5.8.11

era uma vez a morte

a mãe queria fingir que não entendia. mas era tudo claro. claro, é tudo escuro. "eu quero morrer". lucidez demais pra tenra idade. a muito custo tenho o tenro. pego um martelo de carne. enquanto bato, tenho em mente: boi é morto, boi é morto. depois fritamos e comemos. está bem macio, percebe? a vida assim: carne dura de galinha velha, bife mole se bates o martelo. a criança tinha cinco, talvez seis anos. e era dura como um bicho vivo: "eu quero morrer". e a vergonha de dizer a alguém? mãe solteira, coordenadora pedagógica de uma escola particular, de gente muito rica. aqui o escritor da história poderia, se soubesse, dizer que a mãe dá várias explicações piagetianas pra sentença da filha. mas o escritor não sabe nada sobre piaget. sabe muito pouco sobre as coisas. e não acredita nos dados. porque os dados não acreditam nele. tanto que começa a escrever de si na terceira pessoa. "mais uma prova", pensa, cartesiano, "de que eu não existo". já a criança não tem desses luxos. quer, porque quer, porque quer morrer. eu lhe digo "então por que não se mata?!" e a menina me fica olhando como se fosse um gato. como se eu e ela fôssemos gatos. talvez sejamos. menos a mãe. a mãe está demais preocupada em entender as coisas. embora viver ultrapasse, como sabemos, qualquer entendimento. dois gatos nos olham, a mim e à menina, indiferentes a tudo. mas nos olham. sem curiosidade, mas nos olham. "eu quero morrer", a peste repete. a mãe chora de noite, baba no travesseiro e agudiza "eu não sei o que fazer". agora me dei conta que o mundo é cheio de pessoas dizendo: "eu". e continuam as frases. imagino uma tribo em que a palavra "eu" não exista. quem sente dor olha para a pessoa mais próxima e diz: "você sente dor". pronto, já se entendem. trazem bálsamos, trazem presentes. fazem um mimo e, pronto, você não sente mais dor. a menina não sabe disso. eu olho em volta e não consigo deixar de ser eu. pulo da janela. morri eu. enterram eu e choram eu. passam os séculos, passam milênios, sabe lá o que vai ser dos ossos duros que eu deixo. lá no futuro, em algum arquivo de memória do passado, eu ainda vou ser eu. porque não nasci nessa tribo e, não tendo nunca não sido eu, sido apenas você, digo "eu" e "eu" paira sobre as águas, eterno, como o espírito de deus.

"eu quero morrer". por que não se mata?! os olhos da menina me segredam: ela não existe. acordo assustado pra história que eu mesmo inventei. se alguém não me parar, logo eu me perco. e, não tendo talento pra ser além de mim, estarei perdido para sempre. de mim, de quem for. olho pro espelho à minha frente e assustado percebo: eu nunca vou poder ver meus olhos. quando criança, eu queria arrancá-los, porque me dava aflição perceber que os outros - eu ainda não tinha percebido que eu também era os outros, como ainda agora não percebo - que os outros nunca poderiam ver seus próprios olhos como eu os via. isso, pra mim, era incompreensível.

a mãe agora entreabre a porta do quarto da filha. a menina dorme, sem fala. e, na verdade, nunca disse nada. porque não existe. mas a mãe sente que fracassou. e, à vista do gato, que não se importa, ela chora, e pula da janela, pra acabar com esta história.

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