26.7.11

a cantora da nossa geração

i say no, no, no

there's nothing you can teach me

i ain't got the time

yes i've been black, but when i come back

i just need a friend

i said "i got no idea"

you'll know, know, know

but i won't go, go, go

25.7.11

poética, talvez, compreensão

eu falo todas as línguas pela metade
menos a minha, que falo uns três quartos

22.7.11

hoje não tem fernando pessoa

opa, perae, essa é boa:

as palavras malabares

não, perae, sem habilidade:

sabonete
ensaboada
luta livre no gel
banheira do gugu
sem a gostosa
sem plateia

às vezes tem plateia

as pessoas gritam "ôlé!"
o touro cômico puxa a toalha
vermelha e você tropeça

às vezes você abraça o touro
sentimentais juntos cantam
mr. sandman, bring me a dream
com chapéus de marinheiro
e a plateia aplaude

quase sempre
o júri é muito simpático
mas é incompetente

cricket de meninos
calder de berçário
não, perae, tou me afastando

"as palavras..."

heh que besta eu
de ressaca e os horários apertados
entretanto, mal rompe a manhã
e eu acordo afobado, me achando genial
achando que eu driblo o touro
apressado, pensando
"sim, claro, mas é claro!

as palavras: malabares"

21.7.11

colo


diz que é tradição milenar
o campesinato continental chinês
e prováveis preceitos taoístas
que os pais põem os filhos
miúdos nas costas do gado

também me contaram que
se estoura a manada de
búfalos enormes em uma planície
e se há um bebê no caminho
os búfalos desviam

se houver um adulto, não
mas um bebê, sim

e, ainda,
(quanta coisa que eu aprendo!)
que pros espíritas as árvores
são espíritos fetos
abrigados no útero de deus

,

ouço essas histórias e me sinto pequeno, distante
que se eu fosse touro acaso ou deidade
de tantas mais coisas seria capaz.

o amor que nos dotaram
é meio vaga, meio pedra

tento definir: o amor é um fruto
que protege a sua própria semente

(hoje o dia amanheceu meio apagado, muito claro,
eu de partida)

20.7.11

"entre nós e as palavras..."

inspirado pela neura da grande saúde, hoje
acordei pensando que certas palavras
têm um colesterol entre as sílabas,
acumulam essa gordura nociva e
infartam quando há muito estresse

ou quando as veias as artérias
sei lá que diabos tem dentro do nosso corpo
quando já estão demasiado velhas
as palavras estouram, dói-lhes o braço,
e caem no meio da praça

entre todas as desgraças, lembrei agora
que anteontem vi um infartado numa praça
estava com minha amiga e nós não percebemos
até chegarem os paramédicos

chego em casa e um outro amigo,
este tirou a vesícula, começa a sentir muita
dor. e diz que eu levo o desastre
por onde for.

pode ser verdade. muito nessa vida é malassombro
que ninguém percebe.

estes dias, parece que tudo o que digo sai meio infartado.

ontem, no entanto,
pensando sobre a língua ideogramática
me deu uma alegria de novos traçados

hoje também acordei achando
que há muitas outras palavras no mundo
que eu posso aprender a dizer

19.7.11

caderno de mandarim

思 ideia, pensamento profundo

思 = 田 sobre 心

sendo

田 cultivo

心 coração

18.7.11

a tristeza não é uma solução
a tristeza é um cardume que não aceita aquário
sólido e móvel no subterrâneo do aquático

a astróloga disse que eu tenho toda a dor do mundo
como dostoievski

a dor do mundo emerge sem aviso
os banhistas temem barbatanas
mas a dor do mundo continua emergindo
do litoral os pescadores atiram-lhe flechas
no ritual de matar o desconhecido
mas a dor do mundo cresce
ela é brilhante e multicor no mar
por fim se ergue
e permanece

os pescadores já velejam sob
as mães gritam "não se aproxime!"
e as crianças, obedientes, têm desejo

à noite, a dor do mundo apaga-se
um abajur servisse apenas seu avesso
escurecer junto ao escuro

nesse cenário, vejo também céu
flores marítimas
e um sal na pele que lambido diz
não há futuro
mas na saliva deixa
um caminho de futuro

os peixes se reproduzem e não migram
falta, a essa tristeza, um predador natural
que a infinita sabedoria de deus não concebeu
e a evolução das espécies não nos quis dar

10.7.11

eu sou poeta e não aprendi a amar

geraldinho / meu primeiro cachorrinho / o irmão tinha asma, então deram pra empregada da casa da frente / que era minha amiga, mas de cor escura, e roubou meu cachorro, que raiva dava / também tivemos dois pintinhos / trazidos pela outra empregada da nossa casa / (eu vivo no século dezoito) / o meu se chamava presunto; o do irmão, mortadela / demos pra vizinha, que tinha quintal maior / e criava galinhas / a galinha ruiva teve que cortar o bico / que comia os próprios ovos / eu fiquei horrorizado, mas respeitava / a autoridade da mãe / dona florinda, dona das galinhas, costurava para fora / e eu sempre fui um menino de ouro / depois tive dsts / era amigo de todas as velhas da rua / e fazia companhia / as que não podiam sair de casa, sentava no sofá, ouvia as histórias / dona clotilde muito tempo depois apareceu no jornal / ainda mais velha, com o filho bêbado / que trancados numa casa por semanas pela filha / dona neuza pintava os cabelos de muito preto e não saía de sua casa branca / parecia brava / do neto da dona florinda é que eu gostava /

o amor, esse galinheiro

de olhar para trás, pensamento em frente

agora falta fazer de partir / um ritual antigo como a chuva / que precipita e irriga a terra / generosidade, enchente, certeza / vira um rio que tudo arrasta / exceto seu próprio leito

e as águas por fim se juntem / carregadas de sais e dos mais menores microrganismos / memória matéria diluída no corpo / enorme oceano, te amo indefinido / habitado pleno / de vida e sal

deus se existir / futuro, se existir / prevejo o que já sei, que é de / tanto observar o que acontece / ao fim subimos evaporados / a deixar os sólidos, ser apenas vapor

mas agora eu ainda sou uma nascente. já nascida e que flui. na velocidade do tempo. porque a vida é líquida.



Já fiz exame da 4ª classe,
Já fiz a comunhão solene,
Para pensar na vida já tenho idade.
Mãe, quero ir ganhar dinheiro
Pai, quero ir para a cidade.

Mala nova na mão
Feita de madeira e papelão,
Dentro um fato de cotim
Que era do meu irmão Delfim,
Os sapatos de lona
E o diploma das minhas habilitações.
O terço e o santinho
E o meu livrinho de todas as orações.

E assim, saí daí,
De olhar para trás, pensamento em frente,
Em frente não havia mais nada não,
Em frente não havia mais nada não,
Do que o comboio, a cidade
Um navio e um avião.

Camurcina de riscado,
Um guarda-pó, cédula e uma certidão.
E pró senhor Coelho, que é merceeiro,
Vai uma carta de recomendação.

E assim, saí daí,
De olhar para trás, pensamento em frente,
Em frente não havia mais nada não,
Em frente não havia mais nada não,
Do que o comboio, a cidade
Um navio e um avião.

Umas ceroulas de flanela
Para do frio me aquecer
E uma venerinha de santa Teresinha,
Que está benzidinha
Para dos males me defender.

9.7.11

à noite eu não sei o que fazer

senhoras e senhores

as grandes loucuras do amor

[passam girafas elefantes sobre bolas palhaços o nosso espetáculo vai começar]

cortinas:

1. ele namorou a isolina um tempão. até que a isolina cansou-se e foi para são paulo, onde amigou com um senhor e virou secretária da secretaria de agricultura. ele, que não foi avisado antes, chegou-se à minha avó, irmã da isolina, que à época não era a minha avó / e tinha um corpo!... "cadê a sua irmã?" "foi pra são paulo" "ah, e você, tem namorado?" minha avó trabalhava na fábrica e quase perdeu um dedo. aquele ali, ela diz, não casava. depois a gente ficava falada. então ela desconversou.

ok, aqui não teve amor. senhoras e senhores...

2. eles ficaram quarenta anos casados. ele era vinte mais velho que ela. depois morreu, eu tinha sete anos. "quatro anos seu avô namorou comigo. mulher que namora muito tempo e não casa fica falada". é, vó? "e ele era safado..." é? "ah, homem não aguenta, né". e dáááá risada

3. (estou tendo dificuldades com o amor. senhoras e senhores, agora um número perigoso, o arco de fogo e os leões) uns bons vinte anos da vida tomando eletrochoque. conversando com a andrea que eu me toquei e estou emputecido: homem, quando dá chilique e fica violento, ninguém interna no hospício. "eu fiz aquilo pra chamar a atenção do seu avô, porque ele não dava bola pra mim". cortou o pescoço e os dois pulsos. ela nunca teve jeito. ops acho que me queimei. espero não me arrepender de escrever essas coisas. ainda mais assim, na exposição. mas é tudo uma grande brincadeira. e o palhaço o que é?

4. não, não tem nenhum ladrão. nenhum assassino. não, nada de errado. "mas não é perigoso?". é, é perigoso. mas eu minto. e se alguém vier roubar? imagina se me roubam?! "se levam você embora, o que eu faço?". eu subo a escada e digo "ah eu devo valer um montão de dinheiro". e ouço o sussuro: "pra mim você vale".

[o nosso espetáculo tem drama, riso, descaso, prozac, emoção!]

5. "como é bonito o seu neto!". obrigado. pano rápido.

prestidigitação

do lado de cá desta desgraça
um frio que atrapalha
tento a linguagem taquigráfica?
a sala está cercada por avós
eu nem sei por onde começar
desperdício tanto dedo no teclado
a carne é quente, o dia é gelado
já pode parar com a rima?
pode. tá.

uma ideia é contar as coisas do jeito que elas começaram a acontecer. assim: que depois de casar ela nunca mais dançou. porque o marido não gostava. mas dos 14 até os 18 seu preferido era o bolero. a ideia é registrar essas coisas tipo um álbum de família. "amanhã", disseram, "você leva as fotos". das crianças tomando banho, daquele tempo muito bom. em que eu não dançava e meu pai ainda era vivo. fazer o anti álbum de família. perguntam o que eu escrevo. eu respondo e todo mundo fala "ah..." sem entender. também não sei porque faço isso. "chove, e não sei o que isso significa". #significa.

agora as senhoras conversam na sala. "seu neto é lindo!". obrigado.

vou embora e deixo todo mundo com saudades.

manual do esgotamento

mestre drummond

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

yo soy un hombre sincero

dragão de comodo

esse roliço escamado
geralmente eu procuro enciclopédia
fico sabendo os hábitos
"muito apreciados pela carne"
a lucia diz que gosta de ver foto de bicho, também
"pra ficar imaginando como eles devem ser gostosos!"
e lambe os beiços



8.7.11

o monstro da justiça

a vontade era de esvaziar as coisas

na casa inteira, os frascos de água, e as garrafas, bebida eu bebo, joga fora

vasinhos de planta, check. caixa da privada, check.

encontra a vó pelo caminho. esvazia a vó também. e o pó de café, tira os livros da estante. o chão tá cheio? esvazia o chão.

varre varre varre. tá tudo lá fora? calma, ainda não. tubos de cola. pronto. caixas de sapato. pronto. esvaziar a caixa da sua própria condição de caixa? pronto. rasga tudo, queima, faz o diabo. mas esvazia.

luminárias foi? reboque da parede foi? ladrilho, lembrança, freezer, compromisso foi? pronto, a casa tá vazia. tá tudo lá fora.

agora vai pra fora e começa a esvaziar lá fora.

as crianças da rua correm pra brincar com a vassoura. depois correm de medo da vassoura. eu sou implacável. minha tia diz "tá trabalhando que nem preta, hein", esvazio ela também.

oi, eu gostaria de falar com o prefeito. só um momento, por favor. ah, o prefeito está ocupado no momento, o sr. gostaria de deixar recado? mostro a vassoura pra ela. olá, sr. prefeito, meu nome é VUSH esvaziei o prefeito.

os japoneses correm pra se salvar, entram nos prédios de tóquio. eu esvazio os prédios, depois esvazio os japoneses. japão, check.

daqui de cima, desta colina, o sol é um espetáculo se pondo. ainda bem que trouxe meu cachecol, porque anda esfriando. esvazio a vassoura pra ver o pôr do sol. é tão bonito! e fico feliz quando vejo você subindo até aqui, pra se sentar ao meu lado e ver comigo.

7.7.11

midas

a história do rei
que tudo que toca
transforma em seu revés

de um golpe na cabeça
torna-se estrela
borboletas

vim

amarra as trouxinhas, tudo num pano ~ pasta de dente que refresca e dá gosto, bibelozinhos da saudade, um pedaço de pão. seria uma senhorinha fugitiva, velha nas ideias, decidida. mas tem um metro e oitenta e cinco e nunca passou um dia de sua vida sem banho quente. os prazeres que valem são os menores. esta história é inverossímil. ele fecha a porta do apartamento, deixa a chave do lado de fora, veste uma roupa qualquer contra o frio. anda, anda, anda. eu sou bastante limitado das ideias, então penso assim: está traindo sua classe. o moço anda, anda, anda. porque são paulo não tem fim, não preciso me preocupar por enquanto. em explicar o que ele faz. é loiro, trabalhava de terno e ninguém na família achava particularmente bonito, porque todos os homens usam terno. ele às vezes se lembra com carinho e é da única coisa que tem dó: não se ver mais de terno, na frente do espelho, com aqueles calcanhares macios no sapato cheiroso. é bom se ver bonito. passa a mão sobre a barba a dias. pensa na mãe. a vida inteira que poderia ter sido. e que foi. tchau, minha vida. quando vê camburão, se esconde, sabe que o procuram. sequestrado, talvez. por sua causa, quatro homens negros morreram esta semana, suspeitos do sequestro. ele coça a barba, a viatura foi embora, retoma a estrada. outra vez eu queria escrever aqui sobre lembranças emocionais, mas acabo misturando tudo e não escrevo nem sobre uma coisa, nem sobre outra. outra coisa que me incomoda são esses impasses constantes, que explicito aqui no blogue mas que, sei lá, não me parecem muito produtivos. do ponto de vista da arte. porque eu quero fazer arte, né, claro, nem que seja só de brincadeira. escrevo pra mudar o mundo. vou mudar o quê? o moço anda, anda, anda. seus calcanhares já estão duros e ressecados, também o seu cabelo. e eu não alcanço a história dele. vou mudar pra onde?

queridas lembranças emocionais,

parei de chegar. a roda da fortuna. o mundo girando e a gente parado? não, não senhor. o dia explode em estradas. e o coração não toma banho quente nem escova os dentes. o coração é seu próprio calor. eu estou sentado, mas logo vou. ainda ter muita história pra contar...

6.7.11

afeto a besta fera

animal nenhum que
eu saiba deixa de reivindicar
a paternidade, vi agora a foto de um escorpião
mãe com seus filhos, expliquei pro francês
escorpión es el animal que mata con el culo
os filhotes todos nas costas
protegidos pelo rabo perigoso
vejamos


essa pressa de amor que
tem a gente pode então ser um resquício da proteção, que é inerente
onde foi que eu li que o que nos diferencia dos outros animais é a falta de umas células no cérebro que não nos deixa ter instinto?

inibe o instinto

e aí a gente tem que aprender tudo de novo, sempre, desde o começo
o cavalo nasce trotando
o urso nasce ursando
o escorpião nasce amando

e eu nasço / nascendo
só sei nascer

- também, de se considerar, que é particularmente moderna e burguesa a concepção do humano como débil. e cristã, também. não pode subestimar o cristão, essa peste -

quando eu amo, percebo, quero abrigar
e nunca fui mãe

(aprendizado emocional pelas palavras)

a gente estava sentado na rua numa noite e vimos uma ARANHA enorme próxima se esgueirando na parede. eu anos depois sofri um ataque homofóbico envolvendo aranhas terríveis, um pequeno trauma, no conceito psicanalítico, se é que a psicanálise admite dimensionar um trauma. pois bem. mas já tinha medo de aranhas. o alexandre, que era o menino mais bonito e malandro da rua, e muito meu amigo, matou o bicho

do corpo da aranha, espantados, vimos surgir uma nuvem rasteira
de filhos

e todos correram pra suas casas
buscar o inseticida.

ontem eu li uma frase
"somos todos ateus com os deuses dos outros"

e anteontem uma amiga postou o seguinte texto no facebook

O grande escritor grego Nikos Kazantzakis conta que, quando criança, reparou num casulo preso a uma árvore, onde uma borboleta preparava-se para nascer. Esperou algum tempo, mas - como estava demorando muito - resolveu esquentar o casulo com seu hálito; a borboleta terminou saindo, mas suas asas ainda estavam presas, e morreu pouco tempo depois. "Era necessária uma paciente maturação feita pelo sol, e eu não soube esperar", diz Kazantzakis. "Aquele pequeno cadáver é, até hoje, um dos maiores pesos que tenho na consciência. Mas foi ele que me fez entender o que é um verdadeiro pecado mortal: forçar as grandes leis do universo. É preciso paciência, aguardar a hora certa, e seguir com confiança o ritmo que Deus escolheu para nossa vida".

("bicho da terra tão pequeno"...)

5.7.11

lembra-me um céu aberto, outro fechado

por não esperarmos milagres

eram novos dedos que eu conhecia. as pontas quadradas e unhas lindas. primeira coisa que vejo nos homens, os dedos das mãos. já me apaixonei por um cara porque ele tinha as unhas sujas. o astrólogo me diz que vênus em escorpião tem essa imundície. também um sufoco constante de estar aquém da coisa. qualquer estupidez servirá de futuro. mas apenas poucas / eu vou olhar pra trás e dizer "ah", sem arrependimento. só quero as estupidezes futuras. andam usando agente laranja sobre a floresta amazônica. ninguém aprende com os erros do passado. mas como é que eu fui transformar as lembranças emocionais num desastre ambiental de proporções amazônicas? elegia 2011, inferno verde, interior paulista, trajetória. apresento a você a boca de lobo do afeto. sem responsabilidade social e com a maior biodiversidade do planeta. ameaçada pela cobiça, pelos governos instituídos, mas cheia de rios / que desaguam, que desaguam, chuáááááá...

que não ouso compreender

hoje morreu
há muito tempo
maria pia de saboia
rainha consorte de
já nem me lembro
sofreu tormentos
o regicídio do filho, do neto
proferiu frase
"quem quer rainhas, paga-as"
sinais de demência mental
de desgosto, exílio italiano
quando eu morrer que me enterrem
na direção do estrangeiro
a quem dei meus anos

***

drummond que me ensinou quase tudo
sobre a vida, não a poesia
a poesia é um percalço, uma pedra sem caminho
a poesia que se dane
nenhuma poesia existe
acaso os poetas...?
os autores são meus muito companheiros
agradeço pela graça inalcançável

***

***

O amor bate na aorta

Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

***

Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas, vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor, no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

***

Mundo grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.

***

Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

4.7.11

la conservación de los muertos en Chinchorro



nem aos blogues confesso

tenho um caderno com capa de tigre / é a cara dum tigre que olha / gostoso assim imaginar o peso do bicho grande / e listrado

os tigres devem ser bastante fedidos

nesse caderno eu escrevi um monte. comprei na primavera e o levei pra conhecer um país inteiro. quando a gente estava em tacuarembó, deixei a carolina na festa caipira e voltei sozinho pro hotel. em alguns lugares fomos meio que mal recebidos. no geral, não tenho do que reclamar.

que mais?

comecei a escrever agora porque estou com um gosto de café velho na boca. era uma tentativa de escrever esse gosto. mas aí vi o tigre. e fiquei triste com a falta de páginas livres. agora tenho um caderno muito mais elegante, mas não me dou com a elegância. todos dizem "ai que lindo". comprei também um moleskine. meu avô dizia "vai peidar na água pra fazer bolhinha" quando alguém lhe enchia a paciência. ouviu, futuro? ouviu, moleskine?

tenho também desejos inconfessáveis. aliás, esse é um impasse que confesso: até quando sustentaremos essas confissões? tenho vontade de picotar todos os livros da ana cristina cesar. precisamos de um projeto, de um projétil. no livro que escrevi, um conto é obliquamente inspirado em ana c., tem um monte de coisas deste blogue. mas não sei se lá eu consegui resolver alguma coisa.

acho que a escrita não é pra resolver nada. mas não sei.

quero preferir o brecht. mas não sei.

preso a minha classe e a algumas roupas... . acho que a escrita, assim como a leitura, assim como a vida, e é tudo vida, eu gosto de carne, acho que tudo isso é questão de encontro, de acaso e sair um dia e ver o sol. você olha pra cima e fala "gente!" e fala "o sol!". pronto, cê teve encontro. e está tão vivx!

quem é vivo, meu bem, sempre aparece.

acho que agora eu aprendi de vez que, se tem algo em que acredito muito, é no afeto. e no que confio: o acaso. mamar na vaca é que eu não quero? quero também. e o fim do mercado editorial e a paz no mundo, todas as girls. quero também sentar no arpoador e ver o mar tomando cerveja, inconfessável.

e quero outro tigre. este texto não interessa a ninguém. não peço desculpas porque, se alguém ler, também não era do meu interesse que alguém lesse, então estamos quites. agora que somos amigos, me diga: como tem andado? e você, no que acredita?

3.7.11

Declaração de amor efêmero

o grande sonho da vida era ouvir aquela pergunta, "se alguém tem alguma coisa contra esta união, que fale agora ou" era mais uma imposição, ou um pedido. Ela não falaria absolutamente nada, ficaria quieta. Mas o que nos move é mais a possibilidade do que o ato. É?

No caso dela, sim, que era tímida e ressentida. Se ouvisse isso no seu próprio casamento, morreria de medo que alguma vagabunda se levantasse pela igreja e começasse a dizer impropérios, de bucho cheio com o dedo a acusar seu marido, agora ex-futuro, como se livrar de uma humilhação dessas? Morreria de medo que outra gritasse, mas mesmo se ninguém abrisse o bico, ê, ela própria, no seu íntimo, bem, também não gritaria. Mas pensaria assim: "eu POSSO. Posso, sim. Agora: eu posso."

Poder não diz muita coisa. A Bíblia diz: tudo posso naquele que me fortalece. Mas também diz: tudo posso, mas nem tudo me convém. No mais das vezes, "poder" é assim: você no ônibus uma estrada noturna e pedregosa, acorda e pensa "eu posso morrer agora". E isso é uma sombra de medo que o próximo farol espalha. Ou que se cai da ribanceira.

Eu tenho um amigo que quase morreu num acidente de ônibus. Ainda bem que não morreu. Foi pura sorte.

(A dele. A das pessoas que estavam naquele ônibus e que morreram. Eu não acredito em Deus, então digo assim: que foi puro azar.)

(Ou pode não ter sido. Vá saber como aquelas pessoas morreriam depois, ou pior: como viveriam, em que situação de miséria! Porque a desgraça não tem limites.)

(Eu digo essas coisas porque estou vivo. Pode parecer que tripudio. É verdade, tripudio um pouco, sim. Mas também penso que as coisas acontecem e que a gente não tem muito o que fazer, além do que a gente já faz. É certo que umas pessoas fazem corpo mole. Eu faço muito! Deus - se existir - é quem sabe. Mas agora estou nadando pra longe da praia. Onde é que eu estava?)

Onde é que ela estava?

Ah, sim: saindo do casamento. Desta vez eu não pude. Acho que é o primeiro casamento que eu vou. Assim, adulta e cheia de rancores, prestando atenção no reverendo. Com a bolsa cheia de balas de coco festivas, leves, tão doces, fazem cócegas nos dedos, ela pensa aquele açúcar e lhe vem um desamparo assim tão grande, quase formula: que eu nunca vou poder.

Tchau, querida, muito obrigada pela carona, viu. A festa estava linda, sim. A cerimônia estava linda, sim. É, o bolo. Sim.

Agora eu entro em casa e fecho a porta. Devagar pra não acordar mamãe, que dorme no quarto. Se acorda, começa a gritar, pois já não bate bem da cachola, não entende o que se passa. Me vê e me confunde com o marido. Onde foi que eu ouvi essa história? Agrego aqui à minha personagem, espero que os donos da história não possuam direitos autorais nem se sintam ofendidos. As histórias não têm donos. A mãe a vê e a confunde com o marido. Diz "Zelão, vâmo metê!". Já nem se choca mais com tanta vulgaridade, ela que nunca imaginou a mãe assim tão baixa. Mas prefere não ouvir.

Agora eu me deito na minha cama. Ah, esqueci de escovar os dentes!!! Agora eu escovo os dentes e me deito na minha cama. Tive vontade de chupar uma bala de coco. Agora eu chupo a bala de coco, depois escovo os dentes e de novo me deito na minha cama.

O reverendo não perguntou, eu sei, por medo! Ou por falta de costume. Aposto como, na época em que se perguntava isso (quase um pedido!), que "se alguém tem alguma coisa contra esta união, que fale agora ou" muita gente se levantava e isso acabou se tornando um perigo até para a continuação da espécie! Seu corpo esquenta com a cama. Minha cama é imensa, já te disse? É minúscula, fica imensa sem você. E pensar que eu comecei este texto e era pra ser uma declaração de amor, como a que o título anuncia. Mas, olha: acho que ainda é.

Amor é estarmos vivos.

Tipo ela, que agora dorme cada vez mais, cada vez mais. Vai chegando ao sono profundo.

Sabe que: um grupo de cientistas descobriu que, quando dormimos, sonhamos com lindas balas de coco num maravilhoso arranjo! Mas, quando acordamos, não nos lembramos de nada.

É bom que ninguém me pergunte, de verdade, o que eu acho dessas coisas. Do mundo, dos rancores. Porque posso ser bem mal humorado. Que nem minha personagem, que, contrariada, preferia que o carro dos noivos quebrasse no meio da estrada! Mas isso ela não confessou pra ninguém, quase nem pra si.

Agora eu vou trabalhar mais um pouco. Depois vou desligar o computador e eventualmente vou dormir. Talvez ferva uma xícara de chá e agarre um livro que me faça companhia nos últimos momentos.

Dormir é estar acompanhado de si mesmo.

Ê, veja só, hoje estou cheio dos ensinamentos! Ela, por outro lado, já ronca nas balas de coco que os cientistas prometem. Quando eu te encontrar novamente, nenhuma voz no aeroporto vai se levantar para dizer "se alguém tem alguma coisa contra esta união, que fale agora ou" você vai ver. Então vamos aproveitar, porque a festa é toda nossa! De um carro quebrado nesta estrada, quem perde o teto ganha estrela, confeitos de açúcar buscados nas dobras, chuvas, prazeres. E calemo-nos agora. E falemos para sempre.

uma infância protestante, segunda parte

mas tinha também o roberto. eu nunca lembro do roberto, mas ele foi muito importante.

era filho de um pastor, portanto acima de qualquer suspeita. e todo mundo dizia "nossa como ele é inteligente!!!".

a única vez em que eu estive sozinho com o roberto foi quando ele precisava comprar coca-cola pra o lanche das crianças e ele me chamou pra ir até a esquina.

o roberto tinha um moicano crespo, só vestia roupa preta, usava óculos e era muito simpático.

uma vez, andando com a minha mãe na rua, tinha um punk e um cachorro sentados na calçada. minha mãe falou "olha dois cachorros sentados na calçada".

mas com o roberto ninguém queria ser punkofóbico, porque ele era muito gente boa. e, mais importante, o roberto ele mesmo não tinha nada de cachorrofóbico.

agora, pensando bem, tou achando que ele foi o meu primeiro role model.

no caminho até a loja de conveniência do posto de gasolina, eu adorava ser tratado como adulto, o roberto falou uma coisa que eu nunca vou esquecer enquanto eu não tiver alzheimer ou não fizerem uma lobotomia num dos campos de concentração que se aproximam, credo. mas eu nunca vou esquecer.

"devia ter um verbo 'piscinar'"
"...?"
"é. porque você tá na piscina, mas não tá nadando. você tá piscinando"

eu fiquei admirando ele, que devia ter uns quinze anos na época, eu era mais criança ainda, e queria dizer uma coisa muito inteligente para agradecer e que ele fosse meu amigo pra sempre.

"...!"

é uma pena que eu não seja bom em dizer coisas muito inteligentes na hora em que elas poderiam ser ditas. às vezes fico quieto porque o presente é muito grande, minhas mãos são pequenas, e o laço de fita que embrulha tem um nó vermelho e lindo que me ocupa todo.

mas o roberto, além de tudo, não era patetafóbico e foi meu companheiro até que a coca-cola estivesse segura e gelada no tabernáculo.

naquele dia eu descobri a anarquia da língua, o amor incondicional, que punx not dead e hoje penso que, se o deus dos crentes existir, ele não tem nada a ver com o que se diz dele por aí.

ele deve ser até parecido com o roberto.

bom dia, diabo

nas manhãs de domingo a gente ia pra igreja / meu pai botava a mim e ao meu irmão na carroceria suja / depois comprou uma carroceria limpa e uma cabine dupla / depois veio o novo código de trânsito e um câncer de pulmão / no meio disso eu virei ateu / contei pra minha mãe enquanto assistíamos o vídeo do casamento da vivi / minha mãe se sentiu traída e disse que eu precisaria trabalhar pra me sustentar / eu fui pra uma loja de macumba e comprei incenso / que se atrevam a dizer do sincretismo religioso nacional / na escola eu era o único evangélico, antes de ser bicha / mas ia dizer dos domingos, que hoje não me afetam / naquela época tinham um aperto de roupa de igreja, que é aquela roupa boa que guardamos para deus / deus que nos conhece nus, mas nos exige com roupas excelentes / minha primeira fantasia sexual com um demônio foi libertadora / hoje eu ando ocupado com outras coisas / com, por exemplo, jogar enxofre sobre as igrejas do planeta / brinks

2.7.11

escrita chinesa

o imperador chinês deu ordens para que se escrevesse tudo quanto havia no país

ou seja: o tamanho das montanhas e as asas dos insetos

cada rosto do um bilhão de pessoas, as verrugas e os afetos inconfessáveis

que se escrevessem também as pedras da muralha e todos os seus intentos

os povos bárbaros jamais devassariam

quando o imperador chinês morreu, deu ordens para que fosse cremado

sobre a imensa pira dos papéis ideogramados

o fogo consumia a china para que não restassem ossos do pequeno imperador

num caderno no brasil, eu desenho em traços tortos um bonito ideograma

灰心

onde 心 ilustra um coração e 灰 uma mão tocando o fogo, significando "cinzas"

e os dois juntos lê-se: desespero

please refrain from the use of poetry

o corpo sozinho fica no revés da cama / você toca travesseiros, cobertores, assoa o nariz no pijama / quando acorda, está embaixo do colchão / se levanta e está embaixo do chão / agora fui tomar café, bingo: eu estava embaixo da cafeteira e não pude fazer nada / é assim que acontece / o corpo sozinho fica embaixo das coisas / há uma falta fundamental nesta manhã de sábado / dizem que se você tentar segurar pelo braço uma estrela-do-mar, ela se amputa e sai correndo / e do braço que sobra surge uma outra / nós, que somos o topo da cadeia evolutiva, não temos esse dom / bela evolução a nossa

estava usando o blogue pra escrever coisas muito edificantes / como se eu fosse uma estrela-do-mar, veja só a prepotência / e também fragmentos de uma coisa maior / ultimamente, ando meio esgotado / mas não ando no esgoto

fui fazer o café outra vez / agora se tivesse mais sorte / na cozinha, descobri o inevitável / que eu estou dentro das minhas calças e da minha camiseta / me dá muita falta de ar e me dispo, pra desespero dos passantes / com o mesmo assombro descubro / que estou dentro do meu peito e da minha cabeça / rasgasse a carne a tesouradas, aonde isso ia dar? / minha citação de filme favorita:

A galinha é composta de interior e de exterior. Quando tiramos o exterior, vemos o interior. Quando tiramos o interior, vemos sua alma.

mas não sou galinha e desconfio que não tenha alma / o que seria uma grande decepção após as tesouradas / o mundo se acabar num vácuo infindo ausência de amor / hoje faz cinquenta anos que o hemingway se matou / it's better to burn out than to fade away / esse sol, essa casca de banana vazia botam a gente comovido como o diabo / bom dia, sol. bom dia, dia. bom dia, diabo.

1.7.11

bondage for kids

mas, também, não é tudo só esse desencontro

como se não houvesse uma vontade maior ordenadora das coisas

e isso fosse um caos o pecado a danação eterna

o fim da crença na predestinação e na classe média

não é não?

pois bem. a criança conversa com formigas. hoje, passados tantos anos, aprendi a ser discreto. faço uma faculdade de biologia. na época os primos ralhavam e diziam que aquilo era pecado. também era pecado chamar-se "jesus" ou ficar de braços abertos e pernas esticadas. isso me lembra outra história. que eu levava os meninos da rua para trás do sofá, na hora da siesta do meu avô, e brincava de sequestro cordas imaginárias prendendo os tornozelos a mão tapando a boca eventualmente algum se defendia lambendo a minha palma

eu tinha nojo, mas não tinha

conversar com formigas era o de menos. se os primos fizessem a siesta, ninguém perceberia. mas eram adolescentes muito acordados e eu sempre fui a criança coió, desenhava corações de chapéu passeando cães e já adorava patos, desenhava peixes que faziam bolhas em forma de coração, adorava os corações

e as formigas

você é pequena e eu te entendo. tinha tanto amor que dava vontade de comê-las, já que beijá-las seria demasiado. eu só queria afeto. que a formiga, presa no quadrado que as minhas mãos faziam na calçada, não tinha como negar.

se eu fosse heterossexual, capaz que tivesse mais sadismo que delicadeza. com meu mapa astral, um sociopata é perfeitamente previsível. mas não dou pra isso não. deus é bom e me fez sodomita, com trejeitos femininos de quem pratica o mal obliquamente, em sabás noturnos no beijo negro dos gatos, deixando meu corpo para os espíritos da floresta

agora a história das formigas ficou de lado. lembro que tive grilos, tatuzinhos, caramujos e toda espécie de fauna de jardim

o pequeno era seguro e não oferecia resistência

história das pontes

inaugura-se na china a mais extensa ponte sobre água do mundo / as obras dos chineses podem ser vistas da lua e do meu quintal / brincava de encher a bacia de água, correr os quarteirões e deitá-la fora no rio mais próximo de casa / sobre a ponte sobre o rio, ficavam os trilhos do trem / meu avô estava atento pra que não fôssemos atropelados / a terra treme, o som chegando / quando tudo estava em paz, ficávamos vendo a nossa água ir embora / quando as águas se juntam, somos todos um / e atirávamos pedras em forma de carícia / que ricocheteavam / ou simplesmente submersas no grande tsunami dos pequenos micróbios / também pegávamos mamonas / as crianças menos tristes acertavam-se nas pernas umas das outras, para doer / eu olhava para os espinhos moles nos meus dedos e sentia solidão / a solidão de estar no mundo, junto das mamonas / de deitar a água órfã num rio / e ficar órfão dela / a solidão de meu avô haver morrido, da ponte que não mais visito, de saber outra sobre as águas da china / águas tão distantes e sozinhas de mim / queremos pontes sobre as ondas