27.6.11

"arrisca tornar-se irrecuperável, desaparecer, toda imagem do passado que não se deixe reconhecer como significativa pelo presente"

(do Haroldo de Campos, Metalinguagem & outras metas, talvez um texto sobre tradução, a partir de W. Benjamin)

Ítaca

Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

(K. Kaváfis, via J. P. Paes)

26.6.11

rotina do incêndio

como escritor, deixei de ser escritor

tenho botado a culpa na cidade de são paulo

os mortos não se defendem, então

são paulo é um fóssil vivo do futuro

o mais difícil é não sentir desprezo

o dia em que eu escolher o cinismo, vou precisar de uma bomba
um flit paralisante qualquer

...

o blogue é uma oficina

eu nunca quis meus diários abertos, jogados pela casa

o blogue é uma praia, eu fico nu e deitado

...

preciso achar, imagino, uma ternura

e uma força destruidora

ao mesmo tempo, amigas

e rivais

...

o pior tempo é o da espera

as línguas que conheço não têm um tempo verbal para isso

nomear seria um conforto, um descanso

um tempo verbal que conjugasse "ser" em "não saber"

...

rotina do incêndio

queimar todas as pontes de regresso

queimar todas as partidas

queimar queimar queimar

burn baby, burn

cinderela

sem que ninguém perceba. a mãe, velhinha, em casa. ele abre a porta, a irmã o irmão ninguém ajuda. agora, vai buscar o amor. que conheceu num chat, tem vinte e dois anos e parece um bom menino. ele tem quarenta e cinco e mora com a mãe pra cuidar dela, trabalha pelo menos treze horas por dia, tem uma agência de viagens, comprou um carro importado, mas foi à custa de muito trabalho. e quer um amor. quem não quer? pode ser agora.

"pode ser agora" é assim: você tem dez anos de idade e está voltando da escola. vê um gato no caminho. o gato te vê e finge que te quer. gaiatos. com malabarismos de desejo e rezando pra que deus faça o gato te querer de fato, você consegue que o gato chegue, atrás de você, até a casa, e então diz pra mãe "ele me seguiu!" e quer ficar com ele, essa promessa a quatro patas. a mãe ralha, diz que tem nojo e te põe pra dentro. sem o gato. que vai embora como se não te conhecesse.

preciso ser mais enxuto: no dia seguinte, um segurança o encontrou desacordado no estacionamento de um prédio. ele ficou quinze dias em coma. o médico disse pra irmã "que é uma droga comum entre homossexuais" e a irmã, preocupadíssima com a saúde frágil da mãe, contou tudo pra ela, que o filho era bicha, que tinha sido roubado, que punha em risco toda a família, e que ela não queria ter de causar esse desgosto para a mãe, ainda mais na idade da senhora, mas que ela também não poderia esconder tudo isso, porque é muito sincera e não gosta de mentiras.

a história toda deveria ser, sem tantos rodeios: que ele é um homem medíocre e covarde. vai continuar morando com a mãe, porque precisa cuidar dela, ninguém ajuda, a mãe vai fazer voz chorosa cada vez que ele for sair de casa, embora agora ele se cuide, não vai fazer besteira, tomar bebida que um estranho bom rapaz lhe oferece, se encontrar em qualquer lugar que não seja público, à vista de todos. "porque eu pago as minhas contas", ele diz, com empáfia. e paga. inclusive as dívidas do roubo. e mesmo depois de tudo isso, agora ainda com mais medo, ele continua querendo um amor. e eu não quero? ele termina de contar a história e nós nos vestimos, eu com um nojo desse brilho no olhar dele, dessa empáfia, desse medo que espera - "pode ser agora" - e paga a conta e vai embora.

24.6.11

cansadas de esperar pela chuva, as árvores saíram buscar água.

algumas não: se esticaram até aos lençóis freáticos.

que cobriam o fogo da terra, a luz do mundo, e se escondiam.

o atrito fez nascer escamas. já ninguém me toca.

e depois de muitos e muitos anos, aprendi a viver também na água.

assim, podia escapar dos incêndios da floresta.

almoço os antílopes que descansam na beira do lago.

aí, cansado de ser sozinho, o crocodilo resolveu buscar abrigo.

moral da história: hoje pula galho em galho.

acho que perdi alguma coisa aí nessa história da evolução.

o que foi que eu perdi?

Vasco

E batia-me ao encosto e ao virar-me nada via e jurava-lhe morte, mas como?, estás a estar morto mas é já? E as lâmpadinhas não acendiam e a aeromoça nada que cá vinha, e eu pedia a nossa Senhora, que a mim sempre foi uma gorda roliça e não a rapariga magrinha, faz favoire, que não seja o andante um fantasma que caminha a assombrar a cabina, e que Deus permita dizeres a verdade senhorinha, que amanhã ao abrir a janelita não encontre alga em lugar de nuvem, espesso abismo turbulento, que não esteja eu a ver bobagens, monstros vermelhos, cíclopes alagados, dragões a rogar fogos de promessas, fortunas pelas ventas, venha, minha Senhora, me recompensar esta vida de tormentas.

(Júlia de Carvalho Hansen)

22.6.11

turquia

tá logo ali
DESCANSO

Era uma vez uma reportagem sobre
uma praia desabitada na Austrália
onde os rios continuavam no mar.
Uma praia bem desabitada mesmo,
nem o vento nem as ondas davam as caras.
E os rios turvos gozavam de muitos
metros mais até decidirem a hora de
misturarem-se ao todo.

É isso que peço a você. Esse gozo.

E o crocodilo marinho encontrará um
caminho no paredão azul

e nem a poesia há de me alcançar.

(Enzo Potel)

mais longe é o meu coração

é uma grande viagem
esses jogos de vontade
os peregrinos chineses que ficam andando de um lado pro outro
os primeiros europeus que chegaram à china se assombraram
que todo o império, qual hoje os carros, era traçado de calçadas
estradas caminhantes que levavam toda parte

e eu aqui, comprando passagem

minhas pernas não levam
esse peso essa preguiça
e tropeçam na vontade

outra coisa interessante sobre o império da china
é que navegaram muito antes que todos pelo mundo todo
deram a volta e os primeiros aviões eram chineses
e os foguetes, mas tudo inundado no tédio
de não encontrar nada tão deslumbrante quanto eles
o imperador disse aos navios "me tragam tudo de bom que encontrarem"
as do mundo maiores maravilhas
e vieram nos navios girafas elefantes
tatus sucuris tuataras e preguiças
os navios levaram o brad pitt, levaram montgomery clift
levaram o meu coração desidratado
e as cataratas de iguaçu

o imperador fez tudo desfilar
ao final concluiu
"é isso o que o mundo tem de melhor?
então podem ficar por aqui, não carece mais sair"
"ai" como se fosse um grande perigo, "ai" a língua entre os dentes e os dedos nas pernas, "o que é que você tá fazendo?" e uma cabeça inclinada, como se tivesse medo do amor e ao mesmo tempo o quisesse, mas nada. no dia seguinte eu peguei um táxi e bolinei o taxista. era um dia cinza e ela me falou que adorava a cor do dia. vimos um casal de namorados abraçados debaixo da chuva, andando mornos como se fizesse sol. depois tomei tantos banhos que não tenho mais cheiro nenhum no meu corpo. como se não houvesse perigo algum, nunca mais nos vimos. uma piscina coberta com uma lona azul. chove por acaso, a lona rasa de água, a festa pensa "oba a piscina está cheia". se tira a lona logo vê: a piscina está vazia. mas não há nenhum perigo. "ai" eu x agarrei pela nuca e aquele encontrão dos corpos separados. diário das coisas que não acontecem. "ai"

21.6.11

são paulo é uma cidade que me faz mal

eu tenho um segredo

não quero saber

mas eu não posso te contar

não quero saber

porque, sei lá, eu sinto que se eu te contasse

não quero saber

você não me entenderia

não quero saber

ou então, sei lá, daria risada de mim

não quero saber

não que seja nada humilhante

não quero saber

mas é que eu gosto muito de você

não quero saber

e tenho muito medo, sei lá, sei lá né

não quero saber

por isso, sei lá, você entende, né

não quero saber

que eu não posso, por mais que goste de você

não quero saber

eu não posso te contar o meu segredo

20.6.11

o que você acha do futuro democrático do Brasil?

oi, você

telespectadora, você aí de casa

que DEUS ilumine seu dia com muita alegria, com muita felicidade

hoje, a gente vai aprender uma receita deliciosa

que vai te deixar com diabetes!

ontem a gente aprendeu uma receita deliciosa pra deixar com hipertensão!

hoje, é diabetes!

hummmmmmm

você que tem artrose e não pode sair da cama

você que tá assistindo a gente do hospital, do orfanato, da prisão

as nossas amigas internautas!!!

olha, gente, queria muito agradecer vocês o CARINHO que a gente tem recebido

eu e toda a produção

a gente tá aqui todo dia, nesse mesmo horário, pra fazer VOCÊ feliz

porque, a SUA alegria, é a NOSSA alegria

e hoje vai ter muita coisa gostosa aqui pra gente curtir bem juntinho

então NÃO SAI DAÍ, porque a gente volta logo!

logo após o intervalo comercial

na ida

aí os ossos começaram a se encostar. em mim. eu percebia "tenho ossos" e me dá muita aflição pensar a coisa dura e pontuda em contato com a carne. os ossos são rudes e a carne é uma donzela. estou atento. se deixar, meu corpo pode se violentar a si próprio. não gosto da violência e ralho com os ossos, mas eles são valentões e é melhor eu ficar quieto.

ninguém em volta percebe. não sei qual a melhor opção. agora, entre outras coisas, sinto vergonha do que pode acontecer. minha carne veste minissaia e os ossos acham que podem mexer com ela. não gosto nada disso.

mas acho que eles não vão brotar pra fora de mim, me furando e me transformando numa coisa diferente. eu sou muito racional e acho que eles não fariam uma bobagem dessas.

borges e eu

acordei com uma conversa na sala. uma das vozes era da minha amiga, que mora comigo. a outra eu não sabia de quem. fiquei um tempo na cama, cheio de preguiça, o sono preso nos olhos. era um homem que conversava com ela. "que voz esquisita", pensei, mas como era manhã e eu gosto de homem, e a voz também era bonita, meu pau endureceu. "agora é que não levanto", pensei, porque a ereção pode ser muito rude. ainda mais com um desconhecido. a voz era familiar. é do R***? não. do A***? também não. meu pau não baixava. comecei a pensar em coisas aleatórias, mas meu pau me boicota. a porta do quarto estava entreaberta e a voz era muito nítida. "parece a minha voz", pensei, lembrando de gravações que ouvi comigo e que tem um lance de o crânio funcionar como uma caixa acústica que distorce, quando a gente fala, a voz que os outros ouvem. e sempre que a gente se ouve em gravação, acha muito feio. não é feio, mas é que estamos muito acostumados com uma voz que achamos ser a única que temos, mas pros outros ela é outra. fiquei muito curioso e resolvi levantar. consegui disfarçar o pinto, lavei o rosto, ele deu uma amolecida e com jeitos de corpo, disfarçando que me espreguiçava, fui pra sala. agora pensei em jorge luis borges tendo ereções. porque o final do conto quer emulá-lo, mas os pintos não se emulam. o corpo se entedia com a gente e quer ir embora. falei bom dia para a minha amiga e para o homem que conversava com ela, que era eu mesmo. "por isso não reconheci a voz", concluí, e ainda tinha muito sono. elxs me cumprimentaram e continuaram conversando. tinha café. eu, com a voz da minha cabeça, enchi uma xícara e tomei. enquanto eu, com a voz dos ouvidos dos outros, falava alguma coisa sobre um homem que não me queria. "será que estou falando de mim?", pensei. mas acho que não, porque tenho pensado muito no espiritismo e em certas besteiras do oriente que dizem: cessar de ser um eu. com outro gole de café, comecei a pensar de novo no pinto do borges, é uma distração que tenho, pensar nos pintos dos homens famosos. e me sentei um pouco longe deles, para esconder de novo a ereção.

prefácio do tsunami

você nem vê vindo, mas de repente

as suas entranhas todas remexidas

hoje é bem mais difícil

uma coisa me pegar de calças arriadas

das leituras adolescentes, guardo as piores lembranças

que são as que valem a pena

no amor, em compensação, só agora me sinto bem

e é dos amores recentes que digo o melhor

diário:

uma dorzinha de garganta. o frio entra e toma conta. visto camiseta listrada e de novo não vou voltar pra casa. não tenho casa. posso dizer assim: "não tenho pra onde voltar, só pra onde ir". eu digo sempre as mesmas coisas. mas cada vez é diferente. como agora posso dizer: nossa, faz anos que não escrevo. sendo que outro dia mesmo (talvez ontem) encontrei novas palavras que fizeram história.

acabei de assistir o filme do clint eastwood sobre vida além da morte. é muito ruim e muito pobre. então pensei em responder à pergunta: o que acontece depois que a gente morre? lembrei agora que escrevi um livro sobre isso pra crianças. que que eu faço com esse livro?

querido diário,

não tenho muito o que contar. de tanto desperdiçar energia elétrica e horas sem sono, vamos acabar encontrando alguma coisa muito linda. vai ter valido tudo. vou ser um autor postumamente respeitado. a grande guerra vai debilitar o mercado editorial e as universidades falarão de outras coisas, talvez mais importantes.

hoje não tenho vontade de lembrança. vou inventar um futuro. assim: depois que a gente morre, descem ao planeta cinco dragões

o dragão de fogo
o dragão de jade
o dragão de comodo
o dragão virginal
e o que foge de são jorge

vêm à terra encontrar o milenar dragão chinês

segundo o espiritismo, os chineses são o povo mais antigo da terra. a primeira essência humana. vinda de outra raça de hominídeos, a do homem de pequim. está tudo documentado pelos arqueólogos e videntes.

os dragões sobrevoam a floresta amazônica e acham muito lindo
aquele infindo verde

sem interesse em saberes enciclopedais, muito menos nas palavras
os dragões sobrevoam o planeta em todas as direções

o chão ecoa seus corações vivos

19.6.11

a vertigem amorosa

um dia, o mar começou
a se retirar dos litorais

mar resignado

um dia, o mar começou
a se retirar dos litorais

a gente se perguntava "praonde vai o mar?"
o mesmo acontece com o meu desejo, que
se retrai da praia, movimento único das ondas
em direção a um centro que é nada. aonde
vai o meu desejo? também não sei.

uma coluna de água em cada oceano
subindo aos céus. cada país ganha infinitos
quilômetros de terra nova. descobrem os
inimagináveis fósseis guardados no grande
caixão.

tal como o profeta elias, o mar foi arrebatado
vivo em uma carruagem de fogo para longe
de nós.

a besta-fera dos desertos então tomou
essas novas planícies e os cânions. um vento
abandonado uivava sem matilha. tudo no mundo se fez
sal e neblina. e o espírito de deus já não tinha mais
onde pairar

o rei de ouros

alguma coisa falta. os quatro pés da mesa. eis: a mesa em pé. é um equilíbrio conseguido a duras custas, exercícios lógicos e muito tempo de evolução.

na mesma época, foi criado o homem vertical. ele está aí, ainda hoje, quando não se deita. meu homem é um eixo que estabiliza o mundo. eu sou meu homem / vejo de longe, quero ser. por isso tenho a cabeça pra cima e os pés pra baixo.

outro dia, esqueci o que era "cima e baixo". demorei para sair da cama. o quarto rodava ao redor da minha cabeça. bateram na porta, eu não estava. "deve ter saído", pensaram. e foram embora, me deixando sozinho e ignorante.

as pessoas desceram as escadas e entraram na rua. numa padaria, cada uma pediu uma coisa. algumas pediram coisas iguais, outras pediram coisas diferentes. a vida é assim.

assim, assim. enquanto isso, eu soletrava pra mim: "assim... assim...". aquilo me deu uma vertigem e até agora estou sentindo enjoo. depois, o corpo reaprendeu sozinho as leis gravitacionais. "nos quitaron la justicia y nos dejaron la ley", eu vi escrito num cartaz.

a lei da gravidade não é justa?

fiquei sem saber outra vez. agora eu levantei, mas caí. decido esperar mais um pouco. brinco de soletrar outra vez: "isaac newton". vejo o meu homem, na minha imaginação, cruzando a rua: vertical, passageiro. tenho enjoo.

as pessoas, cada uma foi pra sua casa. outro problema que tenho é olhar em volta e pensar "gente, eu tenho casa?!". qualquer dia morro de espanto.

vou contar só mais uma coisa, e depois dormir. se eu morrer durante o sono / bem, se eu morrer, desejo o melhor pra vocês. eu quero morrer, mas tenho medo. também tenho muita vontade de viver, mas tenho medo. como com medo não se faz nada, mando o medo à merda, mas não me decido. às vezes acho que já morri. ou que isso nem existe. o que eu ia contar, mesmo? é muito importante: que perdi a contagem dos números. precisei escrever "2009", o ano, e isso me pareceu absurdo.

tudo é muito absurdo.

graças a uma justiça sem leis, tudo uma hora cansa. cidade, ó cidade: se canse também. ó mundo, ó fim. (será que já consigo levantar?)

a força

alguma coisa falta. os quatro pés da mesa. eis: a mesa em pé. é um equilíbrio conseguido a duras custas, exercícios lógicos e muito tempo de evolução.

na mesma época, foi criado o homem vertical. ele está aí, ainda hoje, quando não se deita. meu homem é um eixo que estabiliza o mundo. eu sou meu homem / vejo de longe, quero ser. por isso tenho a cabeça pra cima e os pés pra baixo.

outro dia, esqueci o que era "cima e baixo". demorei para sair da cama. o quarto rodava ao redor da minha cabeça. bateram na porta, eu não estava. "deve ter saído", pensaram. e foram embora, me deixando sozinho e ignorante.

as pessoas desceram as escadas e entraram na rua. numa padaria, cada uma pediu uma coisa. algumas pediram coisas iguais, outras pediram coisas diferentes. a vida é assim.

assim, assim. enquanto isso, eu soletrava pra mim: "assim... assim...". aquilo me deu uma vertigem e até agora estou sentindo enjoo. depois, o corpo reaprendeu sozinho as leis gravitacionais. "nos quitaron la justicia y nos dejaron la ley", eu vi escrito num cartaz.

a lei da gravidade não é justa?

fiquei sem saber outra vez. agora eu levantei, mas caí. decido esperar mais um pouco. brinco de soletrar outra vez: "isaac newton". vejo o meu homem, na minha imaginação, cruzando a rua: vertical, passageiro. tenho enjoo.

as pessoas, cada uma foi pra sua casa. outro problema que tenho é olhar em volta e pensar "gente, eu tenho casa?!". qualquer dia morro de espanto.

vou contar só mais uma coisa, e depois dormir. se eu morrer durante o sono / bem, se eu morrer, desejo o melhor pra vocês. eu quero morrer, mas tenho medo. também tenho muita vontade de viver, mas tenho medo. como com medo não se faz nada, mando o medo à merda, mas não me decido. às vezes acho que já morri. ou que isso nem existe. o que eu ia contar, mesmo? é muito importante: que perdi a contagem dos números. precisei escrever "2009", o ano, e isso me pareceu absurdo.

tudo é muito absurdo.

graças a uma justiça sem leis, tudo uma hora cansa. cidade, ó cidade: se canse também. ó mundo, ó fim. (será que já consigo levantar?)

17.6.11

órbita abandonada

e diz que há planetas que não orbitam
nem imagino, ou como os astrônomos chegam a tais
conclusões

que ficam escuros e sozinhos no espaço infinito,
sem estrelas, talvez sem lua

irmão elefante sem manada:
te habitamos, solidários

a descoberta do mundo

agora
tenho dois hemisférios no corpo:
sempre alguém dormindo, sempre
alguém acordado. dei pra esse talento
bipartido. com sorte e persistência, até
o fim da vida (estará longe?) crescerei
meridianos, farei trópicos, um
equador no coração

não sei o que fazer
com os números que tolhem a passagem
do tempo. ficarei girando em
órbita abandonada até que algum
meteoro mate tudo o que há em mim

atmosfera sulfúrica, vida ausente
e o que será dos continentes?
um giro solto, um piparote,
mas dia e noite?

hino nacional

nos melhores desejos de que o crescimento econômico do país
se afogue na represa de belo monte, o curso dos rios desviado,
o sangue nas pantufas dos militares, as necessidades ancestrais
dos indígenas seriam muito melhor plano de governo, ficaríamos
todos sentados embaixo das árvores, enterraríamos vivos os nenéns
nascidos gêmeos, supersticiosos não ousaríamos olhar nos olhos
do bicho-preguiça, do macaco-aranha, mais poderosos do que a gente.
desejo também uma pobreza extrema nas alegrias. a raiva que eu tenho
bem poderia inundar a cidade e os fornos de micro-ondas, os ferros
de passar nas tomadas eletrocutariam a nação. mas minha raiva não pode
mofar, sozinha, o palácio da alvorada, o palácio dos bandeirantes

em portugal eu subi até o topo de um castelo de pedras e vi
escorrendo pela montanha o sangue de quinze séculos

mas aqui as estradas são novas. não temos vulcões nem terremotos
que destrocem as casas. a natureza é muito boa. o inferno verde da
amazônia facilmente cede lugar a bois mansos e entediados. os peidos
dos bois agravam o efeito estufa e assim ficamos quentinhos, gostamos
muito do calor. a raiva que eu tenho bem poderia fazer churrasco de
ministros e mães, da presidenta, carvão e petróleo assando os
helicópteros e os cristãos. falando assim, minha raiva até parece
selvagem. mas o que de pior a europa nos legou foi a civilização.

eu faria uma usina hidrelétrica sobre toda a europa. me mudaria para o sul
dos estados unidos e plantaria milho. ganharia o nobel por renovar a prosa
do mundo e me mataria em homenagem ao deus asteca. explicado tudo isso,
percebo porque existo tanto no futuro do pretérito. uns versos é só
o que tenho / enquanto não me junte às foices do movimento dos trabalhadores
sem terra / enquanto não seja eleito pessoa inelegível. o que posso fazer
é oferecer outra história pra essa gente. não falemos a língua delxs.
comecemos

16.6.11

o livro das revelações

não tenho mais o que escrever sobre as órbitas e os vulcões. a não ser que continuamos orbitando / e correndo o risco da erupção. de dentro do apartamento, tudo isso parece bastante improvável. a cada cinco minutos, um helicóptero movimenta o horizonte de são paulo.

preciso criar novas histórias de catástrofe. começo assim: sem aviso, um dia, fugiram todas as aves. o deus da ira criou um corredor de nuvem e sementes entre o vácuo do universo e levou de volta os inocentezinhos ao primeiro éden, alados. morcegos, insetos. os aviões que tentavam entrar no túnel eram esmagados pela pressão divina.

é uma desgraça que seja esse o deus verdadeiro, alguém disse.

mas era. ninguém contorna as desgraças.

a grande catástrofe são os céus limpos. nenhum avião decolava, os helicópteros caíram. ficamos assim por muitos e muitos e muitos anos. eu morri (tive uma vida linda, obrigado) e meus filhos e meus netos, a quinta e trigésima gerações. deus apagou os registros das asas, pterodáctilos se esfarelaram nos museus, nenhuma ilustração. quando alguém, de memória incauta, tentava dizer "que se voa" sua língua se transformava em cinzas, ele era levado com sua casa para os pés da colina e soterrado em pedras, assim ordenou o senhor teu deus.

"é uma desgraça que seja esse o deus verdadeiro", alguém continuava dizendo.

dizer isso era permitido. já que não se podia fazer nada.

mas, como dizem, nenhum pássaro cai do céu sem que deus assim queira. e ele tinha um plano. passados duzentos, trezentos anos, os anjos do Senhor desceram dos céus com suas trombetas, causando espanto maravilha e desespero em quem não sabia mais do que a vida rasteira. trouxeram ouro, mirra e incenso / e toda a gente assomou à praça, como se fosse inevitável.

(eu ensaio agora um amor. evitam tanto o amor. os anjos de deus nem se dão ao trabalho. nas cobertas, neste quarto, meu amor não vamos à praça. teus cílios parecem asas)

um a um, a lâmina sagrada cortava o pescoço a toda a gente. eram anjos terríveis, suas caras de espelho não conheciam piedade. oceanos vermelhos sobre a terra.

em recompensa, o deus da guerra legou o planeta aos anjos justiceiros. e trouxe de volta as galinhas, as libélulas, escuros morcegos. no oitavo dia, criou deus o avião e viu que era bom. finda toda a criação, despiu os anjos de suas asas e jogou-as no magma. hosana, hosana. e deus se aposentou.

14.6.11

caravela, língua além do mar

me encontrar estrangeiro no que eu tenho mais nativo
acho que foi a melhor descoberta que fiz em portugal

ideia fixa, mutável, cardinal

a história dos dinossauros. a história das pessoas que depois descobriram os dinossauros, e inventaram-nos, os ingleses no século dezenove e toda a europa assentada sobre séculos de pretensão. a história do fim da europa, do fim da minha família.

uma história do fim que não acaba.

"250 milhões de anos atrás" é uma abstração inapreensível, contornada pela linha do tempo. 1964 também.

a história do império chinês, que o primeiro imperador Qing fundou destruindo tudo o que estava escrito sobre o império chinês antes dele, há cinco mil anos atrás. E o primeiro Qing que ninguém viu, queimando tudo o que foi escrito na vida do Qing antes dele.

Os chineses foram os primeiros dinossauros e eu sou muito jovem.

Aprendi na escola sobre Aristóteles, que há não tanto tempo definiu: a matéria da história são as coisas que aconteceram; a da poesia, as que poderiam ter acontecido. Mais ou menos isso. Mas também li Walter Benjamin, e com ele aprendi que a história ainda não aconteceu. a poesia, sim.

como eu posso, no pequeno alcance deste tempo, deste corpo, como eu posso? e gigantescos répteis tornados pedra. e inapreensíveis assassinatos. e a minha carne mole e feia e leve.

ideia fixa, mutável, cardinal. um texto bússola.
anything I do sing is part of my life

(Billie Holiday)

13.6.11

lava que vem

mas me guarda um desejo fino, hiberna
nesses trânsitos de planetas lentos e
distantes, portanto frios

no grande catálogo do saber, descobri
que os animais mais resistentes do mundo
minúsculos ursos-d'água, sobrevivem até
dez dias no vácuo, e quatro meses sem
água, e dez anos inativos até que o
mundo os queira e eles renovam, acordados,
reproduzem com amor

vamos descobrir que a vida em saturno,
por exemplo, é diferente da que chamamos vida
aqui - que aqueles áridos desertos venenosos
têm uma ternura que mãe alguma é capaz de emitir
sinais radiativos, mortíferos gozosos
coração desconhecido dos nossos corpos

e a morte não era morte, e o fim não era fim,
e o vácuo estava cheio de ursos-d'água pacientes
universo infinito em eterna expansão
mistério do mundo. mistério à frente.

não sei se preguiçoso ou se covarde

a generosidade consiste em que hoje
havendo catástrofe também vejo pássaro

o mundo é muito bonito quando visto do lado bonito

despido entro num barco e
me despeço do que não for porto
em santos drogas e prostitutas
o lado feio vive nas ruas, sem
acesso aos bens de consumo

noticiário:
que ainda há radiação em fukushima
que outro ministro foi trocado
que se foi por pouco a frente fria

enquanto isso, no chile um vulcão
joga cinzas pedras e magma no sul do meu afeto
o centro do planeta me lembrando
o meu calor é muito pouco se comparado

não sou vulcão. também não provoco tremores.
e os versos são só por acaso. se insípidos,
muito isso não me importa. não sei ser.

de dedos gelados, garanto que
nos meios algo esquenta. brota da terra
a água térmica da cura. não prometo cura alguma.
eu sou calor.

vocação

informo, a quem puder se interessar
que eu sou uma plataforma de lançamento de foguetes
ontem a nasa ligou pra me alugar
e deus me apareceu em sonho, anunciando
não tenho tempo como humano
não sou gente, bicho ou planta
funciono muito melhor como lugar
a presidenta dilma rousseff, sabendo disso,
irá me convocar a servir ao povo brasileiro

carta ao povo brasileiro:
meu povo, minha pova:
eu sou de todos

o mundo então vai descobrir que não é mundo
que é foguete
as essências confundem muito a gente
você vai ver que tremenda economia de problemas
quando eu lançar pra outra órbita este planeta

uma plataforma pra decolar espaçonaves
com lenços brancos balançando: boa viagem

12.6.11

vincos

o país fica longe, aqui é uma ilha. os ingleses, como em toda parte, também aportam, trazem canhões espingardas e espelhos, um bigode bem à moda, o inglês faz como no Brasil e outros tantos com as negras da terra, mulher é posse, ela tem dezoito anos e pronto, expulsa de casa, dá o filho pra roda dos enjeitados, que o devolve, o bondoso amante inglês lhe arranja casa, acaba por reconhecer o filho, não se sabe da esposa inglesa desse inglês. a moça açoriana engravida outra vez e morre de tuberculose. o primogênito, criado por macacos europeus, adquire o gosto do saque e parte exploratório para a áfrica

os continentes desejados

o título deste post ia ser "as grandes paixões", mas eu perdi aí no meio, prestes a contar a história do bastardo inglês em iaca, todos os motivos da paixão. uma pobre moça iludida pelo amor, expulsa e amaldiçoada pelo pai que não a quer sem hímen. um rico e bonito moço, estrangeiro, que gosta dela quase como se gosta de um cachorro, e não é assim o amor no mais das vezes?, pois amamos muito os cães, e esse rico moço tendo que deixar seu amor ser amaldiçoado e cuspido na rua, enquanto seu outro amor está em casa, ressentido da amante, não é uma rival, e lá o amor tem rivais?

mas cheguei na história do órfão bastardo que foi chamado pela coroa portuguesa a atestar a presença dessa grande ruína imperial europeia no interior do continente africano, a fim de justificar a ligação territorial entre angola e moçambique, coisa que ao cabo acabou por não acontecer dadas as pressões da inglaterra, ela novamente, madrasta má do mundo.

roberto ivens morreu com pompas de herói. e deixou importantes contribuições escritas sobre a selvagem gente africana. é compreensível que em portugal ainda hoje se entenda que a europa é uma grande dádiva pro mundo, e que o império português foi uma grande dádiva para a europa. deus quer, o homem sonha, a obra nasce. de modo um pouco diferente nasceu roberto ivens, e muito diferente foi a morte de sua mãe, que nunca passou dos vinte e um anos, não teve pompas funéreas, uma vida breve e tuberculosa numa ilha dos açores, e mesmo assim teve tempo de amar um inglês.

a vida vale uma mucosa.

como aprendi a sentir frio

vou escrever a história do frio. Quando eu tinha uns dez anos, talvez, meu tio, que é muito rico e bondoso e que gostava muito de mim, mas eu nunca soube ser gostado, ficava quieto e constrangido, fomos comer pizza em são paulo, eu não sabia o que era são paulo, mas era muito grande, talvez no brás, fazia frio como hoje

esse texto está ruim e agora pensei que escrevo demais na primeira pessoa e que ninguém se interessa tanto assim, também não é da conta de ninguém. mas se eu parar de escrever agora. não faz o menor sentido. também não tenho compromisso nenhum com a boa literatura. e estou com frio e lembrei disso. não é uma história bonita. eu preferia nem lembrar. mas se a gente escolher não fazer as coisas - não lembrar, não escrever, não - isso tem que ter algum sentido. o frio me deixa confuso. continuo:

eu tinha uns dez anos e meu tio me levou pra são paulo, não sei por quê, eu gostava imenso do meu tio e ele de mim. fazia frio como hoje e à noite nós fomos comer pizza que era "a melhor pizza de são paulo", segundo ele.

atum. no fim ele perguntou se eu tinha gostado. era uma pizza esquisita, parecia mais uma torta, a borda enorme a massa fina e recheio cheio recheio. o tempo todo que a gente ficou sentado comendo naquele lugar quentinho eu observava um garçom velho que estava tão cansado que dormia de pé. eu sempre quis bem os velhos. aquele me pareceu especialmente desamparado e dormindo de pé, servia a gente, eu e meu tio comendo a melhor pizza de são paulo.

(contar histórias é um negócio muito difícil)

"gostou?". eu falei que sim por educação. sou muito educado. queria oferecer a cadeira pro garçom velho e perguntar se ele queria comer pizza, que não estava lá muito boa mas que era quentinha e gostosa. meu tio pagou, pediu pra embrulhar os pedaços que restavam ("leva pra sua mãe experimentar") e a gente saiu em direção ao estacionamento.

os carros do meu tio sempre foram grandes e também aconchegantes.

dava uns três quarteirões até o estacionamento, era muito noite e chovia, ou tinha chovido, cidade grande, aquele monte de luz e de gente na rua e de carros e barulhos e a gente andando na calçada, eu seguindo apressado os passos largos dele. eu com os pedaços de pizza esquentando as minhas mãos. e no caminho, no meio da calçada, tinha uma mulher (eu acho, pela voz) deitada, se contorcendo, toda escondida num cobertor escuro. foi assim? é assim que eu lembro. assim foi: quando passamos eu ouvi que ela gemia. e não estava pedindo nada pra ninguém. estava só se contorcendo e gemendo. uma voz que eu acho que ainda lembro, e que nunca me assombrou em pesadelos ou noites assim. a única coisa que ela dizia é "eu tô com fome". e não estava dizendo isso pra ninguém.

eu olhei várias vezes pra trás, como sempre faço. entramos no carro e a pizza continuava quente na minha mão. eu pensei um milhão de vezes, como sempre faço. que a pizza era pra minha mãe, que o meu tio ia ficar chateado, que e se a pessoa não quisesse pizza, que todo mundo ia ficar chateado e triste, todo mundo, o mundo inteiro. o carro deu partida. e foi assim que aconteceu.
um grande peixe nos rios mais poluídos
de são paulo, a gente sabe que um ecossistema está morrendo quando desaparecem os grandes predadores
dei pra andar na rua procurando onça
urso leão jaguatirica e não encontro, procuro
capivara tamanduá tatu cobra-cega e
não encontro

demografia dos bichos que não existem

sobra pra gente fazer toda a plural
fauna, com roupas diferentes e viagens
pra trocar fluidos, cartões-postais, teocracias
o homem é o lobo do homem
mas os homens também são escassos
o vento foi tanto fez ondas de bosta tão grandes nos rios
de são paulo, a cidade ficou inundada de merda,
as pessoas todas morreram e o noticiário europeu
deu "grande catástrofe tristeza tragédia no país de lula"
os europeu morrem comendo pepinos contaminados antraz
em cartas de amor porque hoje é dia dos namorados

comi um pepino. não saio de casa enquanto isso. a tragédia na rua, gente correndo, minha casa cai, morri também. está muito frio e ninguém consegue se proteger. dia doze de junho. os peixes futuros, com a inteligência muito desenvolvida e resistentes à morte aos vegetais à própria merda, encontram os nossos cadernos cheios de confissões tristes e esperançosas

Querido peixe,

abandonei as barbatanas e de anfíbio virei gente. hoje dormi o dia inteiro. sonhei que estava descalço e sem óculos embaixo de uma árvore o chão com muitas folhas mortas úmidas nutrientes do futuro e grande árvore ao alcance da minha mão cheia de frutos que eu não via direito, eram melões, pensei, daqueles lindos, redondos verdes japoneses, a casca em linhas parece uma pele quebrada, tive ganas de lamber, meus pés se afundavam nas folhas e eu pensei AI MEU DEUS UMA COBRA VAI ME MATAR porque era possível uma cobra quieta perigosa no sono do meu pé. com medo da cobra, querendo a língua, peguei o fruto e saí depressa, andando feliz e olhando, pus o grande na boca e era redondo mas sem a luz contra e calmo vi que era vermelho, amarelo, e não continuei comendo porque tinha teias de aranha, outro bicho que me dá medo

(uma coisa que você deve saber, peixe futuro, é que a gente não aprendeu a não ter medo, flores amarelas e medrosas)

era uma manga!

Fim da carta ao peixe. fim da linha pra mim. ninguém morreu.

perigo

um caderno com um tigre na capa

9.6.11

diário

e ontem, quando eu senti a pior dor da minha vida (mais pela duração e pela circunstância que pela intensidade, e especificamente no estômago, não tinha nada que ver com dores mais fortes e metafísicas), me fez rir os dois versos que brotaram na cabeça, eu me virando de lá pra cá numa cama de solteiro, "a solidão vai te matar de dor", eu não conseguiria me erguer pra ver um médico, mas aí dormi e passou

raios e trovões

é nessas tempestades, o ar
espoleta uma eletricidade

nos tempos das cavernas eu teria maior medo / minha avó tapa as orelhas / chove lá fora e aqui /

algum engraçadinho tapou o ralo da cidade com um rato morto. mentira, era um gato. viram as fotos no facebook: o engraçadinho com o gato pelo rabo, sujo de sangue, e o ralo tampado. mentira, eram pessoas. pelo rabo, sujas de sangue. era a pia do banheiro, eu tinha quinze anos e a cidade não parou de encher, de encher, a leptospirose. agora parei porque nunca perdi uma geladeira na enxurrada, semprei morei em apartamento sólidas altas casas, meu coração de alvenaria não desaloja, não sofre com deslizamentos desapropriações e não paga aluguel

meu coração é uma casa vazia, mas é minha. a presidenta diz que não pode haver gente morando em situação de risco no brasil, em palafitas. eu concordo. então queria escrever uma casa pra cada pessoa, como a minha, e todos viveremos sozinhos no sonho do próprio, grades altas sem enchente, o poder público salvará esta nação.

aqui o ralo da cidade está aberto. chove muito, mas escoa. da janela eu vejo a chuva levando nada, as valas limpas das calçadas.

minha vó, mesmo assim, tem medo. e eu, uma enxaqueca. no quarto tem goteira e faz bastante frio. anoto pra não esquecer de doar os agasalhos pras campanhas de inverno.

8.6.11

comecei a escrever toda a lembrança que eu tinha de você. porque eu não quero largar. e também porque não tenho outra coisa pra fazer. podia roer um pão duro. mas escrevi coisas moles, que poderiam ser de qualquer. algumas eram, mesmo. atribuí-as a você por comodidade. na verdade, resumi todo o resto a você e a umas poucas memórias de infância, porque não faço questão de lembrar da infância, só em alguns casos. os piores, aqueles que prefiro esquecer, escrevi como se você é que tivesse contado. "você" é um arquipélago. eu perdi a balsa e fiquei preso no continente. lá longe, essas ilhas são um manso rebanho selvagem, distante. e eu não sou leoa pra quebrar a paz das gazelas e sorver sangue. tem uns frutos de árvore aqui, eu como e bebo a água do coco. depois deito na areia, suspiro, faz sol. o mar tem um barulho agradável, de muitas praias quebradas. fecho os olhos, cochilo, e esqueço.

7.6.11

ainda não aprendi a ter um corpo, mas sigo tentando

o zoológico te desfaz, te
quebra os leões, savana é uma
memória. antes de olhar
o espelho eu tinha um corpo
verdadeiro, não adianta ser
nostálgico. os pés e os
pelos crescendo pra além de qualquer
útero, mergulho na piscina,
quando saio a água que evapora
rouba o meu calor pra evaporar,
aprendi na aula de física.

o frio não alivia na aula de física.

depois a gente cresce e o corpo
é uma armadilha, câncer vírus cárie
o que me espera nessa esquina?

ela desconfiava. sorte que era tonta, então podia. era a prima, a irmã, a tia. todo mundo olhava pra ela meio assim, quase indiferente. ela era uma mesa que pudesse dizer: "eu". mas que não diria. então lhe punham vasos, copos por cima.

"muito carinhosa", alguém dizia. a mãe cuidava, mas quando a mãe morreu outras cuidavam, e uma sempre lhe punha meias rosas laços rosas na cabeça, com um pano lhe lavava as partes, muito cheirosinha você é, não é?! "não é?!". a tonta sorria uma vogal sem escrita. pronto, está tão linda! e voltavam com ela pra cama. feito uma flor que se olha e se cheira e se abandona.

eu fico muito feliz nesta flor. ela é minha. mas e a flor?

o principal é isso: ela desconfia. olha pras coisas... solta o riso de retardada... pisca só o essencial. como é tonta, ninguém percebe. e fazem um churrasco no quintal.

6.6.11

mas que às vezes é preciso

e vamos cantar uma coisa mais alegre
uma coisa que não tem nada que ver connosco
mas que às vezes é preciso

o futuro me absolve

é bom escrever / é um encontro com a coisa / você tem braços (às vezes não tem. bom lembrar: não é todo mundo que tem braços. eu tenho. dois, acho) eu tenho braços e pernas. alguém tem. cada coisa no teu corpo vai prum lado. e de repente vem uma palavra, é um momento.

o "coivara" que descreve esse blogue é uma história de uma vez. que diz que coivara é o nome de uma técnica de agricultura, consiste em QUEIMAR tudo o que havia. não sei o quê, se isso aduba ou resseca a vida do solo. não sou agricultor. aliás, a única coisa que sei fazer é escrever. e nem isso. sou um fracasso nos textos encomendados. aliás, a única coisa que eu sei fazer é o fracasso. "imagina", alguém vai dizer, "imagina!". ah, esse alguém não sabe da missa o terço. escondo muito bem. faço a barba de vez em quando. e tenho bom berço, ninguém vê minhas cáries, estão nos dentes dos fundos. ninguém vê meus fundos porque fui bem educado nas fachadas. mas se acredito em alguma coisa. acredito em várias. uma delas é que escrever é muito bom / quando é um encontro com a coisa / é quando a coisa encontra.

nessas horas, vem primeiro uma satisfação pessoal muito grande. virei deus, posso morrer. logo depois, e aí é que a coisa se completa, vem uma satisfação muito grande de que outros se satisfaçam com meu texto. e eu já não sou mais meu texto, ele chega sozinho. virei terra, posso morrer. meu objetivo de vida é virar adubo.

quando nada disso acontece, que é boa parte do resto do tempo, confesso que preferia nem estar aqui pra ver. tem uma música da companhia do latão em que se canta

eu tenho pena de morrer e deixar Odete
eu tenho medo de Odete me deixar

eu tenho pena de morrer, deixar o mundo
quando eu morrer o mundo pode se acabar


pois, quando não escrevo não tem Odete nenhuma pra me deixar e o mundo pode muito bem continuar sem mim. estou morto, posso morrer. aí não tem alegria nem libertação. é matéria finda, é jogo dado.

(com isso percebo que entronizei de vez outra mensagem da clarice lispector, que diz na entrevista "quando eu não escrevo, eu estou morta". eu sempre pensei que fosse mais dramalhão do que isto. que fosse trágico. mas não é. é pior. é fato.)

(but i ain't no clarice lispector, that's for sure)

de todo modo, hoje foi um dia de muitas realizações. o quarto está uma bagunça e o trabalho está atrasado. amanhã eu posso morrer de verdade. nunca descarto essa hipótese, essa verdade. mas acho que ainda vou prestar grandes serviços para a humanidade. o futuro me absolve.

agora vou voltar pro ganha-pão.
nisso entendo que o desejo é o antídoto da morte, e é sua causa e consequência, os dinossauros imensos répteis de sangue quente quase aves, se fósseis são petrificados, fóssil vem do latim o que foi desenterrado

grande réptil do que não deu certo, dinossauro de pedra pondo ovos e afiados dentes, eu ranjo os dentes durante a noite, a dentista me diz que na minha velhice não os terei mais, meus dentes de areia e a pele mole, a palavra chinesa para fóssil diz "tornado pedra", ei meus dentes que não deram certo eu inteiro decomposto no futuro dos meus passados dinossauros

eu que venho desde os organismos unicelulares

eu que sou o fracasso das teorias de evolução

e que tenho orgasmos plurisseculares, eu que

enterrado no tempo morto de uma cidade

enterrado nos afazeres no mesquinho, no que não sabe da morte
e menos da vida

meu corpo é tão literal quanto o tempo que passa

ei grande réptil da nossa era, caçador do sol
destruidor das oficinas das temperaturas do aerosol
invocação do dinossauro nessa casa exemplar
- que me mastiga, e eu mastigo
ei que tudo é mastigar
o desejo roça feito unha de gato, ronrona nas pernas depois crava, você dá um grito e pode dar um tapa, depois à noite pensa "nossa como doeu", é muito gostoso o desejo, cintila e amassa e quando acaba me deixa esse pedaço de sucata, homens rudes me remexem no ferro-velho das paixões, o desejo é tão gostoso é uma piscina na infância do verão, eu menino um rapaz de vinte anos brincava de me afogar, agarrado às pernas dele, depois me apertava contra o peito e eu com água nas narinas, o desejo é uma delícia, principalmente quando não tomou banho, te pega de surpresa e ninguém tem tempo de se preparar, você é um corpo sujo a caminho da morte e o desejo te intercepta, é impossível escrever nesses momentos de desejo, mesmo pensar é bem difícil, todas as campanhas mandam a gente usar camisinha mas o desejo vem do tempo das cavernas, é um primata estrangeiro ao nosso tempo, a gente pega o vírus e morre porque o desejo leva sempre à morte, o futuro dele é um fosso sem desejo, a queda desde o pico, não quer planalto, não quer planície, as religiões sabem disso, a medicina é uma imensa religião, agora é outono no hemisfério sul, eu tenho frio e um fiasco de desejo, uma delícia, não obedece, e quando eu resto fora dele abandonado, se só tenho na memória e não há nada o que fazer, não me arrependo, só te busco, desejo, não faz mal que não me quer

5.6.11

eu estava indo com meu pai e meu irmão, era de noite, pra padaria comprar sorvete, esqueço sempre que tive alegria com meu pai, tão raras vezes, a maioria delas relacionada a doces, meu pai amava os chocolates, era noite quente e nós íamos juntos e eu ia falar algo e um mosquito entrou na minha boca, eu que nunca falava nada, ok estou fazendo pose de coitadinho, na verdade estou tentando um toque trágico, fiz uma consulta astrológica esses dias que me lembrou de tudo, do meu pai, do frio, do açúcar, agora do mosquito, desse bueiro de amor que eu sinto, meu pai deu risada e acho que segurava minha mão, acho que não, não lembro da mão dele, lembro da pele fria em estado de coma, meu pai meu picolé, era um homem lindo, hoje vejo minhas fotos e nas que tenho barba me pareço tanto com ele, arrepio, no ônibus voltando da casa dos meus avós, pais dele, me veio um verso, quis começar uma narrativa com "meu pai era inverno", associá-lo à uma estação do ano, eu de dedos gelados no fim de outono paulista, mas quando cheguei e me pus a escrever, bem, é como se um mosquito tivesse entrado na minha boca, e meu pai risse, divertido, não tanto pra eu me sentir mais constrangido do que o que já sentiria se ele não risse, se ele não notasse, "engoliu mosquito?", mas eu cuspi a tempo, a luz da padaria iluminando a calçada, mais dez passos e subiremos o degrau, o atendente é um homem grisalho que por muito tempo eu desejei, ao lado dele tem um cartaz de "precisa-se de atendente" que ficou lá mais de dez anos, eu sempre ensaiando pra quando chegasse a idade de ser contratado e desejado pelo homem grisalho, depois meu pai morreu, eu consultei a astróloga, fui visitar meus avós, os pais dele, voltei de ônibus, quis escrever um texto, não consegui, agora estou trabalhando, domingo à noite, dedos gelados, depois eu bebi um gole de água, e uma cerveja, depois eu estou aqui e tem um monte de coisa acontecendo e acontecida que eu não sei como escrever, nem hierarquizar, já mencionei que estou sozinho? e que meu pai morreu?

4.6.11

carta de navegação

abri essas cartas sobre a mesa. agora não soube resolver e deixo as cartas ficarem. de negligência vão me acusar. mas que besteira, ninguém vai ver. eu mesmo me acuso. então faço assim: paro. não acuso mais nada. as cartas abertas olhando. abri também um tapete no chão, sobre ele papéis, a máquina de escrever, o computador e livros livros abertos. vou abrindo as coisas até onde consigo. o próximo passo seria fechar. então as deixo e abro outras. vou abrindo, vou abrindo. como se a casa suportasse. não suporta? abro a casa. abro o peito. com os dedos, folheando. abro o tempo.

assim que compreender, decido o que faço. talvez te escreva contando que tudo isso, tudo isto, que _________________. talvez. se não for melhor fechar. ou se não for, aí, de vez e para sempre, continuar e abrir.

3.6.11

Escreve. No teu regaço
o momento se passou.
Voa num tempo de abraço,
abraço não repousou

e o tempo mora em cansaço.
- Vê: quem nunca se abdicou
vai num ritmo sempre lasso
onde pressa não vingou.

Escreve, ó imensa fadiga,
tua não querença se expande
nessa vontade inimiga.

Escreve teu verso raso
e assim, que a morte se mande
acontecer noutro acaso.

(Maria Ângela Alvim)

carta de navegação

vários fusos estes
meu corpo é um globo terrestre?
ou descubro: que o estado da vida é o jet lag
uma senhora noturna a acotovelar-te
minha classe é a econômica

ontem joguei o tarô pra saber o que será deste tempo parado
saíram cartas pequenas, de nascença
e também de sentimentos escuros
o resultado final era o recluso
ao amanhecer abri um livro novo que se chama "a restante vida"
não gosto do título

*

a júlia diz que as pessoas entram no avião e somem. a ponta de terra se afastava e o resto era uma boca aberta azul celeste, indistinta de horizontes. deus criou os aviões para que as coisas sumissem a uma velocidade que nos é impossível, é com essas artimanhas que deus garante que nunca chegaremos, nossas torres erguidas aos céus e caídas por raios dinamites atentados terroristas

quem pode culpar a al-qaeda?
o tempo é o grande terrorista

mas o voo foi bem. tenho feito de chegar um ritual antigo como a chuva. de ficar indo e voltando, me restam uns versos no corpo, igual aqueles marinheiros ou as malas de viagem que se enchem de etiquetas, me extravio do destino certo, e é buscar terra firme em cada onda que sobe o que traz peixes novos e fósseis ao conhecimento da visão

não, o coração não contenta
navegar impreciso

*

no avião, a música que tocava era esta



só o tempo no meu bolso

2.6.11

carta de navegação

enquanto o azul me engolia
me foi dito na cama
o céu estava claro
e teve tanta turbulência
o tipo mais perigoso
não avisa em nuvem, breu
de repente um revolto vento
o voo desastre no invisível
não sei se o piloto era experiente
aterrisei neste chão que não treme

carta aos cientistas do todo

se a manhã aparece na
curva de uma volta, os
movimentos circulares dos nossos
quadris que há
séculos se esfarelam no atrito do nada
e mesmo assim são duros, osso e carne e pele

e têm o líquido que falta ao universo

cientistas constroem observatórios enormes
nas regiões mais áridas e põem-se a procurar
à distância
água

escreveremos aos cientistas, em língua
portuguesa e sentida, que não, cuidado,
vocês não acharão água assim

procurem, antes, nos nossos quadris

procurem em mim o tal líquido precioso

e descobrirão que a manhã aparece
na curva de uma volta
e que o sol nasce, nasce
pois que tudo é de nascer