quem é você, nem isso lhe saía da boca. Depois não vai lembrar: idade, altura, nunca saberá dos amigos de infância, se tem uma irmã. Se gosta de queijo, café, o tipo de música, você, quantas coisas vai ficar sem saber.
"Chuta a cabeça dele"
Embaixo deste chão tem ossadas extintas, desintegradas pelo tempo. Nós o revolvemos e sobre asfalto, calçamento, coturno, cabelos. Antes disso eles vieram pela rua feito matilha, covardes, um batalhão discreto matando a noite e chegando bote nas bichas da praça. A homofobia mata uma pessoa a cada dois dias no Brasil. Mas da homofobia nós não sabemos o nome, a altura, se tem irmã, quais sonhos congelados. Quem me matou foi você.
"Vera, o Leão mandou você parar tudo. Tem um morto pra cobrir". Vera detestava trabalhar lá e detestava ainda mais esse apelido de Leão. Entrava na sala do chefe pensando hipopótamo, mamute. O chefe gordo atrás da mesa. Quando falava, babava pelos cantos. Formava-se uma bolha de espuma na barba e ele não queria limpar. Do medo viemos, ao medo voltaremos. Vera trincava os dentes de raiva e perguntava o que era.
"Mataram uma bicha na República. Corre lá pra gente fechar a edição. Vê se dá capa." Vera detestava ser a Leoa. De um lado pro outro, caçando carniça para alimentar o chefe. Dessa vez ele nem tinha olhado para ela, o que era melhor, o que era terrível.
Ela tinha que olhar pra ele, não importava se quisesse. Concentrou o ódio na maçaneta da porta e girou-a sem estrondo.
Já era madrugada quando desceu do prédio e rumou a pé para a República. "Eu vou com você!", "Não vai não". Tirou a máquina das mãos do foca, que ficou plantado de boca aberta na porta do elevador, e apertou o térreo. Sentiu a brisa gelada, salpicada de sereno ácido de outono no centro de São Paulo, escorrendo pelo pescoço. Um bêbado mexeu com ela. Não era qualquer mulher que fazia uma coisa dessas. Podia ser perigoso, podia não-sei-quê. "Merda", ela quase foi atropelada. A gente se preocupa tanto com estupradores e quase morre nas rodas de um carro imbecil.
Vera não tinha medo de estupradores. Eles é que deveriam ter medo dela. Olhos, garganta, virilha, Vera podia nocautear qualquer um, tinha certeza. Às vezes ela esperava à noite, na rua, que alguém tentasse alguma coisa. Um dia foi roubada, mas não se moveu. O ladrão não tinha mais que quinze anos.
"Esse jornal não é lugar pra moça delicada", disse o Leão. "Nenhum lugar é", ela respondeu.
"Tá certo, tá certo. Olha, você deu sorte que um repórter nosso morreu semana passada. O pessoal tá reclamando de muito trabalho. Traz uma matéria aí, faz do jeito que você quiser, só não me enche o saco. Aí a gente vê". Ele acendeu o cigarro e abriu a janela, começou a tossir.
Dois anos depois e ela não tinha orgulho nem vergonha / nada / do que tinha escrito / vontade nenhuma de continuar naquilo. Mas ainda pagava as contas, e ela ainda tinha contas. Voltara com duas páginas pingando sangue, a história de um grupo de travestis que tinha assassinado o cliente de uma delas. MÁFIA DOS TRAVESTIS - CLIENTE NÃO PAGA A CONTA E ANORMAIS DÃO BEIJO DA MORTE. Ainda era uma das edições mais vendidas do jornal e o emprego era dela.
"Cadê a Vera?"
"O chefe mandou ela ir na República, parece que mataram um gay"
"E ela foi sozinha?"
"Foi, pegou minha câmera e tudo. Não quis que eu fosse"
"Mulher brava!"
Vera devia ter alguma proteção especial, é o que Virgínia sempre dizia. Mulher sortuda, "e não só porque me encontrou". Virgínia sorria e tirava as cartas. "Que besteira". Mostrava a carta da Estrela e dizia que os antigos acreditavam: o ser humano é vindo das estrelas. Gente é luz. E a sua luz é boa, meu amor.
Acontece com frequência que o céu de São Paulo não te deixa ver estrelas. Apagadas aqui embaixo, como se o asfalto fosse antimatéria e puxasse o nosso desejo pra rede de esgoto, o barulho dos sapatos e das rodas, os bares cheios, tudo o tempo todo um medo manso, "que paciência tem esse medo!". As travestis olhavam-na com desconfiança e navalhas nos olhos. Vera encarava. "Ela é que nem o Mike Tyson, saca? Te intimida tanto com o olhar que cê fica pianinho quando chega perto dela. Isso é tática. E dá certo, a vagabunda". Mas também sabia com quem se relacionar, tinha esse talento. No Arouche, Cris Negão a protegia; no jornal, era o Leão. Ninguém sabia a que custo.
"Se o que você tá falando tem sentido, deve ser coisa de família. Todo mundo fala isso do meu pai, também. Ele aprendeu o krav maga lá na Estônia. Meio por acaso: era primo dum amigo do cara que inventou, essas coisas. Diz que foi bem a tempo, que logo depois que começou a treinar teve um pogrom. Ele matou dois filhosdaputa numa briga. Aí teve que vir pro Brasil". Vera coloca os dedos entre as pernas de Virgínia. "Começa com sorte. Mas depois a sorte some. A gente tem que persistir." E só sobrevive quem se esforça. Em princípio, todo mundo tem sorte de ter sido espermatozoide, óvulo, de ter acontecido. "Se é que isso é sorte", Vera pensa.
Um cotovelo teima na barriga dela. Vera se encolhe e se esgueira entre os braços. A polícia já chegou e conversa distraída do lado do cadáver, ainda descoberto. Se tivesse olhos, eles estariam abertos, ninguém se preocuparia em fechá-los. Vera tira fotos da cara deformada de monstro, da mancha de sangue entre as pernas do jeans. Agacha-se e clica: a mão estendida e aberta, o crânio deformado, um semicírculo de pessoas em volta (bocas curvadas em riso, um grupo de bichas chorando ao fundo), um policial olhando bem pra você.
"Ô, ô, circulando!"
"Não, deixa ela." - o outro policial aperta o braço do colega e olha cúmplice para Vera. Ela tira mais umas fotos. Vai embora.
*
"Quer saber?" - Virgínia se revira nos lençóis, se estica e se encolhe, esfrega o nariz entre os seios da amada e senta-se na cama de pernas cruzadas, "uma menina", Vera pensa. "Eu acho que você devia largar de vez essa merda desse jornal. Largar de vez toda essa merda. Vamos pra praia! A gente podia ir morar numa praia bem longe, bem ensolarada. Eu fico vendendo os meus artesanatos pros turistas. Você escreve o que te der na telha. De repente arranja um emprego num jornal local, mas podia também escrever pra algum caderno de viagem daqui!" (Quantas vezes por dia você para e pensa em tudo o que dá pra fazer desta vida?) "A gente aluga - ou até constrói! - uma casinha, aprende a pescar, planta tomates". A primeira página do jornal também trazia a promoção de um supermercado local. Você corta o cupom e ganha 10% de desconto no valor total das suas compras. Vera acende o cigarro, fica com vontade de café.
"Podia ser", diz, por dizer, olhando pela janela. "Bom, menina", disse o Leão, olhando nos olhos dela. "Essa aí é protegida do delegado", diz o policial, soltando o braço do outro. Virgínia tira outra vez as cartas, perguntando agora esse futuro. Seu coração se comprime quando ela pensa: quem escreve a nossa história? O Enforcado está preso ao centro da mesa. Nos anos 40, na Estônia, um bairro judeu é saqueado. Ela tem vontade de se levantar e ligar o rádio. Mas ainda não se levantou. Está sozinho na casa, no quarto. Olha em volta, pra além das cartas. Vera saiu e ela não tem pra quem sorrir.