresce, porque assim costuma ser. podia ter morrido atropelada ou de doença rara, porque crianças são bem frágeis. mas esta cresce, tem todas as condições. a miséria aqui não se inclui nos programas de assistência do governo. a mãe continua envelhecendo e um dia morre, talvez não de velhice, mas atropelada. aí a criança que cresceu também envelhece e morre. aonde essa história vai parar?
outra notícia:
o governo, finda a pobreza e todos temos carros na garagem casa com piscina auditório para conferências científicas, o governo resolve então conter a crescente onda de suicídios no país com uma bolsa-antissuicídio. "é o governo que precisa chegar aos rincões da alma", anuncia a presidenta. entro no primeiro ônibus com destino ao país vizinho. aqui sofre-se de uma miséria ancestral. graças ao avanço tecnológico, todos temos wi-fi, mas nem sempre comida na geladeira. qual era a notícia? ah. o hino nacional foi substituído, em todas as escolas e manifestações cívicas oficiais, por uma gargalhada de aproximadamente sete minutos ininterruptos. rir oxigena o cérebro, dizem especialistas.
fim do noticiário.
azar nosso um enorme
deserto sob as terras que pisamos
"não se trata de um
bioma" diz um deles
na coletiva desta terça
planícies de algo salgado
que não deixa nada viver
e intocado e inerte
sem possibilidade de precisar
há quanto tempo
no pré-sal da nossa
angústia os exploradores
angustiados por dinheiro quiseram
encontrar novos combustíveis fósseis
que são aqueles, como sabemos,
provenientes da morte proporcionam
uma explosão que nos movimenta
fecho o jornal sem vontade de saber o que aconteceu
outra notícia:
dei ao mundo um filho triste. ele brinca
na sala deprimido tijolos de plástico
em cores tombados, um destroço.
a mãe torce as mãos num avental. é uma mãe à moda antiga, por isso usa avental. cheia de amor e medo pelo filho amuado. "quer um chocolate? quer que mamãe faça um bolo?". o filho não quer nada. faz bico e tomba um tijolo sobre os outros. nunca será arquiteto.
de casa limpa, a mãe compra papel e varetas e faz linda pipa, a sua infância. ensina ao filho e o vê correndo com um sorriso no rosto. o aparato de papel subindo subindo até onde a vista alcança. mas o menino é um fracasso pras coisas que sobem. também não será aviador. não põe sorriso, corre por obrigação, a pipa cai se arrasta se espatifa no asfalto. "você não tem vontade!", a mãe ralha.
depois a criança cresce, porque assim costuma ser. podia ter morrido atropelada ou de doença rara, porque crianças são bem frágeis. mas esta cresce, tem todas as condições. a miséria aqui não se inclui nos programas de assistência do governo. a mãe continua envelhecendo e um dia morre, talvez não de velhice, mas atropelada. aí a criança que cresceu também envelhece e morre. aonde essa história vai parar?
outra notícia:
o governo, finda a pobreza e todos temos carros na garagem casa com piscina auditório para conferências científicas, o governo resolve então conter a crescente onda de suicídios no país com uma bolsa-antissuicídio. "é o governo que precisa chegar aos rincões da alma", anuncia a presidenta. entro no primeiro ônibus com destino ao país vizinho. aqui sofre-se de uma miséria ancestral. graças ao avanço tecnológico, todos temos wi-fi, mas nem sempre comida na geladeira. qual era a notícia? ah. o hino nacional foi substituído, em todas as escolas e manifestações cívicas oficiais, por uma gargalhada de aproximadamente sete minutos ininterruptos. rir oxigena o cérebro, dizem especialistas.
fim do noticiário.
5.9.11
3.9.11
muito menos para afastar a melancolia
Pra que não restasse dúvida: aquele era um gato antes do gato. Orelhas compridos bigodes, a língua na pata. Mas não me dava o amor que eu queria. ("Eu", fique bem claro, sou qualquer pessoa que não eu). Dei-lhe tanto tempo quanto julguei necessário, possível, permitido. E, como o gato tinha mais eu que eu próprio, ele não veio a mim, nem eu consegui chegar a ele. Por isso resolvi matá-lo.
(esta é uma história cheia de conclusões lógicas. vejamos)
não imagine crueldades sanguinárias. eu não queria ouvir barulho, muito menos assustar os vizinhos. Eu só quero amor. Pus o gato no forno e abri o gás. Ele quis miar mais alto, mas logo adormeceu e sufocou. Percebi que aquele gato não deu certo como amigo, muito menos para afastar a melancolia.
Continuo esperando o gato realmente gato. Quero dizer: aquele que não fique um passo distante. No sentido de: um gato que, num pulo, me salve de mim. (Os animais são os únicos que amam com sinceridade. não pedem nada em troca). Quero dizer: esperando não é o termo certo. Estudo possibilidades, já penso em qual escolha, entre pássaros, peixes, cães e cágados. Examino os pet shops com a pressa de um faminto, mas a meticulosidade de um espião. Afinal, o meu amor pelo mascote também será incondicional. E sincero, e completo. Seremos nós a mãe um do outro. Aperto as notas de dinheiro no bolso, promessa de um futuro lindo. E tenho as mãos suadas, trêmulas, ávidas. Esperançosas.
(esta é uma história cheia de conclusões lógicas. vejamos)
não imagine crueldades sanguinárias. eu não queria ouvir barulho, muito menos assustar os vizinhos. Eu só quero amor. Pus o gato no forno e abri o gás. Ele quis miar mais alto, mas logo adormeceu e sufocou. Percebi que aquele gato não deu certo como amigo, muito menos para afastar a melancolia.
Continuo esperando o gato realmente gato. Quero dizer: aquele que não fique um passo distante. No sentido de: um gato que, num pulo, me salve de mim. (Os animais são os únicos que amam com sinceridade. não pedem nada em troca). Quero dizer: esperando não é o termo certo. Estudo possibilidades, já penso em qual escolha, entre pássaros, peixes, cães e cágados. Examino os pet shops com a pressa de um faminto, mas a meticulosidade de um espião. Afinal, o meu amor pelo mascote também será incondicional. E sincero, e completo. Seremos nós a mãe um do outro. Aperto as notas de dinheiro no bolso, promessa de um futuro lindo. E tenho as mãos suadas, trêmulas, ávidas. Esperançosas.
2.9.11
1.9.11
cardume
diria das vacas e pessoas
em correnteza no profundo
e à vista, um conjunto
em caminho que escoa
mas hoje a transparência
do ar emerge em lama
e o que vejo é denso
e vago entre líquido e
âncora
sinto apenas entre as
pernas línguas rápidas
lembranças não pescadas
que pequenas movimentam
uma visão de gente em
pressa e ausentes vacas,
piranhas esperam esfomeadas
em correnteza no profundo
e à vista, um conjunto
em caminho que escoa
mas hoje a transparência
do ar emerge em lama
e o que vejo é denso
e vago entre líquido e
âncora
sinto apenas entre as
pernas línguas rápidas
lembranças não pescadas
que pequenas movimentam
uma visão de gente em
pressa e ausentes vacas,
piranhas esperam esfomeadas
cima
raízes ossos visse
um ensaio no avesso da planície
e que fundos túneis do minúsculo. um pássaro cava
em voo descende some no azul
debaixo da gente
mostram alados tatus
que arrastam no alto o pouso
um passado
(raízes osso consiste
num zênite, olhar em riste
e abaixo a cabeça pende
à relva nuvem, ou céu poente)
um ensaio no avesso da planície
e que fundos túneis do minúsculo. um pássaro cava
em voo descende some no azul
debaixo da gente
mostram alados tatus
que arrastam no alto o pouso
um passado
(raízes osso consiste
num zênite, olhar em riste
e abaixo a cabeça pende
à relva nuvem, ou céu poente)
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