5.6.11

eu estava indo com meu pai e meu irmão, era de noite, pra padaria comprar sorvete, esqueço sempre que tive alegria com meu pai, tão raras vezes, a maioria delas relacionada a doces, meu pai amava os chocolates, era noite quente e nós íamos juntos e eu ia falar algo e um mosquito entrou na minha boca, eu que nunca falava nada, ok estou fazendo pose de coitadinho, na verdade estou tentando um toque trágico, fiz uma consulta astrológica esses dias que me lembrou de tudo, do meu pai, do frio, do açúcar, agora do mosquito, desse bueiro de amor que eu sinto, meu pai deu risada e acho que segurava minha mão, acho que não, não lembro da mão dele, lembro da pele fria em estado de coma, meu pai meu picolé, era um homem lindo, hoje vejo minhas fotos e nas que tenho barba me pareço tanto com ele, arrepio, no ônibus voltando da casa dos meus avós, pais dele, me veio um verso, quis começar uma narrativa com "meu pai era inverno", associá-lo à uma estação do ano, eu de dedos gelados no fim de outono paulista, mas quando cheguei e me pus a escrever, bem, é como se um mosquito tivesse entrado na minha boca, e meu pai risse, divertido, não tanto pra eu me sentir mais constrangido do que o que já sentiria se ele não risse, se ele não notasse, "engoliu mosquito?", mas eu cuspi a tempo, a luz da padaria iluminando a calçada, mais dez passos e subiremos o degrau, o atendente é um homem grisalho que por muito tempo eu desejei, ao lado dele tem um cartaz de "precisa-se de atendente" que ficou lá mais de dez anos, eu sempre ensaiando pra quando chegasse a idade de ser contratado e desejado pelo homem grisalho, depois meu pai morreu, eu consultei a astróloga, fui visitar meus avós, os pais dele, voltei de ônibus, quis escrever um texto, não consegui, agora estou trabalhando, domingo à noite, dedos gelados, depois eu bebi um gole de água, e uma cerveja, depois eu estou aqui e tem um monte de coisa acontecendo e acontecida que eu não sei como escrever, nem hierarquizar, já mencionei que estou sozinho? e que meu pai morreu?

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