26.6.11

cinderela

sem que ninguém perceba. a mãe, velhinha, em casa. ele abre a porta, a irmã o irmão ninguém ajuda. agora, vai buscar o amor. que conheceu num chat, tem vinte e dois anos e parece um bom menino. ele tem quarenta e cinco e mora com a mãe pra cuidar dela, trabalha pelo menos treze horas por dia, tem uma agência de viagens, comprou um carro importado, mas foi à custa de muito trabalho. e quer um amor. quem não quer? pode ser agora.

"pode ser agora" é assim: você tem dez anos de idade e está voltando da escola. vê um gato no caminho. o gato te vê e finge que te quer. gaiatos. com malabarismos de desejo e rezando pra que deus faça o gato te querer de fato, você consegue que o gato chegue, atrás de você, até a casa, e então diz pra mãe "ele me seguiu!" e quer ficar com ele, essa promessa a quatro patas. a mãe ralha, diz que tem nojo e te põe pra dentro. sem o gato. que vai embora como se não te conhecesse.

preciso ser mais enxuto: no dia seguinte, um segurança o encontrou desacordado no estacionamento de um prédio. ele ficou quinze dias em coma. o médico disse pra irmã "que é uma droga comum entre homossexuais" e a irmã, preocupadíssima com a saúde frágil da mãe, contou tudo pra ela, que o filho era bicha, que tinha sido roubado, que punha em risco toda a família, e que ela não queria ter de causar esse desgosto para a mãe, ainda mais na idade da senhora, mas que ela também não poderia esconder tudo isso, porque é muito sincera e não gosta de mentiras.

a história toda deveria ser, sem tantos rodeios: que ele é um homem medíocre e covarde. vai continuar morando com a mãe, porque precisa cuidar dela, ninguém ajuda, a mãe vai fazer voz chorosa cada vez que ele for sair de casa, embora agora ele se cuide, não vai fazer besteira, tomar bebida que um estranho bom rapaz lhe oferece, se encontrar em qualquer lugar que não seja público, à vista de todos. "porque eu pago as minhas contas", ele diz, com empáfia. e paga. inclusive as dívidas do roubo. e mesmo depois de tudo isso, agora ainda com mais medo, ele continua querendo um amor. e eu não quero? ele termina de contar a história e nós nos vestimos, eu com um nojo desse brilho no olhar dele, dessa empáfia, desse medo que espera - "pode ser agora" - e paga a conta e vai embora.

Um comentário:

  1. que lindo isso. que construção singular. uau.
    nego, isso parece um desfile de alta costura.
    parabéns.


    marcadores: {prosa que dá prêmio}

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