31.8.11

tudo isso passa. só a arte fica,

Só a Arte é útil. Crenças, exércitos, impérios, atitudes - tudo isso passa. Só a arte fica, por isso só a arte vê-se, porque dura.

Lendo Fernando Pessoa hoje.

"não é um livro, é uma banana"



"eu espero que me leiam nos banheiros"

do Livro do desassossego

Eu nunca fiz senão sonhar.
Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida.

30.8.11

o escritor e seus fantasmas

uma das histórias que há mais tempo eu tenho pra escrever (não sou de guardar histórias, quase nunca as tenho, elas costumam aparecer na palavra seguinte) é a de dois irmãos que se abraçam numa praça após o velório da mãe e são confundidos com um casal gay por um grupo de pessoas que os ataca a golpes e palavras, talvez ocasionando mortes. o final da história não está pronto. acho que a coisa só acontece quando acontece e tenho quase certeza de que ninguém morre de véspera.

pensei nessa história faz muitos anos, talvez antes que eu tivesse abraçado qualquer homem, vendo uma dessas séries dramáticas de televisão em que justamente dois homens se abraçavam, e eram irmãos na ficção, e muito bonitos. então eu pensei com as calças no colchão que aquela era uma cena de que gostava, mas logo pensei nos desdobramentos trágicos que aquilo podia ter. o meu colchão ficou silencioso e desconfiado.

nunca consegui escrever nada dessa história. nem uma palavra. e não acho que vá me dar por satisfeito com isto aqui, dizer "ah eis a história escrita" e pensar em outras coisas - no meu namorado que vem me visitar, ou no livro que comecei a ler. sempre penso nela e num modo de começá-la e, face aos últimos acontecimentos, fico pensando que ou ela não é mais necessária, ou é mais urgente que nunca. porque não só é uma história cotidiana, como agora tornou-se também uma notícia do cotidiano. em vez da morte, um dos personagens, por exemplo, poderia ter sua orelha mordida e arrancada, como aconteceu no interior paulista não faz muito.

acho que outro momento de formulação da história pode ter sido também o velório do meu pai. (talvez tenha a ver com configuração zodiacal que eu sempre esteja afogado nas coisas, mas pensando nas inúmeras variáveis dessas coisas que me afogam, e no possível vigente). meu pai morreu e a ficção anunciava o absurdo que é qualquer pessoa, em qualquer situação, levar uma paulada na cabeça. coincidentemente (embora a ficção - eu nem sei mais se isso é ficção - não tenha acontecido, e por isso não possa coincidir com nada) deixei de abraçar meu irmão justamente por ele ter atitudes homofóbicas que, embora não cheguem nem perto da agressão física, / / /.

minha mãe, por outro lado, não morreu. e eu consegui escrever um livro cheio de histórias que meu pai nunca vai ler. e que talvez ninguém mais leia. eu também ainda não morri. e estou incomodado por não conseguir escrever nada apresentável há meses. fico patinando nas palavras e o acaso não me ensina nada novo. embora me dê muitos sustos. (ontem, por exemplo, caí da escada).

29.8.11

depois das quedas

todo mundo tem problemas. isso resolve os meus? não, é muito óbvio. assim:

eu vinha descendo a escada, escorreguei e caí de bunda nos degraus.

, eu vinha descendo a escada. escorreguei. caí de bunda nos degraus. quebrei a bacia.

antes de quebrar a bacia, eu vinha descendo a escada. ninguém me viu. era de noite e a escada era escura. eu vinha fugindo. o núcleo da história é o mesmo: caí. de bunda.

era um prédio muito antigo. quantas vezes, no mesmo degrau, alguém, que não eu, teria escorregado e caído?

e na calçada? e em cada esquina? o mundo é inteiro muito antigo.

eu vinha descendo a escada, escorreguei. no exato momento em que o prédio caiu.

a) por fatalidade do destino, minha queda me levou a um vão entre os escombros. dois dias depois os bombeiros me encontraram. eu estava vivo.

b) o destino é imprevisível. minha queda me levou à ruína mais difícil. sobrevivi mal por uma semana, bebendo a própria urina. os bombeiros me encontraram. morri dois dias depois, no hospital.

depois que saí do prédio, comprei um alfajor. "não tenho dinheiro", pensei, e comprei um mais barato. "para o mais barato sim tenho dinheiro".

porque antes eu caí. e quis me fazer um agrado.

a gravidade não me agrada.

se ela gostasse de mim. uma vez concluí, um pouco tonto de ternura, que se não saímos por aí voando no universo é porque a gravidade nos quer, ELA NOS QUER, e tive esperança nisso. agora estou um pouco cansado e dolorido.

certos quereres não sei se é tão bom querê-los.

em torno de um imenso buraco negro, o nosso planeta partícula da galáxia anda escorregando e caindo há muito tempo.

[aqui me tenta uma síntese. ou redenção dos meus companheiros, das minhas companheiras, todxs caem. mas nisso de problemas tê-los não resolve. termino o texto assim,

caindo

o fim do mundo

o macaco / melancólico / parou do galho em galho / e se prostrou num arbusto baixo e cheio / mocozado qual japonês em selva na segunda grande guerra / mas o macaco olha e não tem guerra

"hoje no nosso programa nós vamos falar blablablá esse simpático símio da américa do sul blablablá famoso por suas gracinhas blablablá vive sempre em bando"

o macaco olha a equipe de filmagem e não tem vontade de sair. em outros tempos fui grande estrela de série de televisão e alegrava a criançada. hoje não tou com casca para a banana.

ou então:

notou-se, biólogos televisão curiosidade pela vida selvagem, melancolia na floresta, amuados bichos focinhos mornos aventou-se hipótese de envenenamento. grupos de proteção ambiental participantes se amarraram em árvores como forma de protesto. vinha a onça comia os manifestantes depois deitava-se na beira do rio, triste de barriga cheia.

naquele tempo que a onça não bebia água.

tentaram tudo as autoridades brasileiras presidenta pronunciou-se "companheiras companheiros da floresta". eu, que estava depois do rio da prata, fiquei sabendo pelos jornais. as autoridades tocaram samba em alto-falantes espalhados da mata atlântica à amazônia. de noite, às vezes, se ouvia o uivo quieto de um sagui esquecido.

os bichos lembraram deles mesmos.

e foi como começou a grande mudança social. deram um número de registro pra cada um e uma função na economia crescente. muitos foram aproveitados na construção da usina hidrelétrica de jirau, pois não lhes interessava qualquer luxo que os humanos querem ter. tamanduás puxando cordas, emas carregando blocos, os animais se deixaram levar pensando "ai de mim", pensavam

ai de mim.

(menos os tatus. tatu, que é bicho da terra acostumado, cada um ia prum canto do subsolo. esperava os guardas se distraíssem e saíam um pouco à noite, pra ver o escuro)

história dos bichos, que aflitos. a psicanálise quis entender. mas bichos não falam.

quiseram interrogar um papagaio. ele só dizia "nunca mais". diagnosticaram desvio de gênero.

e assim termina a história.

deus, que até então não tinha se manifestado, percebeu que a criação tinha dado com os burros n'água. mandou jesus de volta. jesus arrebatou pros céus o silas malafaia e todo o resto das pessoas que achavam que iam pro céu. mandou o resto das pessoas pro inferno e deixou aqui os bichos. pros bichos não ficarem sozinhos, deus disse "olhem as pedras". e as pedras, que já existiam, sopradas pelo espírito do senhor continuaram sendo pedras, mas todo mundo olhou pra elas.

deus apareceu depois do fim da história porque deus é eterno.

eu continuo aqui porque, pelo menos por enquanto, também sou eterno.

agora vou embora porque preciso fazer outras coisas. tenho que construir jirau. sou onça.

28.8.11

o açúcar universal

vinha nos mínimos / de uma reforma ortográfica entre os meninos / um L acolhido um U se estendem letras atrás de uma página, caneta, histórias do universo / a ca_da do cometa / fazia história e sentia nos dedos / brilhante líquida / a cola dum núcleo / escorrida

27.8.11

estudo para a âncora

marinheiro tatuada âncora no braço

o corpo o que pesa fica, o que pode ficar

mas não pesa e vai

arraigo o símbolo, digo

em mar tatuo a terra
em terra uma gaivota
asa aberta sobre o peito

a pele é um sistema de compensações

(estudo para a próxima tatuagem)

queda que

uma queda que te acolha

"deus", uma definição.

mas como deus não me importa...

/

deus saiu de sua casca e piou o mundo. depois cresceu, de franguinho tomou corpo e cortaram-lhe a cabeça. minha mãe me levou para escolher. os corpos giravam empalados em fogo tosta na vidraça de um almoço. "assim", salivo, "talvez contemple um anjo o inferno". e comprávamos a morte, o cheiro era tão bom, quando meus dentes pequenos cortavam um tendão e eu mastigava e engolia a pele salgada

"sal da terra luz do mundo"

por vias vazias de metafísica a carne se tornava merda. e faz 26 quase 27 anos que eu cago neste mundo. juntasse toda a merda a minha infância quantos quilos de despejo eu produzi? deixo de ser o que descarto e me torno só aquilo que desejo? na curva de um alcance /

sol que volta ao céu todos os dias
iluminai os intestinos
lua e sol e tudo que alumia

/ deus uma
galinha que corre sem cabeça

deus a
refeição de domingo sobre a mesa

deus é o passado de deus
e o futuro não se sabe quais descargas

/ papo furado /

, o mistério de hoje começava assim: "uma queda que te acolha"

e vinha a definição de deus
em outros termos o buraco de alice
que cai e não acaba
nada disso é acolhimento
no que concluo queda eu tenho
o mistério de hoje é o acolhimento

25.8.11


ceniza s

as horas se arrastaram / para atravessar um corredor / tinha estourado a bomba / ninguém sabia ainda / vai aguentar o edifício / uma das horas parou no caminho / não podia mais mover, gangrenaria a perna / do grupo algumas seguiram indo / enquanto outras salvaram a colega / cortando-lhe a perna e arrastando-a consigo

"a perna", completa a moral da história

o ataque terrorista aconteceu numa favela / em são paulo, os incêndios são sistemáticos / pra que as famílias se movam e deem espaço à construção dos estádios / num barraco havia as horas, que eram crianças / e morreram sufocadas sem poder abrir o trinco / a mãe das horas as deixava ali, com medo da porta aberta

"se tens medo da porta aberta
cuida pra que te levem a perna"
retoma a moral da história

agora digo de outras horas / as há em quase todos idiomas / menos num que a funai e os missionários / organizações de proteção ao índio / mídia burguesa anuncia uma tribo livre de tempo / "não têm palavras de hoje ou amanhã" / leitores fascinados se descobrem preciosos / o acúmulo do lucro também serve para as horas

então as horas

assim chamamos os peixes. um dia voltamos para casa e o aquário estava vazio. sai da toca um peixe grande, comeu todos os outros. este não o vimos, portanto não estava batizado. então o chamamos "as horas" este único peixe que comeu os outros. é feio e nos dá medo, pela possível fome, embora tão pequeno.

[peixe]

a história é sua própria moral. o tempo se insere na carne, se move sob a pele, brotoeja, afrouxa os flancos. depois carcome as nossas idas e ideias, ó tempo um peixe incógnito

e mínimo após o estrago

os chineses veem as horas nos olhos dos gatos

eu desconheço. só sei que o corpo some após a morte, às vezes, mas pode permanecer em algumas condições, nem disso eu sei

"as horas..." (quero continuar buscando)

as horas / ejaculam

24.8.11

se onde fosse ninho

ando pensando um plano
pra unir de novo os
continentes acabar com essa
saudade

no chão, penso no avião.
no avião, penso no foguete.
no foguete, cheio de velocidade,
vemos o planeta pequeno
um ponto azul pra nossa lembrança.

no que dizem cada um
ter de especialmente seu,
uma bobagem,
percebo ter pouca atenção
para os detalhes, ou toda
no que eles têm de
panorama /
panorama o meu afeto
busca do céu o chão com dedos
corta as lavouras e a cidade interminável
são paulo no horizonte, a onda se
levanta, tsunami cobre o corcovado
passando por goiânia cobre a colômbia sobram
as pontas dos andes onde
gaivotas pousam sua paz, pantalassa
me afoga de novo

/ afeto, afeto /
o calor e suas bestas
uma vida de espera e aquecedor
interno a nos safar do frio do
inverno, e se prepara um novo
voo manco não encontra ninho onde
diga "aqui" / repousam as
penas / "aqui" / se acaba
a cadeia

minhas montanhas, minhas montanhas
belo horizonte ao fim dos pampas

(essas vontades sobrepostas aos
lugares um alarde de pombas em bando
que voam e voltam em volta do mesmo
banco)

(uma velha e seu neto jogam milho)

23.8.11

Caminante son tus huellas / el camino, y nada más

sela

era um cavalo, mais bem uma égua / e feita de sonho / que cresci na cidade, sou homem sem iguais / mas trotava e nisto / sobrava-lhe casco indomável bruto animal fora do tempo / da égua eu só sabia sua aparência / pelo escuro grosso corpo / e me imagino com ela entre as pernas / cru galope suor arder-me / o destino e a virilha

mas não admite nome, a égua. eu batizo "a dor do mundo" não pelo que do cavalo vejo, mas pelo vislumbre cavalgadura. nossas ganas num mesmo caminho, estribos e cabrestos que eu controle. a égua trota longe e eu fico da janela olhando enquanto escrevo neste blogue. depois ela morre e outra trota.

morre. a égua é condenada a morrer. e eu sou condenado a ver que a morte se renova. seu corpo, feito carimbo, vai deixando cadáveres dela mesma / que / viva / segue a corrida sem rumo, em voltas à minha vista / primeiro desvia dos cadáveres-dela-mesma que se espalham pelo chão / mas logo não sobra chão e ela tem de pisar sobre eles. até suas coxas o sangue espirra, o marrom brilhante se avermelha, coagula ao sol e ao vento, faz frio, os cascos duros esmagam ossos que cortam ossos. eu (eu) sou meu próprio cemitério. diria a égua se fosse eu. e eu não diria nada / se fosse ela.

a dor do mundo enfim recolhe-se, penso, ao seu estábulo. é noite e tudo fica silencioso. a dor do mundo dorme, cheia de crostas castanhas do seu próprio sangue de outras. os grilos estalam no escuro uma almofada espinhosa, macia. de viés na eclíptica deitado é que eu durmo, o computador desligado, um sono trôpego, um abandono. e sonho sem saber que estou vivo / histórias de medo.

se acordo / é madrugada / a égua viva longe deve estar apagada, a força dentro dela feto refazendo pra amanhã / amanhã. os cadáveres quadrúpedes fantasmas se levantam. me livro do pesadelo e vejo outro pesadelo, outro, e outro. a tropa morta que / acorda / e enche os pampas, enche os continentes / purga o nunca findo

/ / / até que raia um novo dia. aí sim acordo / com dor de cabeça. quando abro a janela, me olha a mesma égua, já pronta, já sabe. e espera que eu responda. começamos?

22.8.11

Novo emprego

"Eu a chamei de boqueteira." Encontre o predicativo do objeto.

21.8.11


20.8.11

tenho a impressão de que quanto mais escrevo o que quero, mais longe estou do que quero, e mais perto da coisa a que realmente gostaria de chegar, quer dizer, que por linhas tortas o certo escrito, ou que não há certo, mas que um horizonte toma forma nas minhas mãos, vira massa, corpo novo, e tudo com matéria já havida, molde, ou mais

atirei no que vi, acertei no que não vi

sendo que o pretérito não é um tempo adequado, não para isso. o que comecei a pensar agora, também, é que será que a vida também vai por essas trilhas, interrogação.

visto que não há passado com que se possa comparar / e não há quê? / histórias quais não servem pra este agora



um pouco bêbado e mais humilde, já descarto continuar pensando em palavras que queira minhas.

desde que o samba é samba

a doçura escalou pernas, andes
foi dar na costa fria de inverno
fico pensando no ciclo da cana-de-açúcar
primeiro o da planta, que não conheço
meu vô na navalha e me dava pra chupar
depois o ciclo histórico, tb desconheço
engenhos escravos a concorrência holandesa
nos polos o que é doce?

(...)

a doçura escalou pernas, andes
e instalou-se entre condores
no ponto mais alto das américas

desta amurada não me navega
o açúcar lava que escorre dos
lábios depois que se rompe

nos dentes a célula a rasgam
piratas colonizadores cidades
aqui nunca se instalaram

há nuvem de cinza que espessa
resposta aspartame do oráculo
um crime não será praticado

e o que demora erode o
pavor dessas encostas, nada
sobra que desça das pernas

doçura

escalada

desde que o samba é samba é assim

18.8.11

copacabana arde

cercaram com tochas foices pedaços de pau a casa da maitê proença, depois a maitê proença apareceu na janela, a distribuição de renda começa aqui, o crânio quebrado da maitê proença, maitê proença cheia de medo foi viver em londres, passou longe de portugal, é persona non grata no mundo livre, pele clara, praia em chamas, cercaram depois a regina duarte, ou há projac para o brasil ou não há brasil para o projac, os filhos do roberto marinho andaram na prancha, usaremos estúdios cenográficos para a revolução, para sanar o déficit habitacional do país, mas que cansaço, trazemos os estúdios abaixo, baixa o nero no cavalo, copacabana queima, o rio de janeiro é londres, cinzas parlamento, cristo é uma escultura retorcida, o bonde cai, santa tereza queima, a lagoa queima

*

idílio baía de guanabara. "o fim", me adverte o professor de história, "não vai ser bonito. nem cheiroso". a maitê proença senta do meu lado e começamos a conversar com a fumaça às nossas costas. sobre a política econômica do país, a diferença salarial, o monopólio da mídia, a expectativa de afeto na contemporaneidade. a gente passa um óleo suave nos braços na areia quente. e o oceano horizonte é deserto, bonito.

eu quero mais é me abrir e que essa vida entre assim

17.8.11

parar de ser brutal

deram uma flor como exemplo. os dentes dos bichos. e vista no minúsculo, flor, era monstrengo de cor microscópicos monstros

"o monstro", disse minha mãe, pra me acalmar, "não existe".

pois bem. a cidade está cinza pela simples razão do tempo. que a terra é um globo imperfeito que gira imperfeitamente. ontem tirei as cartas. depois sonhei com elas. sonhei comigo mesmo. não pude mais e acordei. é inverno. localizamo-nos no hemisfério sul. e há camadas camadas a geologia tomada como exemplo, depois da flor, os fósseis amolecidos no presente,

"a vida, amigo, é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida"

a terra gira e você gira junto. quando volta pro mesmo lugar, já não está lá. talvez se num coma, mas mesmo assim, há outros movimentos que a terra faz - e na manhã - de uma volta perfeita - perfeição não há - nem eu, em coma, me encontro comigo.

há uma tribo que não conhece a palavra "eu". para dizer "eu tenho fome" a pessoa diz algo que pode ser traduzido para o português como "você tem fome". todos entendem e comem. há, sim, a primeira pessoa do plural. ela é divida em duas: há uma palavra para o plural inclusivo, em que estamos todos. por exemplo: nós vamos dançar. todos dançam. e há uma palavra que é exclusiva, que exclui a todos. por exemplo: nós vamos dançar. e ninguém dança. porque o resto do mundo já está dançando e nós não existimos separados do resto do mundo, então estamos dançando também, embora não dancemos, propriamente, como dançaríamos em português.

esse povo é muito interessante. logo trago mais informações. utilíssimas para o conhecimento antropológico.

os oceanos cindem. e não só eles. há degraus sobre os pés, e há mais mais adiante. nossa escalada é entre a solidão e o desapego. as árvores aguardam. é delas - ou "do que virá delas" - a terra que eu vou a contragosto alimentar. as árvores carnívoras por via indireta. deixar pra trás toda essa destruição que você traz das outras vidas. "as outras vidas".

as outras vidas.

nenhum porco sabia o seu destino. e comia e engordava e logo era abatido. acasalava, sim, aos olhos das crianças. que riam e às vezes lhes jogavam caroços por cima. os porcos se incomodavam se atingidos nos ouvidos. às vezes distraíam-se; outras, recompostos, retomavam pinto duro de porco na boceta e tudo findo, prazer na lama o gozo envolto nestas tralhas, retornavam à porquice. nasciam mais porquinhos e toda a humanidade pôde comer bacon linguiça costeleta, especiarias, os miúdos para os mais pobres, um prato exótico nos bairros de classe média, meu fígado servido em cubos agridoce eu sou porquinho, como o porco, e assim desde o começo da espécie suína.

ou então os vegetais. ou os bolivianos costurando escravizados no centro de são paulo. evo morales sendo visto e dizem "é muito feio". "ainda bem que você não tem cara de índio". os escravos não bolivianos eram melhor tratados. dormiam no próprio lugar de trabalho e não podiam sair sem autorização, e só em casos extremos. a solidão, o desapego. um apartamento confortável com calefação interna. cidades distantes. olho o mapa na intenção de ajuda. procuro um caminho e não encontro. aviões, trens, rodovias. todos os caminhos possíveis.

iluminação interna. um baralho simbólico e divinatório ao lado. nos primórdios, nas tripas dos animais é que se adivinhava. um fígado de porco traçado e o seu futuro. o futuro é nas entranhas.

[falta]

16.8.11

o escritor e seus fantasmas

eu escrevia um texto sobre o olhar, naturalizando o olhar com o texto. ao final, me lembrei: que há gente que não vê - e não no sentido figurado da expressão. e pensei: como será pra essa gente que não vê? (dos meus maiores medos é ficar cego, se é que é um medo). conheci um menino surdo, uma vez. e passei a escrever pra ele. me parece óbvio pensar, com essas coisas, que é impossível uma experiência que possa ser partilhada por todo mundo. digo: conheci uma menina que não tinha olhos, o rosto liso no lugar dos glóbulos, e era surda e tinha retardo mental.

não se trata de ser politicamente correto. não apenas isso. a questão é imaginar o que está além de mim mesmo. a imaginação é dos poucos recursos que temos pra experimentar uma alteridade radical. como seria ser cego? e todo o meu mundo muda, por um instante. óbvio que a imaginação, sozinha, não existe. como é passar fome? eu não tenho a menor ideia física do que seja. tenho a palavra, "fome", e o que ela me dá. disso posso intuir coisas. posso contar por exemplo a história da minha avó, que passou fome quando criança, e de como isso me dói, porque eu a amo. mas com isso eu não chego à fome. sei um pouco mais porque li o quarto de despejo, da carolina maria de jesus, em que ela conta que passou muita fome, quase desmaiou e que via tudo amarelo. mas só percebeu que via tudo amarelo quando alguém lhe deu um pedaço de pão e ela comeu e então viu outras cores. assim, concluiu: a fome é amarela.

eu não sei o que é ser cego. quando digo do meu olhar, é uma experiência minha que compartilho. mas se abdico do meu olhar para dizer o que sou eu sem esse olhar, não é também outra experiência? naquele texto que eu estava escrevendo, sobre horizontes e alcances, escolhi (por medo) não considerar a cegueira como ponto de vista, já que isso destruiria todo o texto e eu não saberia onde me agarrar, teria que começar tudo de novo. fui covarde e preguiçoso e escolhi a comodidade.

acho que quem escolhe a comodidade não tá com nada. picharam "quem não se movimenta não sente as amarras que o prendem". acho a comodidade, também, um cinismo disfarçado de prazer e uma tremenda falta de consideração.

("considerar", etimologicamente, é "levar consigo os astros", diz um amigo. é o mesmo papo, mas abrange outras coisas.)

começo a ficar cansado deste texto e não sei se cheguei nalgum lugar. o cansaço é um chão que cede. é o poço da alice. que cai e cai até que não se importa mais de estar caindo.

também não acho que pensar como eu penso me faça melhor que ninguém. sempre, especialmente na universidade, vi gente que se achava muito melhor do que todo mundo por pensar como pensava. e pensava que pensava diferente, mas agia igual todo mundo. isso se dá porque (ando desconfiando) o indivíduo não existe. a gente é uns blocos de células que o mundo atravessa e movimenta, somos células da alma do mundo. por isso qualquer transformação só se dá no coletivo e no tempo do coletivo. isso não quer dizer que não existamos ou não importemos enquanto partículas, mas que nada é nosso, que nós é que somos pertencidos.

a terra não é de ninguém. nós somos da terra.

fica cada vez mais difícil chegar numa síntese. ando puxando o meu próprio tapete como método argumentativo, ficcional e de pensamento. é uma espécie de sabotagem do meu potencial tirano (o pequeno grande fascista que vive na gente), ou ao menos foi com esse intuito que eu comecei a usar esse método. começo a duvidar da eficácia disso. essa dúvida é ainda uma puxada de tapete. talvez seja a derradeira e a eficaz, de fato. mas não sei.

acho que, agora, eu vou tentar escrever um texto como se fosse cego.

ou tentar descobrir, em mim, a cegueira que eu não vejo.

***

periodicamente eu assisto esse vídeo. se fosse um livro, eu sempre o traria comigo.

15.8.11

divinatório

lia
nas feridas dos
doentes um mapa
do futuro

e consultava senhoras
e seus ouros pra dizer
de casamentos, filhos, as fortunas

no enfermo esfregava bálsamos
que multiplicavam as secreções

amarelo indicava prosperidade
hemorragia, abundância

14.8.11

não posso dormir

então vou escrever uma última vez, depois eu durmo e acabou. valendô.

uma história de amor

[canção]

o avião explodiu. nunca encontraram seu corpo nem sinal que pudesse se assemelhar.

o amor é o que muita gente, depois, pensou "como eu amava". e alguns, anônimos, vendo o noticiário: "como eu amaria".

os verbos chineses não têm tempo. diferente dessa língua portuguesa tão nostálgica que finjo. a história continua:

e não encontraram a caixa preta. até muito tempo, quase dez anos depois.

mas o corpo, mesmo, esse é que não encontraram, mesmo.

pronto, não há mais amor. fico olhando o vidro da janela e pensando "meu deus, o vidro!!!". é uma descoberta impressionante do engenho humano, me parece. estou cansado demais pra sair. e agora veio o sono, com vidro e tudo.

o sono sendo assim: uma janela.

boa noite

se não paro de escrever agora, vou parar daqui a pouco

amanhã é domingo e eu não tenho nada me esperando

lembranças da infância protestante / quando eu jogava travesseiros no chão se não queria ir à igreja / minha mãe me fazia recolher os travesseiros e ir na igreja mesmo assim / depois eu pedia desculpas pra deus e não entendia nada / continuo sem entender, mas hoje não tem pra quem pedir desculpas / e não jogo travesseiros no chão em sinal de protesto / vim parar muito longe da minha mãe e de qualquer sinal de deus, era o que queria / acordo pela manhã com o canto gregoriano dos católicos ao lado / amanhã é domingo e eu não tenho nada me esperando / ninguém que me acorde e obrigue a vestir a roupa boa

nenhuma roupa é boa o bastante

dormi sozinho e nesse sono deus estava comigo. é um cachorro que abusa de gente desacordada. acordei melado e sem aproveitar o prazer. depois fui me limpar e senti umas dores de rasgo, vi uns arranhões. deus nos conhece do jeito que bem entender. fico olhando os roxos no espelho e pensando que não sei o que fizeram comigo.

volto pra cama à procura de sinais. não há pentelho que deus tenha deixado. os peritos não encontrariam nenhum rastro de sêmen. "é um criminoso muito astuto" conclui-se, e encerra-se o caso. instalo a chave tetra na porta da frente. ponho a bíblia no lixo. não no reciclável.

maldita essa orfandade.

virão anjos e demônios, quase todos corretores de seguros. durmo a noite como todas as outras - as passadas até a minha primeira, e as seguintes até aquela incógnita futura não sei se em cama nem de quem, se minha ou mesmo em pé, explosão nos ares sobre o atlântico, talvez sentado, talvez sozinho

(nunca tinha pensado na minha primeira noite - sozinho, agasalhado e exposto - num berçário de hospital)

agora tenho sono e uma resistência ao sono não sei de onde. espero algo que ocorra. essa espera também é maldição cristã (elaboro), a vinda do cristo como ladrão, vigiai. luz elétrica no planeta, acesso a internet banda larga, solitária condição humana, vigiai.

...

cosmogonia pra boi dormir

era uma vez uma vaca

a barriga da vaca era o céu

você pensa "daí a via láctea", mas essa vaca não dá leite

ela é um imã de geladeira

conclui-se que todo o universo é uma geladeira

e a gente se perguntando "o que tem lá dentro?"

da geladeira, do universo

pensa em doces e salgados

ou uma garrafa de coca 2 l cheia de água

da torneira

...

da torneira a gente pensava que vinha o universo

vem não

o mundo não é fluido

enche de gelo, depois molha o chão da cozinha

e eu aqui, com frio

...

os produtos estão vencidos

a gente come mesmo assim, com dó de jogar fora

e porque senão não tem o que comer

...

a geladeira é a esperança da geladeira

eu abro pensando que vou me ver lá dentro

ou então ver alguém

mas está vazia

ou então cheia de coisas

eu não sou nenhuma dessas coisas

nem ninguém

fecho e fico sem luz

...

ponho o mundo inteiro na geladeira

perdi a paciência

acho tudo uma bobagem e de validade vencida

...

podia dizer "ou 'o meu refrigerador não funciona'"

mas eu quero a cabeça do tropicalismo

servida numa bandeja

de micro-ondas

...

prometo não ter uma crise

só por hoje

hoje, a geladeira é a crise

...

ninguém escreve ao mecânico de geladeiras

ele fica sem trabalho e não tem o que comer

logo, tem de desligar sua própria geladeira

logo, come a maçaneta e a porta e os químicos de dentro

de desespero

morre entalado porque ninguém consegue consertar ele

...

a gente trouxe um doce da festa e guardou no tuppeware

deixou lá dizendo "na geladeira não estraga"

quando foi ver, o tuppeware era todo bolor e tivemos que jogar fora

incluso o plástico

...

antes, se conservavam os alimentos no sal

ou com outras artimanhas

...

a carne está cada vez mais cara

quando o preço baixa, compramos muita e estocamos

faz tempo que o preço não baixa

matamos nossa tia e congelamos

comemos de pouquinho, na sopa

...

agora tenho sono e tenho fome

que mais tenho além disso?

tenho uma cama e comida

mas não estou dormindo, nem comendo

não vou concluir nada disso

esqueci a crise na geladeira

junto com as estrelas

e amanhã é domingo, e eu não tenho nada me esperando

10.8.11

a criança não sabe amar. eu também não sei. vem-me de dizer: que ninguém sabe. e logo: deve haver alguém que saiba. tudo parece tão simples às vezes, verdade? mas sufoca o gatinho no abraço. aqui já é um lugar comum. tem em filmes populares e histórias da clarice lispector: que a criança ama tanto o peixe que o tira do aquário e o mata. outros diriam que isso não é amor. não acho que alguém possa dizer. eu, da minha parte, não quero definir. e nem morrer.

mas que alcances de afeto pode ter a crueldade?

como se nada fosse doce, ele sentiu o primeiro golpe. e logo choques, invasões. eram vários, poderia ser um, já que nada era doce ele poderia mesmo não ter sentido o primeiro golpe, depois daquilo não haveria começo, nem haveria um único algoz. caminha na rua e lá está, em cada rosto o rosto que não viu, penumbra num corpo que sente tão claro: água salgada nas feridas. aqui eu não sei escrever. secretamente, tenho me dedicado à história da crueldade nas américas. e nasço disso um afeto possível. não sei direito que chão piso. um grande cemitério indígena. e, já que nada era doce, não havia tempo, não havia espaço. o corpo soltava merda, mijo. soltava também sangue e lágrimas. se quem passou por isso mal pode dizer, eu menos ainda. pois agora tenho algodão e caramelos. e o limite da minha dor é esse incômodo nas costas, pois dormi de mal jeito.

há gente com essa sorte: dormir de mal jeito. a ficção é boa com essas pessoas. dedirrósea, desperta vaga da maneira como isso que eu quero escrever não pode ser.

minha ambição é contar a história da fossilização das almas. um misterioso russo que vai de cidade em cidade comprando escrituras de escravos falecidos. ele vive no brasil, em 18XX. minha ignorância não alcança as implicações jurídicas disso. minha imaginação tampouco. digo assim: um misterioso russo. e espero que isso dê conta.

estes dias, tive uns incômodos muito grandes. mas sinto que nada chega perto. perder uma orelha pela arte é história pra boi dormir. aquele lá perdeu uma orelha pela vida. e pintava.

chegar a esse ponto, de trucidar a própria orelha. vê como estou longe?

começo assim, mais uma vez: "como se nada fosse doce"... mas ainda não encontrei o que eu não tenho. ... apenas duas mãos e o sentimento do mundo... ... nem ia escrever sobre isso. como escritor, não sou escritor. tenho que lembrar constantemente disso. o que ia dizer, desde o princípio, é que o homem ama, mas não sabe o que fazer com isso. faz a barba pela manhã e vai para a rua esperar o ônibus. a rua está cheia de gente e é complicado caminhar. depois chego no trabalho, ligo o computador e tenho rins, olhos, unhas, contas a pagar. se não paro de escrever agora, vou parar daqui a pouco.

8.8.11

ou

difícil
uma delícia
os segredos de uma existência assim
tão turva rasgos de
caminho o ensinamento taoísta de que
o mistério é mistério e que deslumbra
os planos da insegurança atados
ao teu rabo
de gato preto e fugidio por
uma noite que
se acende

vai dar em lamaçais da
espera e da
conquista, uma alegria que não
se domestica, conforto da água
quente e da massagem alguém
que ame aos dedos e estocadas,

uma barba, ele respira,

o segredo da existência assim
tão turva, teu respiro
longe
que se ouve nesta
praia, o som do mar
põe-se em movimento. lei da inércia. os movimentos se mantêm. o que é estático também.

mas.

tem um conto do borges em que ele fala das unhas dos pés. que são feito um bicho selvagem. ontem, li um texto que diz que as memórias são outros animais selvagens. entre as unhas e as lembranças, começo a desconfiar que nada se domestica. que das raposas e lobos fabricamos cães mansos. mas que.

minha avó tinha um cachorro que era muito seu amigo. até que lhe atacou a jugular.

era uma fila que se chamava tequila, se não me engano. nas reuniões de família, todos sempre dizem "cachorra ruim", como do demônio. e também contam que a tequila ficava com a cabeça enorme entre as minhas pernas, eu no carrinho de bebê a dar-lhe chutes, e minha mãe apavorada, mas a cachorra ruim levava os chutes no focinho e ficava ali, talvez numa espécie de afeto (quem sou eu pra nomear o que sentem os cachorros?)

nada se domestica. e o selvagem pode inclusive nos surpreender com um amor feroz. que não mastiga.

assim os pensamentos e as palavras. que não são mais do que nosso instinto. dos humanos dizem que não temos instinto, a repetição que faz os tigres serem tigres. que bobagem. o nosso instinto é o incerto. nos faz ser incertos.

vou escrever cartas em português para espalhar pela cidade.

não, não vou.

portanto, não faz sentido esperar o selvagem que venha do solo, um terremoto redenção a tempestade um tiro fim, a água das paixões. também o lar é perigoso. um pântano à mercê do próximo jacaré.

que vem. que está.

eu sou um jacaré.

7.8.11

tinha: um fim. e atrás do fim.

não tinha atrás. então o fim ficou, e como também não tinha frente.

eu pus o fim numa caixinha. embaixo da cama. "boa noite" e minha mãe fechava a porta. "shhhh, fim".

ele não latia.

até que desse uma hora morta da noite. quando se punha a ganir.

pra que não acordasse a casa (eu nasci clandestino) tinha de pôr a mão dentro da caixa.

a fim de carícia. mas o fim me mordia.

minha mãe queria saber onde eu arranjava todos aqueles machucados. caí, mentia. e roubava batatas da janta para dar-lhe de comer

eu fazia isso: alimentava o fim.

até que ele escapou. e me prendeu na caixa em seu lugar.

(quem escreve isto é o fim que foi. e não o que ficou prendido na caixa. assim funciona.)

sai sozinha embora pudesse ter dado a torta a algum vizinho

tinha um histórico na família. o pai se matara. o avô também. a filha, muito cedo se atirara da janela. houve burburinho e comoção no horário nobre. mas logo se confirmou, para alívio de todos e desespero da mãe: havia sido suicídio, não assassinato. saída do banco dos réus, a mãe ficou um mês sem sair de casa. não tinha mais ninguém pra se importar. chegou a pegar facas venenos persianas várias vezes, mas nunca alcançava. eu não te alcanço. dormiu e sonhou com um subsolo muito luminoso, onde viviam flores belas escondidas, sufocadas no próprio aroma.

este aroma. agradável, tão gostoso. encerrado na caverna.

eu não saberia o que fazer. fiz uma torta. senta-se, faca afiada nas mãos, e talha um pedaço que tira e come sem sabor. está deliciosa. ela está apta para isso, para sentir as delícias, mas não em condições de saboreá-las. escondeu as fotos de família no mais fundo e lembra delas, proibindo-se de acessá-las. e agora, o que eu faço? lava a louça, guarda a torta. e põe os pés pra fora. do batente, da porta.

não me arranquei dos meus passos. sigo caminhando.

6.8.11

depois lá fora o fim se abre

esses segredos de açúcar, atalhos cobertos. um apartamento silencioso na cidade mais barulhenta do hemisfério sul. olho da janela para baixo e vejo tigres. um monte, pelas ruas. li em algum lugar que não andam em bandos, o tigre solitário, de los llantos, mas se excede em população, ontem quase extinto e hoje explode espelhos tigres tigres tigres pelas ruas. quando têm fome, matam e comem. eu queria sair para dançar, mas não quero ser comido. é sábado à noite e eu não tenho pra onde ir. ontem cheguei a istambul. estamos no ramadan e pela tarde não há ninguém na rua. ninguém fala a minha língua e eu a língua de ninguém. ontem, não cheguei a lugar nenhum. já estou chegado e isso me põe num impasse: o único movimento possível é dar voltas em torno de mim, sem canseira. entediado planeta terra, cheio de tigres que montam cerco nas pessoas.

comprei um pote de doce de leite e uma garrafa de cerveja. também há pão e carne. nunca pensamos certo quando dizemos "suprimentos". pro caso de uma bomba, do apocalipse zumbi, de ataques tigres. me vejo com a comida e esse espelho grande da sala e não tenho o que fazer. é certo que ninguém prometeu luxo em tempos de privação. busco o luxo em mim e não encontro. sou muito pobre.

se avolumam, o espaço é todo deles, e um carpete listrado cobre as calles porteñas. olho pra minha pele e não tenho listras, e não tenho selva.

é noite. os tigres são animais noturnos.

e a noite ruge.

- - -

porque não sei, me torno tigre. eles me veem e pulam sobre mim. mastigam, engolem, acabou. amanhã não tem mais. perdi a cauda e os caninos. mas desci pra rua. antes, a história é assim: desci pra rua e abri a porta. o primeiro cheiro de sangue foi sentido após três quadras. eu já não existia, apenas caminhava pela rua envolto em tigres. mas um deles me percebeu. e pra ele eu existi. morde, mata, eu grito, imagino, deve doer ser tão comido. mas logo e todos os outros. eu cri e não fui e já não tenho. a prefeitura amanhã fará com água e pá que eu suma. nas barrigas dos tigres ando sumindo.

5.8.11

era uma vez a morte

a mãe queria fingir que não entendia. mas era tudo claro. claro, é tudo escuro. "eu quero morrer". lucidez demais pra tenra idade. a muito custo tenho o tenro. pego um martelo de carne. enquanto bato, tenho em mente: boi é morto, boi é morto. depois fritamos e comemos. está bem macio, percebe? a vida assim: carne dura de galinha velha, bife mole se bates o martelo. a criança tinha cinco, talvez seis anos. e era dura como um bicho vivo: "eu quero morrer". e a vergonha de dizer a alguém? mãe solteira, coordenadora pedagógica de uma escola particular, de gente muito rica. aqui o escritor da história poderia, se soubesse, dizer que a mãe dá várias explicações piagetianas pra sentença da filha. mas o escritor não sabe nada sobre piaget. sabe muito pouco sobre as coisas. e não acredita nos dados. porque os dados não acreditam nele. tanto que começa a escrever de si na terceira pessoa. "mais uma prova", pensa, cartesiano, "de que eu não existo". já a criança não tem desses luxos. quer, porque quer, porque quer morrer. eu lhe digo "então por que não se mata?!" e a menina me fica olhando como se fosse um gato. como se eu e ela fôssemos gatos. talvez sejamos. menos a mãe. a mãe está demais preocupada em entender as coisas. embora viver ultrapasse, como sabemos, qualquer entendimento. dois gatos nos olham, a mim e à menina, indiferentes a tudo. mas nos olham. sem curiosidade, mas nos olham. "eu quero morrer", a peste repete. a mãe chora de noite, baba no travesseiro e agudiza "eu não sei o que fazer". agora me dei conta que o mundo é cheio de pessoas dizendo: "eu". e continuam as frases. imagino uma tribo em que a palavra "eu" não exista. quem sente dor olha para a pessoa mais próxima e diz: "você sente dor". pronto, já se entendem. trazem bálsamos, trazem presentes. fazem um mimo e, pronto, você não sente mais dor. a menina não sabe disso. eu olho em volta e não consigo deixar de ser eu. pulo da janela. morri eu. enterram eu e choram eu. passam os séculos, passam milênios, sabe lá o que vai ser dos ossos duros que eu deixo. lá no futuro, em algum arquivo de memória do passado, eu ainda vou ser eu. porque não nasci nessa tribo e, não tendo nunca não sido eu, sido apenas você, digo "eu" e "eu" paira sobre as águas, eterno, como o espírito de deus.

"eu quero morrer". por que não se mata?! os olhos da menina me segredam: ela não existe. acordo assustado pra história que eu mesmo inventei. se alguém não me parar, logo eu me perco. e, não tendo talento pra ser além de mim, estarei perdido para sempre. de mim, de quem for. olho pro espelho à minha frente e assustado percebo: eu nunca vou poder ver meus olhos. quando criança, eu queria arrancá-los, porque me dava aflição perceber que os outros - eu ainda não tinha percebido que eu também era os outros, como ainda agora não percebo - que os outros nunca poderiam ver seus próprios olhos como eu os via. isso, pra mim, era incompreensível.

a mãe agora entreabre a porta do quarto da filha. a menina dorme, sem fala. e, na verdade, nunca disse nada. porque não existe. mas a mãe sente que fracassou. e, à vista do gato, que não se importa, ela chora, e pula da janela, pra acabar com esta história.

porque eu era labirinto

meus últimos dias passei com uma
turca que se ia deixando todos tristes
importei um silêncio direto de istambul
não conheço istambul, não falo turco
o silêncio chegou numa caixa bonita
sem selo do ibama, contrabando de animais
selvagens

aqui não tem ibama. passei
os últimos dias onde ninguém fala a minha língua
parece que vim pra cá justo pra esse exílio
não ter que dizer o que não tem pra dizer
entrar no blogue escrever as palavras superfície
depois eu volto pro estrangeiro e não sou mais
escritor, não sei nada da turquia, só que
a turca causa mais comoção do que eu na
cidade natal

às vezes eu me surpreendo com a descoberta
de que não existo. essa toda a aventura da
burguesia nos últimos séculos, "eu não
existo"

aqui não tem descartes

tem um vaso quebrado, vazio. tem eu não sabendo nada
da turquia nem de nada. tem o aquecedor ligado
e litros de cerveja. vou fazer uma historinha.

era uma vez agora. era agora. aí o cachorro esqueceu o corpo dele num canto. quando se deu conta, olhou e não podia mais voltar pro corpo. então deu um nome pro corpo. falou: rex. o rex se levantou abanando o rabo, língua de fora, era uma graça. aí o cachorro seguiu andando sem corpo e o cachorro era uma gente. de pessoa, digo. ficou assim: era uma vez um homem e seu cachorro-corpo rex. esse homem era eu e eu não tinha um cachorro. mas eu não existo. só em algumas frases. então fica assim: era uma vez um cachorro sem dono. seu nome poderia ser rex, se ele tivesse um dono. eu estava do outro lado do continente, deitado num sofá pensando no inevitável que é o corpo. isso porque me doíam os joelhos. do dia em que saí pra passear com meu cachorro e ele deu um puxão, eu caí e ele se foi. de coleira arrastada pra rua, pra debaixo das rodas de um caminhão. voou sangue e cérebro de cachorro pra tudo quanto era lado. um cachorro morto não é mais um cachorro. era uma vez um caminhão. era uma vez a morte. era uma vez eu passando frio, e liguei o aquecedor. agora estou sentado à mesa. agora. agora. agora

3.8.11

Tudo se vai

e eu só perdoo porque veio.


(Bento Nascimento)